quinta-feira, 22 de outubro de 2009

FLÁVIO MOREIRA DA COSTA

“Marginais, bandidos, solidários e solitários”

Está saindo pela Editora Agir a segunda edição do livro de contos de Flávio Moreira da Costa “Nem todo canário é belga”, publicado inicialmente em 1998 e ganhador de um prêmio Jabuti.
Flávio, que já tem cerca de vinte livros publicados, também lançou recentemente um romance novo, “Alma de Gato”, o seu sétimo.
De alguns anos para cá, Flávio faz antologias de contos de todos os tipos para a editora Ediouro, numa atividade intensa que poucos, estou certa, seriam capazes de realizar e que já resultou num grande número de livros bem vendidos.
Na introdução de “Nem todo canário é belga”, Flávio escreve:
“...Estas são histórias de gente sem história. Ms também, ou sobretudo, prática literária e exercícios de imaginação e linguagem. Neste sentido, não seria exagero dizer que os contos de ‘Nem todo canário...’ resultam numa galeria de personagens em movimento, cada qual vivendo sua própria trajetória: gente comum, tipos exóticos e estranhos (mas exóticos e estranhos do ponto de vista de quem?), marginais, bandidos, solitários e solidários, amantes e amados. Além disso, diversas são as modalidades – formas, estruturas, linguagens com que experimentei aqui a história curta. Nada de intencional, ou premeditado.”
E ele me deu uma pequena entrevista.

SC: Flávio, conte pra nós como é esse seu livro "Alma-de-gato".

FMC: “Alma-de-gato” fecha a Trilogia de Aldara, uma trilogia meio inusitada, mas trilogia, em torno de João do Silêncio, um autor que viveu afastado de tudo, inclusive de seu país, em silêncio, mas sempre escrevendo (nunca publicando) e deixando seus rastros de palavras pelo mundo. O primeiro livro da trilogia é o romance “O país dos ponteiros desencontrados”; o segundo, com uma “poesia escondida”, “Livramento”; e o terceiro é este “Alma -de –gato”, uma reconstituição biográfica do que teria sido sua vida. Resulta de uma falsa biografia de um personagem inexistente. Talvez não seja um livro para a tendência atual do mercado, mas foi divertido escrevê-lo. Virginia Woolf, ainda nos anos 30, dizia que era preciso se inventar uma outra palavra para designar o gênero romance, pois, já então, “cabia tudo no romance”. A expressão “pós-moderno” está muito desgastada: “Alma-de-gato” é um pós-romance.

SC: Flávio, você passa muito tempo na França, um país que, como você diz, adora. Por que?

FM: É uma história longa, que compreende vivência e conquista. Vem desde os anos 60, quando morei por lá, exilado (a temporada resultou em “As armas e os barões”) e segue até hoje. Fiquei uns quinze anos sem poder voltar. Hoje, quando posso, vivo alguns meses por lá. Não é turismo. Descobri que a França é um dos poucos lugares/cidades onde me sinto bem. (A outra é ...Livramento.)

SC: Você tem uma ligação com as artes visuais já há alguns anos. Poucos sabem, mas você é pintor, não é?

FMC: Não me considero pintor. Eu pinto. Não é uma aproximação acadêmica, a que tenho com as artes plásticas. É afetiva e me remete à minha infância, quando via minha avó, que foi uma grande pintora portuguesa (ela foi uma das primeiras a falar em Monet e cia., aqui, ainda no começo do século XX). Toda vez em que eu ia visitá-la no Grande Hotel de Porto Alegre lá estava ela pintando, com seu cavalete. Pinto porque procuro a não-palavra, para descansar do meu ofício.

SC: Como é que anda, a seu ver, a literatura brasileira, agora? Houve uma queda de prestígio dos escritores, como dizem alguns? Ou é o contrário?

FMC: Eu acompanho o que está acontecendo; mas não a ponto de me desviar do meu caminho. Tem gente de talento, mas, ainda em seus primeiros livros, fica difícil saber para onde, ou até onde vão. Há outros descobrindo a roda, e achando que a literatura começou com John Fante e Bukowski. E, no geral, não distinguem literatura de vida literária e acabam fazendo muito barulho por (quase) nada. Ligia Fagundes Telles diz que nós, escritores, somos como o mico-leão: uma espécie em extinção. Mas sempre haverá sobreviventes. Alguma coisa acontece, a fila anda, la nave va.

Em sua mais recente viagem à França, Flávio foi a Giverny, a linda propriedade onde morava Monet. Ele tirou algumas fotos lá, e reproduzimos uma.

EDITORA 7 LETRAS DE CASA NOVA

Jorge Viveiros de Castro
A 7 Letras, que funcionava em salas no Jardim Botânico, agora está numa casa mesmo, muito simpática e numa rua de nome inspirador, em Botafogo: a Goethe. O número da casa também tem um toque de magia – é o 54, cuja soma dá nove, o número de Iansã.
A nova sede ainda não foi inaugurada “oficialmente,” mas isto deverá acontecer, com uma grande festa, em dezembro.
Fui à casa nova visitar meu amigo, o editor Jorge Viveiros de Castro, que conheço há mais de vinte anos. Jorge está feliz e orgulhoso com o novo endereço, naquele lugar que nem parece do Rio – só tem casas mesmo.
A casa da 7 Letras é azul e com três andares.

O escritório de Jorge fica no terceiro, com direito a vista para dentro da copa de uma mangueira, como se estivéssemos na Índia ou na Bahia.
Depois de um papo rápido no escritório, fomos para o novo estúdio de gravação da 7 Letras, chiquérrimo, com vários instrumentos que revelam o passado do editor, que participava de uma banda de rock em seus tempos de universitário na PUC.
Nesse estúdio, a 7 Letras está começando a produzir CDs de poesia falada, ou “audiolivros.”
O primeiro é do premiado “Lampadário”, de Denise Emmer, poemas acompanhados ao violoncelo pela autora, também violoncelista, e por Hudson Lima.
Essa coleção de CDs terá o selo “Lado 7”.
Enquanto tomávamos um café, em seguida, na sala para visitantes (que tem uma mesa muito bonita, feita com fragmentos de muitos tipos diferentes de madeira), Jorge me contou também que está em produção o próximo número, o 18, da revista de contos “Ficções”.
Há um convite para que sejam enviados contos com pseudônimos, que serão julgados por pessoas também usando pseudônimos.
Os trabalhos que obtiverem avaliações melhores sairão na revista. A coordenação da revista ficou com Júlio Silveira.
E a “Ficções” vem em duas versões, on-line e impressa. Para conferir, acesse: http://www.revistaficcoes.com.br/
Outra novidade da 7 Letras é que está em preparo um livro novo de poemas de Carlito Azevedo, com o título “Monograma.”
Entre outras coisas, Carlito é o editor da revista de poesia “Inimigo Rumor,” que tem selo conjunto da 7 Letras e Cosac Naify.
No fim da nossa conversa, Jorge fez a revelação: está escrevendo um romance policial!
A ficção dele, até o momento, tem sido delicadíssima, com textos que ficam entre o miniconto e o poema em prosa.
Jorge na bateria
Mas Jorge é também autor de um livro infantil falando de futebol, com uma linguagem bem fluente, a que usa agora, para escrever seu policial.
A 7 Letras publicou dois livros de contos inéditos meus, “Mil olhos de uma rosa” e “Ovelha Negra e Amiga Loura” e reeditou outros: “Nascimento de uma mulher,” “Uma certa felicidade,” “Os venenos de Lucrécia”, “O último verão de Copacabana”, além da novela “O jogo de Ifá.”
Tudo em edições muito bonitas e criativas, com um toque artesanal.
Esses livros podem ser adquiridos através do site da 7 Letras: http://www.7letras.com.br/

HERTA MÜLLER

O NOBEL MAIS
DO QUE MERECIDO

Por Dinu Flamand

Um genial ato de justiça, a atribuição do Nobel de Literatura, este ano! Herta Müller traz à luz, em plena atualidade, uma dessas “províncias” do sofrimento que os comentaristas políticos, midiáticos, literários, têm, com demasiada freqüência, a tendência a deixar passar em silêncio.
A família de Herta sofreu duras provas, que a jovem estudante de Letras começou bem cedo a colocar no papel.
Suas perguntas perturbavam, sua intransigência em conhecer a história já chamava a atenção da famosa Securitate, a polícia secreta romena.
Ela questionava também, como nós outros, da mesma geração, os sofrimentos, a ausência de liberdade, a falta de esperança, a sufocação da vida cotidiana, na Romênia dos anos 70-80, que soçobrava sob uma ditadura medíocre.
Herta era “minoritária”, fator agravante. Escrevia em alemão, veículo lingüístico potencialmente perigoso, sendo susceptível de contradizer a linha oficial.
A censura política massacrou seu primeiro livro. Ela teve a audácia de passar o manuscrito para a Alemanha Ocidental, onde foi publicado sem cortes.
Na época, não o li, mas sei que o livro não tinha nenhum elemento político que pudesse ameaçar o sistema. Era, simplesmente, mais verdadeiro do que muitos outros, não convencional, escrito já com a franqueza que se tornaria a marca registrada dessa mulher teimosa.
A informação sobre as misérias cedo infligidas a Herta nos chegou muito depressa, em Bucareste.
Eu estava em estreito contato com alguns poetas de Timisoara, que haviam constituído o famoso “Grupo de Ação de Banat” – uma denominação aparentemente revolucionária, mas cujos membros não faziam nada além de poesia: muito irônica, é verdade, bastante sarcástica.
A vida se tornou para eles ainda mais infernal do que para nós, os romenos. A maioria dos alemães do Banat (onde Herta vivia com sua família), na parte oeste da Transilvânia, conheceria, nos anos 50, o exílio forçado para as terras áridas da planície do Danúbio. Também em direção ao Gulag soviético.
Herta e seu marido de então, o poeta Richard Wagner, não queriam expatriar-se, mas terminaram partindo para a Alemanha. Os expatriados se sentiam marcados por um certo desprezo, ao chegarem lá: eram os “romenos”!
O clima era de inadaptação. Um amigo nosso, Werner Bossert, suicidou-se.
Agora, em suas entrevistas, Herta evoca esse dilaceramento – o de viver perpetuamente entre duas pátrias. Não causa surpresa que ela tivesse continuado sempre, em seus livros, com sua admirável investigação desse seu universo obsessivo, mesmo que isto resultasse na exclusão do seu nome das listas de best-sellers e dos catálogos de literatura amena. E alguns “estetas” torceram o nariz para ela.
Mas era uma dívida que Herta precisava pagar. E Günther Grass sempre a admirou!

O poeta, tradutor e jornalista romeno Dinu Flamand, 62, nasceu na Transilvânia e pediu asilo político na França durante a ditadura de Nicolae Ceausescu. Com vários livros de poesia publicados e prêmios recebidos como poeta e tradutor, Dinu hoje mora em Paris, onde trabalha para a Radio France Internationale.

Herta Muller, 56, nasceu em Nichtdorf, no distrito de Timis, no Banat, parte oeste da Transilvânia. Em sua aldeia natal, a população, germânica, falava alemão. Herta estudou Letras na Universidade de Timsoara. Sua obra trata sempre das duras condições de vida sob a ditadura de Nicolae Ceausescu. No discurso de entrega do Nobel foi dito que Herta Müller “retratra, com a densidade da sua poesia e a franqueza da sua prosa, o universo dos desapossados.” Há três livros dela em português: “O homem é um grande faisão sobre a terra,” “A terra das ameixas verdes” e “Compromisso”, lançado pela editora Globo em 2004.

MULHER E LITERATURA

Helena Parente Cunha Pois é, Herta Muller é a décima segunda mulher a ganhar um Nobel de Literatura. Não se pode deixar de pensar que houve outras 89 premiações e os vencedores foram sempre homens... Voltam à pauta as indagações torno de mulher e literatura.
Quem fala muito nisso é a premiada baiana Helena Parente Cunha, autora de vários livros de contos, poesias e romances, entre os quais o “Mulher no espelho”, traduzido e publicado na Alemanha e nos Estados Unidos.
Literatura de autoria feminina é um assunto de que Helena tem se ocupado constantemente.
Eu lhe fiz algumas perguntas a respeito.

SC: Num período em que havia muitas restrições à atividade intelectual das mulheres, você iniciou seus estudos de Letras, empenhou-se no exercício do magistério, primeiro na Bahia e depois no Rio, e desenvolveu uma produção literária consistente e reconhecida. Gostaria que você falasse dessa trajetória, contando, num resumo, as maiores dificuldades que enfrentou e também as maiores recompensas que obteve.

HPC: Quanto à minha atividade de professora, iniciada em meados dos anos 50, na Bahia, tenho a dizer que, após tanto tempo, continuo a dar aulas na Pós-Graduação em Letras da UFRJ e, como sempre, me sinto muitíssimo gratificada em manter esse contato renovador. Ensinar é também uma forma de aprender e muitas vezes de criar duradouros laços de amizade. Tenho grandes amigos que foram meus alunos, há muitos anos. Enquanto não tive dificuldades para iniciar o trabalho no magistério, levei muitos anos para publicar meu primeiro livro, tais eram os obstáculos do mercado editorial e de minha timidez. Mas depois de haver conseguido saltar esta barreira, não posso me queixar. São muitas as recompensas. Minha obra em prosa e verso tem sido estudada nos cursos de Letras do país e mesmo do exterior, através de monografias, dissertações, teses, trabalhos em congressos, participações em antologias. Minha fortuna crítica inclui várias publicações. Como escritora, a maior alegria que tive foi no "Seminário Helena Parente Cunha" (maio de 2009) em três dias inesquecíveis de apresentações de estudos sobre minha obra literária, na Academia de Letras da Bahia, associada ao Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, Universidade Estadual da Bahia em Feira de Santana e outras instituições. No magistério, além das constantes manifestações de apreço de meus alunos e alunas, recebi o maior título da carreira universitária, sou Professora Emérita (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

SC: Acha que ainda há obstáculos maiores para uma mulher do que para um homem, no exercício da atividade de escrever?

HPC: Hoje, acredito que não mais. Os inúmeros obstáculos são relativos à publicação dos livros, tanto para homens, quanto para mulheres. Entretanto, no que se refere ao reconhecimento da obra, vejo discriminação. Dou como exemplo, as listas que mencionam os melhores romancistas contemporâneos, ou contistas ou poetas, em que geralmente as mulheres saem perdendo. Não sei o que você, escritora reconhecida, pensa sobre esta questão. Apesar disso, o panorama hoje é bem diverso do que foi, digamos, no século XIX no Brasil, basta lembrar que não se tinha conhecimento das centenas de escritoras atuantes e descobertas nas ultimíssimas décadas, graças ao empenho de pesquisadores(as) dos cursos de Letras.

SC: Sei que você está muito ligada ao grupo "Mulher e literatura", que promove, em diferentes cidades, encontros de professoras universitárias para falar da produção literária de autoria feminina.
Quais são os objetivos desse grupo? Você acha que foram, ou estão sendo atingidos? Pensa que a atividade do grupo tem alcançado uma proporção desejável de escritoras brasileiras?

HPC: O Grupo existe desde os anos 80 e, ao lado de muitos outros grupos, pertence à ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Lingüística). Vejo entre os participantes desse Grupo um empenho definido em valorizar a literatura de autoria feminina que só começou a ter mais visibilidade a partir dos anos 60 do século XX. O Grupo não é constituído só de professoras, há também os professores, embora em menor número, além de alunas e alunos da Pós-Graduação. O encontro deste ano foi em setembro, na cidade de Natal, contando com quase mil participantes. Entre as várias mesas- redondas, uma foi dedicada ao estudo de Aline Paim, escritora residente em Sergipe e esquecida ou ignorada. Vimos e ouvimos a entrevista emocionante que ela concedeu, do alto de seus noventa anos.Várias escritoras do século XIX saíram do esquecimento, graças ao empenho de membros desse Grupo. Coordenei com trabalhos de dez pós-graduandos, um livro dedicado a dez mulheres recém-descobertas, corajosas pioneiras daquele período, em que a discriminação atingia níveis revoltantes: Maria Firmina dos Reis, Maria Benedita Bormann, Francisca Clotilde, Narcisa Amália, Emília Freitas, Adelaide de Castro Alves e outras, entre as quais várias abolicionistas e republicanas. Muitos dos livros daquelas centenas de escritoras foram reeditados e estudados e transformados em teses, dissertações, comunicações em congressos. Agora você poderá me perguntar: e as escritoras contemporâneas? Claro que sim, inclusive você.

SC: O que você acha da cobertura mídia à atuação
dos escritores brasileiros e, em particular, das escritoras?

HPC: Vou responder através de minha experiência pessoal. Nos anos 80 e parte dos 90, quando um livro meu era enviado para os suplementos literários do Rio e de São Paulo, eu sempre tive resenhas ou artigos. Hoje, que sou mais conhecida e reconhecida, não recebo uma nota sequer desses jornais que antes me acolheram tão bem.


REVOLUÇÃO E POESIA

EAV Parque Lage
Por Sonia Coutinho
Desde meados dos anos 90, sou uma assídua freqüentadora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Mesmo num período em que deixei de ir a qualquer outra parte continuei firme indo àquele lugar maravilhoso e mágico. Aproveitando sempre para bater um papo com o fantasma da cantora lírica Gabriela Bezansoni Lage, para quem o casarão foi construído, por seu marido milionário, Henrique Lage. Gabriela continua a passear em torno da piscina, cantando...
Talvez muita gente não saiba, mas já pintei muito na EAV, entusiasticamente. No começo, derramava no chão baldes de água misturada com tinta, ao usar um borrifador de jardim sobre as telas já manchadas, realizando verdadeiras performances, sob o comando competente de Luiz Ernesto. Mais tarde, Chico Cunha me ensinou a fazer figuras.
O resultado mais lisonjeiro dessa atuação é uma tela minha que o escritor e crítico Silviano Santiago tem em sua sala até hoje e que já foi fotografada e publicada, em entrevistas dele.
Aos poucos, fui deixando a prática da pintura (pelo menos, no momento, embora acredite que haverá recaída) e reencontrei uma vocação antiga e funda, que está predominando - a de interessada em arte, ou estudiosa de arte.
Garota, quando morei uma temporada em Madri, estudava História da Arte no Instituto de Cultura Hispânica. Na EAV, já viajei com Charles Watson para Londres e Madri, visitando museus e ateliês de artistas, e vi seus vídeos contemporâneos.
Passei ainda por Pedro França (História da Arte) e, meteoricamente, por Guilherme Bueno (Arte Brasileira – eu voltarei, Guilherme). Agora, estou com Fernando Cocchiarale, estudando Estética. Durante todo esse período, de uns quinze anos interrompidos freqüentando os cursos da EAV, não encontrei nenhum escritor por lá. Até que, não faz muito tempo, fui a uma exposição sobre os inícios da Escola, vi uma imensa fotografia de Armando Freitas Filho, com bigodes imensos – e, na saída, deparei-me com o Poeta em pessoa.

Armando Freitas Filho

Aproveitei, então, para lhe perguntar o que eu não sabia: qual foi, Armando, ou qual é, sua relação com a EAV, com o Parque Lage?
E ele respondeu:
- Minha relação com o Parque Lage começou quando Rubens Gerchman criou a Escola de Artes Visuais. A sigla EAV, talvez por ser um anagrama de ave, levantou vôo, solta por Rubens nos jardins do Parque, e este foi alto, radical e transformador.
O palacete de gosto duvidoso dos Lage e o magnífico parque que o rodeia sofreu uma verdadeira revolução. Não somente a pintura mais contemporânea ganhou seu espaço privilegiado, mas o cinema, o teatro, a literatura, a música, e o que mais pintasse.

Rubens Gerchman


Rubens e eu fomos colegas de colégio, nos conhecemos em 1958, e desde aquela época, os primeiros quadros dele e meus primeiros poemas eram comentados por um e por outro, antes que a tinta do pincel e da caneta tivessem secado. Ele fez seis capas de livros meus e eu algumas apresentações para exposições suas. Além disso, elaboramos dois livros de arte juntos: Mademoiselle Furta-Cor e Dupla identidade. As litogravuras originais de Rubens do primeiro foram todas impressas nas horas vagas da prensa da oficina de gravura do Parque Lage, por MBia Medeiros e Wanderley Candido de Oliveira.
O ano era de 1977, a repressão ainda prendia e censurava. Um belo dia chegou aos nossos ouvidos que um almirante, - provavelmente a seco, que jamais conheceu o mar das batalhas nem o das missões relevantes, mas apenas o mar... de almirante das promoções burocráticas, e que fazia parte de um conselho de amigos ou coisa que o valha, do antigo Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro, que tinha deixado de existir com a criação da Escola, - vivia dizendo para seus pares, que o diretor da EAV estava imprimindo "nos porões do Parque", pornografia, já que os poemas e as gravuras tinham um cunho erótico. De fato, tinham, mas e daí? O boato ou o almirante de araque não prosperaram e a nossa Mademoiselle escapou ilesa e hoje está presente, vivíssima, no ensaio, de Renan Nuernberger, Poro por poro: o erotismo na poesia de Armando Freitas Filho, no seu relatório de iniciação científica a ser apresentado na USP.
Em 1978, junto com o também saudoso e querido amigo Roberto Maia, professor de fotografia da Escola, lançamos, no próprio Parque Lage, A flor da pele, um tablóide, com fotos dele e texto meu, onde se mostrava e se falava abertamente sobre a tortura, ainda vigente, naqueles anos. Este trabalho foi objeto da dissertação de mestrado de Mariana Quadros Pinheiro, Na fenda dos dias: leituras a partir de algumas datas na obra de Armando Freitas Filho, defendida, no começo do corrente ano, na UFRJ.

Gabriela Bezansoni Lage
Rubens iria gostar de saber dos trabalhos desses jovens, frutos, mais de 30 anos depois, do seu Jardim da Oposição, que a exposição montada por Heloisa Buarque de Hollanda e Helio Eichbauer, tão bem apresenta em seus múltiplos caminhos e paisagens. Iria gostar, também, de ouvir meu poema "Cidade Maravilhosa" feito para o livro sobre sua obra, publicado pela Funarte em meados dos 70, ser lido por Paulo José no DVD realizado por Tiago Rios na graduação deste, em cinema, pela PUC-RJ.
Tanto aqui foi dito daquela época e das nossas "tabelinhas". Mas não foi dito tudo, não foi dito nem um pouco da falta que eu sinto do meu amigo de adolescência, da nossa amizade de 50 anos, que perdurou, operante, pela vida afora e das nossas conversas, até os seus últimos dias. Por isso mesmo, minha relação com o Parque Lage atual tem que ser, obrigatoriamente, de saudade e de lembranças vivas.

TRÊS TIROS

Conto de Sonia Coutinho

Essa história ainda não está pronta. Mas, se você insiste, eu conto. O que já escrevi? Veja, há um personagem, Pablo, que fala de si mesmo. E há Joana, que ainda estou criando.
Já sei que Joana nasceu e viveu, até os vinte e tantos anos, numa cidade do interior. Aos 20, casou-se com um fazendeiro; mas, não muito tempo depois, abandonou-o.
Segundo diziam, porque ele a espancava.
Joana fugiu com outro homem, um publicitário do Rio, e foi morar, em Copacabana.
Ela era inteligente, lia muito e escrevia bem. Então seu amigo arranjou-lhe um emprego como jornalista. Naquele tempo era mais fácil, não exigiam diploma.
Anos depois, quando o publicitário já a deixara, Joana foi demitida do jornal. Ficou um bom tempo desempregada, vivendo de algumas reservas de dinheiro, mas que foram acabando.
De repente, alguém lhe telefona e oferece trabalho num jornal da sua própria cidade. Mesmo contra sua vontade, Joana aceita.
Mas, em sua cidade, sente-se cercada de ódio e tem medo. Pensa: será que foi atraída para lá por alguém com intenção ruim?
Um dia, recebe um telefonema de Pablo, antigo colega do jornal do Rio, que está em visita à sua cidade - e marcam um encontro.

- Vim para te salvar, Joana, para te levar daqui. Estou captando uma aura estranha em torno de você. Não entendo como aceitou voltar – diz Pablo.
Joana se limita a sorrir, sem responder, sentada diante dele à mesa de uma cantina italiana.
Ela observa Pablo com carinho, lembrando aqueles primeiros meses seus de jornalismo no Rio, quando os dois eram colegas.
Ela fazia matérias para o suplemento feminino dos domingos e ele, alguns anos mais novo, uma espécie de garoto prodígio que vivia citando Artaud, era crítico de teatro. Agora, como ele explica, está na cidade para participar de um seminário de teatro na Universidade, tinha virado professor.
O garoto prodígio, ela observa, transformou-se num homem quase maduro, usando uma camisa esporte não tão informal quanto as de antigamente.
Pablo, uma vida embutida na sua, sim, uma outra vida que talvez ela pudesse ter vivido junto.
Conclui, meio espantada, que sua vida já é composta por muitas outras, que se superpõem, formando um labirinto de episódios e situações quase esquecidas, mas que às vezes vêm à tona.
O garçom traz os canelones, eles começam a comer e Joana pensa nas poucas vezes em que foi para a cama com Pablo, sem grandes prazeres. Na verdade, já parece que aconteceu há séculos.
Ela o amou por causa da vivacidade dele, daquele clima de rebeldia e loucura que o cercava.
Mas logo se apaixonou por outro colega de redação – e, não demorou muito, como num passe de mágica, os dois homens mudaram de jornal e se afastaram dela.
Pablo foi para São Paulo. Desde então, Joana o vira talvez apenas cinco ou seis vezes, mas sempre se falaram no mesmo tom, como se não houvesse nenhum ressentimento da parte dele, como se nada tivessem mudado e continuassem grandes amigos - o que são mesmo, ela conclui, agora.
Num relance, Joana lembra as notícias que teve de Pablo, durante o período em que ficaram sem contato. Houve um intervalo longo sem ela saber de nada, e então alguém lhe disse que ele se casara com uma moça judia muito rica, Liuba.
Outras notícias foram chegando, como a de que eles tinham tido um filho.
Mais adiante, uma informação chocante: o casal estava envolvido com um movimento de guerrilha urbana e estavam presos.
Comendo seu canelone, Pablo conta agora que o envolvimento de Liuba com a guerrilha era maior do que o seu. Ela foi muito torturada e teve de se submeter a uma cirurgia de emergência.
Quando foram soltos, o casamento entrou numa fase ruim, acabaram separando-se.
Um período difícil, diz Pablo, havia uma criança no meio daquilo tudo, o filho deles, que ficou com os pais dela. Eles ajudavam a contragosto, com muitas críticas e lamentações.
Foi um período em que Pablo, como ele conta, estava angustiado e desesperado como nunca em sua vida. E então “aconteceu”, diz, com voz mais baixa.
- Nessa ocasião, conheci um rapaz. Um rapaz muito bonito, com uma personalidade inquietante. Uma pessoa, como é que posso explicar? Uma pessoa intensa, autêntica. Começamos a nos encontrar todo dia, ele freqüentava o pequeno apartamento que aluguei depois de me separar de Liuba. Um dia, entrou em meu quarto, aparentemente de forma casual, e fui atrás dele, nós dois conversando. De repente, ele se deitou em minha cama e estendeu a mão para mim. Eu me apaixonei por ele. Era meu primeiro relacionamento desse tipo, nunca tinha vivido nada parecido.
Pablo continua a falar, diz agora que, na Universidade onde foi ensinar teatro, ele e o amigo eram aceitos como um casal. Mas a vida dos dois era cheia de altos e baixos.
Um dia tiveram uma briga feia e o amigo jogou o carro onde estavam dentro de uma vala. Mas as machucaduras não foram graves e o relacionamento deles continuou. Pablo lembra:
- Eu era feliz, naquele tempo. Mas, um dia, pouco depois do acidente com o carro, ele começou a procurar outros. Aquilo me fazia sofrer, eu queria apenas ele. Continuei ligado nele, sofrendo.
Pablo conta que o amigo buscava cada vez mais “intensidade”, tinha experiências sexuais sucessivas, fazia sexo até em mictórios públicos.
De repente Pablo informa, em tom neutro:
- Ele acabou pegando Aids. Comecei a perceber que a saúde dele não ia bem porque tinha pequenas doenças uma atrás da outra. Aquilo não parava e então a idéia me bateu como um relâmpago. Disse a ele que devia fazer um teste. Ele fez - e o resultado deu positivo.
Joana e Pablo terminam de almoçar, mas continuam sentados à mesa. Agora, ele fala com uma voz mais lenta, cheia de uma tristeza seca.
- Uma manhã, ele ficou muito tempo ao sol. De noite, estava com uma febre altíssima. Era meningite. Não se levantou mais da cama, foi hospitalizado. Perto do fim, ficou cego. Uma tarde, pediu um prato de comida, queria um cabrito assado, de que gostava muito. Eu e a irmã dele, que o acompanhava no hospital, telefonamos para um restaurante. O cabrito chegou e ele comeu tudo, com o maior apetite. Pouco depois, morreu. Na hora, não tive coragem de chegar perto. Fiquei olhando de longe, da porta do quarto.
Tomando agora um café, Pablo diz que isso aconteceu há dois anos – e, desde então, ele não teve mais coragem de fazer sexo. Já se submeteu a vários testes de Aids, todos deram negativos. Mas, mesmo assim, não tem coragem.
Ele fica calado por algum tempo e, depois, pergunta, sorrindo:
- Você não quer saber, como todo mundo, se prefiro homem ou mulher?
- Não, sei que você próprio não sabe – Joana responde, sorrindo.
Pagam a conta, saem do restaurante, caminham até a enseada do Porto, que fica perto, e se debruçam na amurada. Olham em silêncio o mar tranqüilo, os saveiros ancorados. Joana diz:
- Acho que você, sua vida inteira, de certa forma procurou a pureza.
Ele dá uma gargalhada.
- Tem razão. É a pureza que procuro. Digamos, uma pureza como a de Jean Genet.
Joana caminha com Pablo até o apartamento dela, que fica próximo.
Os dois se sentam no chão.
Depois, ele se deita e põe a cabeça no colo dela.
Ficam uma porção de tempo calados, Joana passando a mão nos cabelos dele.
Pablo repete:
- Vim para te salvar, tirar você daqui. Volte comigo para o Rio. Fique em meu apartamento, procuraremos outro emprego para você.
Mas ela sacode a cabeça, é um não.
Pouco depois, Pablo se levanta e diz que vai embora. Antes que ele saia, Joana fala:
- Somos namorados outra vez. Namorados distantes, infiéis, cada qual para seu lado. Mas namorados, mesmo assim.
Ele a beija nas duas faces, garante que vai telefonar e escrever sempre. Mas, depois que Pablo sai, Joana tem uma repentina certeza de que ele nunca mandará nada.
E, se mandar, ela não responderá nunca.

Joana continuou na cidade, mas com um medo cada vez maior. E tinha razão. Não demorou e ela foi assassinada com três tiros no peito.
Não sei ainda quem a matou.
Terá sido um colega do jornal da cidade, com quem ela estava namorando e que enlouqueceu? E então a matou nua, na cama do seu apartamento, usando um travesseiro em cima do cano da arma, para abafar o ruído dos tiros?
Ou foi um capanga do seu ultrajado ex-marido fazendeiro que, passando numa moto, disparou os tiros contra Joana, que dirigia seu carro?
Não adianta insistir mais, eu não sei. Esse final, ainda vou ter de inventar.

CADERNO DE POESIA



ARMANDO FREITAS FILHO



Batismo

Banho simétrico, quadriculado
evitando lavar as partes
tudo o que o primeiro cheiro úmido
de mulher molhou: a cara, o sabor
de fruta pisada, o perfume fundo
de adubo, o punhado do sexo, a placa
na mão e na alma, a ponta
do dedo médio, e o que ficou
grudado nos cabelos – sal, soro, suor
goma, gosto de cola, chuva e choro.

Um dia depois do outro

Esta página expirou.
Não deu para ficar tudo claro.
Trabalho com preto e branco
em meio a sono e súbito
misturado à noite da terra.
Apodreço, alerta
a cabeça alta, no sol.
O tempo pula, agulha
perceptível, nos ponteiros
dos relógios da casa incansável
cercada do dia que nasce
em alumínio severo.

Em casa

A mesa da madrugada está posta.
Quase: ainda no esboço. Faltam dois copos
uma xícara, todas as facas e colheres.
Quem a pôs assim parou: sono, falência
desânimo. Talvez durma também inter-
rompida no linho do sonho, lá em cima.

O escuro comeu uma perna, um braço e
meio, deixou intacto o tronco, um pouco
do rosto. Na toalha da copa, no lençol
do quarto, a noite parou para o dia vir
tentando completar o trabalho e o corpo:
todo dia seguinte é a morte e a manhã.

Estes poemas fazem parte do livro “Lar,”, de Armando Freitas Filho, lançado este ano pela Companhia das Letras.


DINU FLAMAND


Tradução Sonia Coutinho



Sacada

Exercício respiratório – pelo maior tempo possível
reter a adiada erupção de ar
com a florescência de lilases num ramo
que se estendeu dentro de você.

preguiçosa polinização
no horizonte
visto
por cima dos gerânios na sacada
onde levita o mistério do vento

o mar

continua a ovular na direção
de nuvens assexuadas

céu de uma cor irreversível

melancolia como uma súbita ereção
no centro da vida
tarde.

N.T. Em romeno, a palavra “mar” é feminina.


Aprisionado

Ela chega com um cheiro de pele quente
da cama
de outro

tira um sol com erva do seu cabelo
e estende a mão
entre seus dedos a água toma a forma de um copo
ela envia para as profundezas a emoção de um beijo esquecido.

Uma felicidade amuralhada a protege do sono
como uma fortaleza
ela está impregnada por uma densa fosforescência
intangível
enquanto pulsa em minha direção
de uma insuportavelmente próxima
distância
onde me afogo em anos luz de encargos.

Eu abriria de repente o meu peito para recebê-la já
bem dentro do meu silêncio
ruidoso
nos verdes cumes de Abril

mas nenhuma das minhas palavras a toca
e espero
aprisionado no latido do eco inútil
que me repete.


Vinho derramado

Enquanto eu acho procurando você acha achando
uma fenda na fibra do tempo, para ali nos escondermos desta cidade onde não é bom
ser o intruso universal, no fim do milênio.

Mal você me abandona e a vejo chegar,
com migração de pedras roladas por nuvens
em estradas que antigamente também nos trouxeram, no centro das suas margens.

Estou cansado da sua solidão, que não pode
ser curada nem mesmo engolida por minha
canibal solidão;
como você permanece em distância próxima,
parece vinho derramado, mas impedido
de cair pela luva de sombra da minha mão...

N.T. Estes poemas foram traduzidos a partir da tradução para o inglês feita por Olga Dunca. Houve também consultas ao original romeno, com o uso de dicionário, e uma constante colaboração do autor, por e-mail.


LUCINDA PERSONA



Notícia mínima

Coisa nenhuma se esconde à vida
E nem se esconde ao poder da língua
a notícia mínima.

Um ovo levemente frito está no prato
a ponto de ser um sonho, elemento perfeito,
mantimento ativo

E tudo se reduz ao velho e justo termo:
o que vive sem sonhos, vivendo, está morto.

Abrindo vagens

Não será extravagância
(à beira da pia)
rever a vida
através do legume
que já está morto?

Ó inutilidade
Por amor do teu nome
suavizo labores
Poemas nunca serão demais
Haverá sempre o lugar certo
para cada um e suas palavras
como se não houvesse erro
e a alegria fosse possível
Nada se faz no mundo
sem que haja motivo
Quem chora entre um minuto e outro
abrindo o ventre das vagens
para a vida o faz.

Estes poemas fazem parte do novo livro de Lucinda Persona , “Tempo comum,” lançado este ano pela 7 Letras.


ARRIETE VILELA


Poema 26

Montas o laço
da armadilha tão clara
e calmamente sob os meus pés
que me ofereço, inclusive, para te ajudar
no remate ao nó.

Em docilidade, permito que tires
todas as exatas medidas dos meus passos,
para que eu não os dê muito rígidos
em direção ao inevitável vazio,
às devastadoras não-referências.

É assim que deve ser,
pois se trata de libertação:
tu me preparas a armadilha,
e eu te ajudo no requinte do laço.

Desse modo, dificilmente saberemos
quem feriu a ética dessa paixão
e a fez sangrar para que doesse sempre,
sempre e sempre, como uma maldição.

(Do livro “Palavras em travessia”)
Arriete Vilela é alagoana e mora em Maceió. Professora de Letras, publicou os livros de contos “Maria flor”; “Tardios afetos”;” Grande baú, a infância” e de poemas “A rede do anjo”; “Vadios afetos”; “O ócio dos anjos ignorados”, entre outros. Em 2005, saiu seu primeiro romance, “Lãs ao vento”, que recebeu o Prêmio Lúcia Aizim, da União Brasileira de Escritores do Rio. Em 2008, o livro “Ávidas paixões, áridos amores” ganhou o Prêmio Marly de Oliveira, também da UBE.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

JOÃO UBALDO: O ROMANCE NOVO É EM ITAPARICA



“Figurão do Leblão” foi como João Ubaldo se autodenominou, brincalhonamente, quando eu disse que ele é o maior figurão literário com quem já convivi. Claro, temos aí o Prêmio Camões, a Academia Brasileira de Letras, etc etc.
João Ubaldo está com um romance novo: “Albatroz azul”, em suas palavras: “Uma história itaparicana.” O livro já foi entregue há dois meses à Editora Nova Fronteira.
Eu e Ubaldo compartilhamos um tempo em Salvador que ninguém poderia esquecer. Um tempo em que estavam presentes, entre outros, os muito notórios Jorge Amado e Glauber Rocha. A gente convivia com essas pessoas, conversava com elas.
Fico até meio sem jeito de lembrar isso, mas João Ubaldo e eu estreamos juntos, nos anos 60 (éramos crianças, ainda...), numa coletânea chamada “Reunião”, editada pela Universidade da Bahia e com prefácio de Eduardo Portella.
Os outros participantes do livro – cada um com três contos - eram o professor David Salles, que morreu muito jovem, e o jornalista Noênio Spínola.
João Ubaldo, além do imenso talento, na verdade tem dado duro, é preciso reconhecer. Entre outras coisas, passou sete anos em Itaparica, com a família inteira, Berenice e os filhos, para escrever o belo “Viva o povo brasileiro.”
Um dia, naquele tempo, Berenice e João Ubaldo me convidaram para almoçar na casa deles, próxima ao jardim de Itaparica. Depois do almoço, fui com Ubaldo até a biblioteca da cidade, onde ele tinha seu computador instalado, com uma porção de fios pelo chão - e escrevia todo dia, várias horas por dia.
Em seguida, fomos para a Praça da Quitanda, onde João Ubaldo tomava suas cervejas – e onde, agora (estive lá recentemente), fachadas de casas exibem os títulos dos seus livros.


Ubaldo é o mito de Itaparica, seu aniversário figura no calendário de grandes eventos locais.
Breve, todos estaremos lendo o “Albatroz azul.” Tentei, desde já, arrancar alguma coisa de JU sobre o livro, mas não consegui. Só ouvi dele que a história se passa em Itaparica. E ele revelou como se sente, tendo acabado mais uma produção:
- Estou meio lelé do juízo, condição agravada pelo post partum triste que me dá quando termino um livro. Enfim, lá se vai um romance novo, seja o que Deus quiser!
E ele acrescentou, aqui nostalgicamente:
- Será verdade, se você disser que tenho saudade dos bons tempos de “Reunião” e da Bahia, da Rua Chile e das ilusões perdidas.
João Ubaldo me mandou por e-mail um clipe com Aznavour cantando “Hier Encore” e disse que eu podia chorar - ele, mesmo de longe, estaria chorando junto comigo.
Mas, embora eu ame tanto a Bahia daquele tempo, não chorei mais, já chorei de-mais. Só pensei, de repente: pós tudo, ex tudo, mudo.

Textos escritos pelo artista. Fotos de um apartamento que a morte esvaziou. Um projeto de Luiz Ernesto.

Luiz Ernesto


De maneira geral, imagina-se que a volta à pintura seja a grande característica que uniu a Geração 80 das artes plásticas brasileiras - uma geração que se tornou mais visível com a exposição “Como vai você, Geração 80?”, realizada em 1984.
Mas alguns dos participantes desse grupo de artistas parece que nunca tiveram nada, ou tiveram pouco a ver com esse gozo de pintar – é o caso de Luiz Ernesto, que naquele tempo já fazia instalações e com uma dela participou da grande mostra de 1984.
Ele fala disso e do que anda fazendo agora: coisas bem antenadas com o momento presente das artes visuais.


SC - Você já vinha colocando palavras e frases em seus objetos, em suas placas de fibra de vidro. Agora, você me contou que está escrevendo textos mais longos, que poderão ser utilizados separadamente, em outro tipo de projeto. É isso mesmo? Será que entendi direito? Você poderia explicar melhor?

LE - Sempre fui um leitor compulsivo. Leio de tudo um pouco. Além disso, como professor , tenho que usar as palavras, mesmo atuando no campo das artes visuais. Também escrevi muitos textos para exposições. Acredito que a questão da arte está na atribuição de sentidos, o que significa que a obra sempre suscita a palavra. Não quero dizer que a obra seja redutível às palavras. Mas que estão sempre juntas. Não é por acaso que a maioria dos movimentos de vanguarda modernos tinham poetas como líderes. Foi pensando nestas questões que decidi acrescentar palavras aos trabalhos que iniciei em 2001. Era um trabalho híbrido, um material de escultura (a fibra de vidro), fotografia e pintura. O uso de palavras me pareceu um modo de expandir os sentidos e esse caráter híbrido. Mas a palavra, mesmo utilizada de forma ambígua, com uma relação não imediata com a imagem, é muito pontual, muito “instantânea”. Em trabalhos mais recentes, resolvi usar sentenças, que sugerem uma temporalidade, algo que acontece num tempo indefinido. Acho que chegar ao texto, o que estou desenvolvendo atualmente, foi uma conseqüência natural deste processo. Além disso, a experiência de desmontar o enorme apartamento onde viveu minha avó desencadeou estes textos. Quando começava a elaborar as sentenças, estas não paravam de encadear-se e, quando me dei conta, já eram textos.

SC – Então, se entendo bem, você está realizando um projeto que surgiu a partir do que encontrou no apartamento da sua avó, depois que ela morreu. Pode descrever esse projeto?

Após a morte de minha avó, a última moradora do apartamento, iniciamos um processo doloroso de desmontá-lo para vendê-lo. O apartamento era muito grande e repleto de objetos de antepassados e outros de toda a família. Como era um lugar de muitas recordações, resolvi fotografá-lo, apenas para guardar de lembrança. Quando me dei conta, tinha centenas de fotos e resolvi então utilizá-las num projeto. Das lembranças que tenho do lugar é que partiram os textos. Eles se relacionam às coisas e aos ambientes do apartamento. Os objetos sempre foram as referências para meu trabalho. O projeto, em princípio, incluirá textos, fotos e desenhos. Mas tudo ainda está muito no começo e certamente ocorrerão surpresas e mudanças pelo caminho.

SC - Você ensina há muitos anos na Escola de Artes Visuais. Poderia falar da sua relação com essa atividade? Como se sente o professor Luiz Ernesto? Ensinar interfere em seu trabalho de artista?

LE - Desde que comecei minha carreira como artista, comecei também a dar aulas. É algo que gosto muito de fazer e que, na verdade, nunca pensei como uma coisa em separado. Dou aulas porque sou artista e o que desenvolvo no atelier é fruto de tudo o que estudo e aprendo dando aulas. Lidar com obras de outras pessoas é um ótimo motivo para sair do atelier e não ficar obcecado com o próprio umbigo. Sempre lembro de uma passagem de Ítalo Calvino, em “Se um Viajante numa Noite de Inverno”, onde ele diz: “Como eu escreveria bem, se não existisse!... O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade, a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento, os truques do ofício: todos os elementos que tornam reconhecível como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula, que limita minhas possibilidades.” Se não podemos nos livrar disso, ao menos podemos colocar tudo em discussão. Dar aulas é uma forma de fazer isso.


SC - A Geração 80, da qual você faz parte, tendo participado das marcantes exposições do “movimento”, no período, enfatizou muito a questão da volta da pintura e celebrou o prazer matisseano de pintar. Mas você seguiu um caminho bem particular. Pintou durante certo período, uma pintura me parece que de tons mais sombrios e um toque algo surreal. E logo partiu para um processo de transformação das telas em "objetos". Primeiro, veio uma incorporação-colagem de algumas peças a essas telas, um pouco à moda dos "combines" de Rauschenberg. Depois, você abandonou completamente as telas, passando a utilizar, em lugar delas, placas de fibra de vidro com fotografias incorporadas. Descreva como foi esse processo, como é que você o sentiu. E fale das diferenças entre você e o conjunto da Geração 80.

LE - De fato, a Geração 80 enfatizou a pintura, embora a exposição de 1984 apresentasse muitas instalações. Meu trabalho na exposição era uma delas. Quanto ao prazer de pintar, sempre tive minhas dúvidas quanto a isto. O processo criativo, seja lá em que meio o artista trabalhe, é sempre difícil, tenso. Envolve dúvidas, assumir riscos, muitas horas de fazer e refazer, lidar com erros e limites. Acho que essa defesa do prazer sempre foi uma posição meio ingênua de alguns artistas daquela época.
Sempre conduzi meu trabalho de acordo com os problemas que iam surgindo. Nunca defendi um meio a priori como um valor em si mesmo

SC - Você poderia passar para mim alguns textos do projeto-memória do apartamento que foi da sua avó?

LE - Aí vão dois.


O corredor

Um espaço neutro entre o que se fez e o que se vai fazer. Ninguém se dá conta ao passar por um corredor. Ali, a consciência do presente se desvanece. O que importa está em outro lugar. Uma espécie de invisibilidade costuma envolvê-lo. Sem qualquer atrativo, sombrio, com um leve cheiro de mofo, era um tanto assustador. Deslizava por treze metros pelas entranhas do apartamento. Em seu percurso, encontrava-se, em sua margem direita, com quatro quartos e dois banheiros e ao final lançava-se no maior cômodo da casa, cuja porta branca, fechada, impunha-lhe um limite com autoridade. Vez por outra, um vento insidioso, aproveitando-se do descuido de alguma janela mal trancada, invadia o ambiente. Surpreendendo a imobilidade das portas, incitava-as a bater violentamente em sequência, em uma tentativa vã de impedir-lhe a insolência. Pequenos objetos, papéis e jornais rolavam em cambalhotas empurrados pela correnteza, em meio ao estrondo das portas. Um raro momento de agitação que despertava aquele lugar de seu torpor habitual.

O escritório

Uma comprida estante, repleta de livros e alguns atlas antigos, alongavam-se pela parede da esquerda de quem entrava. Não era muito alta, um metro e meio, talvez. Sobre ela, um par de cavalos de bronze segurava alguns dos livros maiores. Em frente à estante, um longo castiçal de prata refulgia elegante, contrastando com a madeira escura da pesada mesa que o sustentava. Em frente às suas duas velas havia uma placa de prata para rebater a acidez das chamas. Nas paredes, acima da mesa, ficavam os retratos do Marquês, solene, com seu uniforme militar, sua esposa, o Visconde, seu filho e o do Conde, cunhado do Visconde. Dezenas de porta-retratos menores, distribuíam-se ao redor da sala. Todos retratos de antepassados: os homens de terno e as mulheres de vestidos longos e ar circunspecto. Mas havia em todas aquelas pessoas algo inquietante. Seus olhares eram oblíquos, dirigiam-se para algum ponto distante no interior de seu próprio mundo, raramente sorriam. Os fundos neutros não os colocavam em lugar algum. Ensimesmados e concentrados em seu próprio instante, eram completamente indiferentes aos olhares do futuro, futuro este que inexoravelmente os esqueceria relegando-os para sempre ao limbo dos inominados.

FARACO E QUIROGA, PARA QUEM GOSTA DE CONTO

Sérgio Faraco


Gostei muito de figurar no “Decálogo de um perfeito contista,” que saiu recentemente pela editora L&PM, organizado pelo premiado Sérgio Faraco e por Vera Moreira. O livro traz um debate entre contistas e intelectuais brasileiros em torno dos preceitos do uruguaio Horacio Quiroga.
Autor exclusivamente de contos, geralmente em torno de eventos fantásticos e macabros, na linha de Edgard Allan Poe, Quiroga (1879-1937) gostava de teorizar sobre sua prática.
Ele estabeleceu normas em torno do gênero em seu “Manual do perfeito contista”, de 1925, e em “Os truques do perfeito contista”, do mesmo ano. E criou e publicou, em 1927, na revista argentina “Babel”, seu “Decálogo do perfeito contista.”
Outro mestre do conto, o gaúcho Sérgio Faraco (um dos integrantes da famosa antologia do professor Ítalo Moriconi, “Os cem melhores contos brasileiros do século”), de parceria com Vera Moreira, partiram desse decálogo para criar o livro com comentários sobre as norma estabelecida por Horacio Quiroga.
Edição bonita e bem cuidada, o livro da L&PM interessa ao público em geral, a todos os que gostam do conto, a professores de literatura e, às pessoas ligadas às oficinas de criação literária.
Eu figuro neste livro, comentando cada item do decálogo, junto com gente muito boa, como Aldyr Garcia Schlee, Charles Kiefer, Cíntia Moscovich, Deonísio da Silva, Fábio Lucas, Flávio Moreira da Costa, Hélio Pólvora, Jacob Klintowitz, Jaime Prado Gouvêa, José Castello, Luís Augusto Fischer, Luiz Antonio de Assis Brasil, Marcelo Backes, Miguel Sanches Neto, Moacyr Scliar, Nelson de Oliveira, Paulo Hecker Filho, Roberto Gomes e Silveira de Souza. De mulher, somos apenas eu e a Cíntia Moscovich, mas valemos por muitas, não é, Cíntia?

ARMANDO E A POESIA "AUTOBIOGRÁFICA"



Armando Freitas Filho lançou recentemente seu novo livro, “Lar,”, pela Companhia das Letras. Armando já reunira sua obra, que agora cresce, em “Máquina de escrever” publicado pela Nova Fronteira em 2003.
O poeta, ao longo de uma vida, não interrompeu nunca sua premiada produção.
Ele ganhou por três vezes o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, com “3x4” (1985), “Máquina de escrever” e “Raro mar” (2006). E recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional, com “Fio terra” (2000).
Walter Carvalho prepara um filme sobre o Armando e poesia, com o título de “Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície.”
Encontrei imprevistamente com Armando, um poeta que conheço e admiro de longa data, embora o veja pouco, no café da Escola de Artes Visuais do Parque Lage - e assim surgiu a oportunidade para esta entrevista.

SC - Por que você decidiu deixar a vírgula no “Lar,”? É uma coisa diferente e corajosa fazer um título assim.

AFF -Meu livro se chamava “Lar”. Antes de mandar os originais para a Companhia das Letras pedi ao Sergio Liuzzi, que já tinha feito a capa do meu livro anterior, “Raro mar”, também publicado pela Companhia, além de pequenos livros de minha autoria fora do comércio – livros de artista – em tiragem reduzida, tais como “Para este papel” e “Mr. Interlúdio”, que ele fizesse a capa de “Lar”. Tinha eu algumas idéias que ele esqueceu, para sorte minha, e um belo dia me aparece na tela do meu computador a capa com a vírgula instigante. Meu único mérito foi aceitar de imediato aquele achado, que tinha tudo a ver com o livro em si, que ele, Sergio, só conhecia do que eu contava para ele muito vagamente, sem mostrar nenhum poema. Ele acertou na vírgula e acertou na cor da capa, que eu teimava que fosse cinza. Acho que a vírgula serve não só para esse livro como para minha concepção de poesia, ainda mais para uma poesia que puxa pela memória, que é sempre lacunar, uma e outra. Portanto, a coragem e a novidade, que provocam a diferença, foram todas dele. Desejo que minha poesia corresponda a esses atributos. Aliás, essa vírgula, tem causado espécie generalizada. Todos que a viram, comentam. Nunca vi prefaciador fazer referência à capa do livro que prefacia e o Vagner Camilo, autor do prefácio de “Lar,” comenta a ocorrência da vírgula inquietante. Não custa chamar a atenção, também, para a esplêndida gravura de Carlos Martins, “Interior com poltrona,” na quarta capa, lugar inusual para se apresentar a imagem que representa muito da atmosfera do livro. Creio que sua exposição, assim, isolada, aumentou a solidão ou o desamparo que ela transmite.


SC – Ainda não li o “Lar,” inteiro, mas senti neste livro digamos uma dor, talvez mais presente em sua poesia agora, com a passagem do tempo, com uma consciência da temporalidade do corpo. Essa impressão minha é verdadeira, corresponde de fato à realidade da sua poesia agora?

AFF - Acho que, quando se chega a uma certa idade, estou a meses de completar 70 anos, esses temas passam a ser problemas. Se, quando moço, no meu livro de estréia, “Palavra”, de 1963, escrevia este poema:

CORPO


Acrobata enredado
em clausura de pele
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?

Doce máquina
com engrenagem de músculo
suspiro e rangido
o espaço devora
seu movimento
(braços e pernas
sem explosão).

Engenho de febre
sono e lembrança
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.

e ia para a praia, ou para Petrópolis, com a sensação do dever cumprido, agora não vou mais para lugar nenhum, pois nunca se cumpre um dever, na poesia, suficientemente; ou, se vou, sei que quando a "Indesejada das gentes chegar, não encontrará a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar". Já que essa perfeição humilde só os grandes, como Manuel Bandeira, que a praticou e a escreveu plenamente, conseguem.

SC - Como foi que você partiu para a escrita de um livro de poesia "autobiográfica"? Claro que se pode dizer que há um elemento autobiográfico em toda a poesia, mas neste “Lar,” há uma espécie de direcionamento neste sentido, não? Diga como foi que aconteceu esse enfoque diferenciado.

AFF - Desde sempre, em todos os meus livros, a casa, o corpo, com seus motivos e consequências, estiveram presentes. Posso colher no mesmo longínquo Palavra este poema que confirma o que digo:

CASA


A casa torta
escura e morta
é coisa virando no espaço
(sem espaço).

A casa enorme guarda:
furor de pedra escondida
parede em súbita subida
degrau embolado no escuro
salto de muro sem furo
corpo retido no corpo
desmaio de roupa vazia
olho aberto-fechado
bicho peludo deitado
toque encolhido na mão
pé cortado no chão
contato tecendo rochedo
imóveis móveis de som.


Mas, como você bem nota, neste “Lar,” houve uma concentração, como se eu apanhasse, num único ramo, todos esses motivos que, salvo erro, ganharam mais espessura por um lado, enquanto, por outro, eu abria mão das cores mais chamativas. Tenho a impressão que, hoje, sou mais sóbrio, trabalho com o preto e com o branco, digamos, e se existe alguma nuança ela mal chega ao cinza.


SC - A esta altura, com uma obra poética numerosa e consagrada, o que você diria, em resumo, sobre sua atividade de poeta? O que você obteve? Para onde isso o levou? Era uma fatalidade, ser poeta? Ou foi uma opção?

AFF - Não foi opção nem fatalidade. Foi vocação pura e simples, que acabou me levando a obter um lugar na minha geração. A recepção melhorou muito com o tempo, ou, talvez, mais exatamente, se alargou. Afinal, por teimar tanto, e por tantos anos, às vezes, a gente acaba convencendo os outros. Tomara que esse convencimento perdure o mais que puder, já que o esquecimento é inevitável. De fato, minha produção poética é numerosa, mas quanto à consagração ela só acontece quando quem consagra é generosa como você.


SC - Diga alguma coisa sobre a poesia agora, no Brasil ou no exterior, em todos os tempos, como marca de alguns seres humanos, privilegiados ou amaldiçoados.

AFF - Nunca senti, por ser poeta, privilégio ou maldição. Isso só acontece em outros patamares, onde vivem Carlos Drummond e Rimbaud, para só citar os dois primeiros que me vieram, de pronto, e que trazem essas marcas e respiram, com naturalidade, no ar rarefeito dos absolutamente eleitos. As minhas marcas são cotidianas: paciência e urgência apaixonadas são as que me ocorreram nesse momento.

SIMONE COM KASIMIR MALIÉVITCH

Sonia Coutinho


Conto de Sonia Coutinho


Sou eu, Simone. Posso entrar? Não, obrigada, eu me sento aqui mesmo, nesta cadeira.
O quê? Você também ouviu falar disso?
Mas não é verdade.
Com Marcel Duchamp, nunca! Não aconteceu nada entre nós, pode acreditar.
Marcel esteve no Rio, ano passado, nós nos encontramos algumas vezes.
Um homem incrível, sofisticado. Mas nunca fomos para a cama, juro.
Fui para a cama com um artista, sim, mas aconteceu este ano – e foi com Kasimir Maliévitch.
Ora, procure nos livros, veja as reproduções dos seus trabalhos. Depois, se você quiser, podemos conversar sobre a arte dele.
No momento, prefiro que não, estou vivendo apenas o impacto da paixão que senti por ele. Só quero falar disso.
Minha idade? Ora, 55 anos. Acha que estou velha demais para ter uma experiência amorosa? Isso é preconceito. Para certas coisas, não há idade.
Kasimir Maliévitch me levou de volta aos sentimentos da minha adolescência.
Não, não contei a muita gente, não, só falei por alto com duas ou três amigas, e pedindo discrição.
Sim, não devem ter sido discretas.
Sei que a informação vazou, e aí veio essa onda de boatos, confundindo tudo.
Apareci publicamente com Marcel, tive o encargo de mostrar o Rio a ele. E nunca me viram com Maliévitch, que não teve recepção oficial, é uma relação pessoal minha.
Agora, dizem que fui para a cama com Marcel e que estou inventando essa história com Kasimir.
Sim, faz diferença para mim.
Não gosto que pensem que fui para a cama com Marcel Duchamp, fiquei ressentida com ele. Fui rejeitada, sabe? Mas deixe isso para lá.
O que quero é falar com você sobre Kasimir. Quero contar exatamente o que aconteceu entre nós.
Não, não precisa explicar nada ninguém nem tentar restabelecer nenhuma verdade. Quero apenas que você saiba o que aconteceu e acredite em mim.
Vou contar, agora conto.
Eu já conhecia Kasimir, tinha estado com ele em Vitebsk, mas isso foi mais de duas décadas atrás, incrível como o tempo passa.
Sim, Vitebsk, um importante centro cultural na Rússia. A cidade ficou famosa no mundo da arte porque Marc Chagall nasceu lá.
Maliévitch e Chagall fundaram em Vitebsk um Museu de Arte Moderna importante.
Ora, fica na Bielorrússia, na região dos lagos glaciares, perto de três grandes rios. Dá para sacar alguma coisa?
Mas minha aproximação com Kasimir, naquele tempo, foi superficial, embora houvesse, da minha parte algo além de uma mera simpatia.
Ele era professor, quando estive lá. E nossas conversas foram quase sempre em torno das suas atividades de ensino e do grupo que ele fundou: o Unovis (Defensores da Nova Arte).
O que fui fazer em Vitebsk? Participar de um programa para músicos, com duração de um semestre. Você sabe, toco harpa.
Eu era uma jovem harpista brasileira na Rússia.
Não, depois que voltei ao Brasil, nunca mais vi Kasimir Maliévitch nem tive notícias suas.
E então, vinte e tantos anos depois, no final do ano passado, começam a chegar e-mails dele, vindos de São Petersburgo.
Houve também um telefonema... Não, não foi em russo, quando estive em Vitebsk aprendi um pouco de russo, mas esqueci quase tudo.
Nós nos comunicamos em francês. Kasimir dizia que estava a caminho do Brasil, que viria ao Rio.
Então, nós nos reveríamos! Fiquei encantada e assustada, ao mesmo tempo.
Por um lado, tive uma certeza irracional de que Kasimir me traria de volta a minha juventude e o tempo feliz em Vitebsk.
Por outro lado, morri de medo: o que acharia ele da minha aparência, agora?
Sendo mais jovem do que eu e a crueldade do tempo bem maior com as mulheres? Quando nos conhecemos, eu tinha 30 e tantos anos; ele, três ou quatro a menos.
Avisei pelo telefone, com um riso-quase-choro: estou gordíssima, Kasimir.
E enviei pela internet uma foto recente minha, para que ele me reconhecesse no encontro que marcamos, para alguns dias depois, na porta de um shopping na Zona Sul do Rio.
O combinado foi que almoçaríamos num restaurante de saladas e, em seguida, tomaríamos um café numa livraria, no agradavelmente pouco movimentado terceiro piso do shopping.
Tudo bem simples. E cada um pagaria seus gastos, como convém a pessoas como nós, artistas, poetas, músicos.
Kasimir comentou, pelo telefone: “On reste des artistes, Simone.”
Na hora combinada, vi à minha frente seu rosto largo, sólido e belo.
Os olhos eram sonhadores, fixos em algum ponto distante, muito além do que estava em torno; os lábios, estreitos, algo tristes.
Kasimir Malevich em pessoa, na Cidade Que Amo, a Mais Linda do Mundo, o Rio de Janeiro. Uma combinação irresistível.
Não podia deixar de acontecer. Foi uma paixão fulminante, um coup de foudre.
Nosso encontro anterior, entendi, tinha sido apenas um prelúdio para Aquele Momento que o Destino nos Reservava, os dois ali em pé, tantos anos depois, diante de um shopping no Rio.
Eu usava uns óculos escuros redondos e imensos, que tinha comprado especialmente para cobrir meu rosto e impedir que Kasimir visse as inevitáveis marcas do tempo.
O almoço foi um pouco confuso, ele não acertou a se servir no bufê a quilo, e não entendeu que só precisaria pagar a conta na saída.
E meu francês, não tão desembaraçado, não me permitia explicar detalhes.
Depois do almoço, já estávamos mais calmos e acertados. Quando entramos na livraria e nos sentamos para tomar café, tudo se encaixou.
“C’est civilisé ici, Simone”, disse Kasimir, declaração que talvez não fosse inteiramente cortês, porque insinuava uma opinião menos favorável sobre outros lugares. Mas, de qualquer forma, gostei da sua aprovação.
Havia pouca gente no café, ninguém nos incomodaria e poderíamos conversar à vontade.
Lembramos nosso período em Vitebsk, e lamentei não termos aprofundado a relação. Era o momento de compensar isso, disse Kasimir.
Então, pedi que me falasse da sua vida e da sua arte. E, em frases breves, ele foi recapitulando tudo, desde seu nascimento perto de Kiev, na Ucrânia.
Os pais de Kasimir, os Malewicz, eram poloneses e ele foi batizado na igreja católica romana. O pai, supervisor nas refinarias de açúcar, viajava muito.
Kasimir gostava do campo – completou, mais tarde, os cinco anos da Escola de Agricultura.
Aprendeu por si mesmo, ele disse, a pintar as paisagens e os camponeses que o rodeavam. E foi admitido na Academia de Belas Artes de Kiev.
Depois da morte do seu pai, mudou-se para Moscou e estudou na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura, e no estúdio de um artista.
Nesse período foi que ele descobriu, em coleções particulares de quadros franceses, as obras dos impressionistas, cubistas, fauvistas.
Em seguida, veio para ele uma grande movimentação artística, com várias exposições suas no eixo Moscou-São Petersburgo.
Pedimos um segundo café e ele lembrou momentos marcantes da sua evolução.
Contatos com os poetas Kruchenykh e Khebnikov. Os cenários e trajes que fez para a ópera futurista “Vitória sobre o sol”.
Uma exposição junto com Vladimir Tatlin. A amizade com os pintores Natalia Gontcharova e Mikhail Larionov.
Finalmente, Kasimir falou, com alguma emoção, da escola que criou, o “Suprematismo.”
Mas então se interrompeu e disse que poderíamos ver algumas obras suas, quando saíssemos do café – estavam expostas num casarão no Centro do Rio.
Entusiasmada, eu já fazia um sinal para a garçonete trazer a conta, mas Kasimir me deteve.
- Antes de sairmos, vamos falar de você, Simone.
Mas eu disse pouco. Que continuo morando na Gávea, num pequeno apartamento com vista bonita. Que continuo sozinha. Que minha carreira sofreu contratempos, mas ainda toco harpa.
- Vamos embora – rematei, apressadamente. – Agora quero ver suas telas.
E assim pagamos nossas contas separadas, e assim nos levantamos.
Foi quando, inesperadamente, Kasimir estendeu a mão e a colocou atrás do meu pescoço.
Senti por ele uma atração que era ao mesmo tempo espiritual e muito física, digo mesmo, sem pudor, que era sexual.
Foi unidos por esse abraço que ele, depois de uma corrida de táxi até o Centro, me levou através das salas onde estavam penduradas suas telas.
A emoção diante das obras de Maliévitch era tanta que fiquei reduzida aos lugares comuns.
Ah, meu Deus, pensei, que maravilha a mente humana, o espírito humano. Como o ser humano é inventivo. Que grande e inexplicável sonho, a criação artística.
Paramos diante do “Quadrado negro,” do “Círculo negro”, e da “Cruz negra, ” telas próximas umas das outras, enfileiradas numa parede exclusiva.
E de repente captei o sentido sagrado dessas telas, que eu nunca percebera. Em sua pureza absoluta, suas figuras elementares eram símbolos do universo. Pensei: “A geometria pode ser mística. Estou diante disso.”
Olhei para o rosto de Maliévitch e a compreensão se completou: ele é um místico. Seu Suprematismo é uma “religião da arte.”
Geometria, bah! Não me venha com Mondrian! Era o que eu dizia a um professor de História da Arte cujo curso eu freqüentava.
Agora, entendia as figuras que, na verdade, surgem desde o início da história da humanidade.
O círculo de pedras de Stonehenge! A geometria das pirâmides! O “Quadrado negro” de Maliévitch!
Queria ficar ali para sempre, penetrada por essa revelação, vivendo-a em todas as suas implicações.
Mas Kasimir me puxou para adiante e fomos até a sala onde estavam outras telas suas, aquelas com figuras humanas.
Camponeses em sua solitária e monumental simplicidade, contra um fundo de terras lavradas.
Kasimir Maliévitch contou que apoiara a Revolução de 1917 e fora aceito por seus realizadores. Mas, depois de um período, venceram a burocracia e a repressão.
Sua arte foi considerada elitista e incompreensível para as massas. Veio a imposição oficial do Realismo Socialista.
Isolado, quase esquecido, Kasimir, como ele me contou, passou a viver outra fase, em seu trabalho.
Estava pintando figuras detalhadas, como as que vimos a seguir. Um auto-retrato. Um retrato da sua mulher (desviei a vista).
Os dois com gestos sacralizados e uma postura reta, lembrando ícones, enquanto as roupas, a composição dos quadros, evocam o Renascimento.
Uma nostalgia da visão “clássica?” Mas eu, na verdade, não queria mais explicações.
Kasimir ainda falava da sua vida e da sua arte, mas eu já não ouvia.
Aproximei meu corpo do seu, entreguei-me plenamente ao seu abraço.
Kasimir tinha um cheiro simples de capim do campo, o cheiro de um homem que trabalhava com a terra, um camponês.
Continuamos a caminhar, abraçados. Quando passamos por uma janela do casarão, percebi que havia neve, lá fora.
Não estávamos mais no Rio e sim na Rússia.
Kasimir abriu uma porta e saímos, por entre muita neblina, por sobre a interminável neve russa, voamos sobre Moscou, passamos pela Praça Vermelha, nos detivemos por alguns instantes em cima da fantástica catedral de São Basílio, continuamos voando em direção a São Petersburgo...
O tempo inteiro, ele falava.
Os Romanov, a última família imperial russa... o fraco tzar Nicolau II, dominado pela mulher, a Alexandra.. Os mágicos e ocultistas que os cercavam... Rasputin, o único que detinha os sangramentos do filho hemofílico do casal...
E naquele momento chegamos a São Petersburgo e descemos diante de uma casa, uma hospedaria. Subimos uma escada, entramos num quarto. Ele e eu tiramos a roupa, nos enfiamos debaixo dos cobertores...
Nada mais importava.
Fizemos amor, longamente.
Claro, Kasimir Maliévitch voltou para a Rússia, provavelmente nunca mais o verei.
Admito que, ano passado, tive vontade de me deitar com Duchamp, um homem fascinante.
Aliás, mais interessante como pessoa, pelas atitudes que tomou, do que por sua obra.
Claro que adorei ver Marcel jogando xadrez. Mas não aconteceu nada entre nós.
Não, não tentei de verdade seduzir Duchamp, mas lhe revelei meus sentimentos. E deparei com sua absoluta frieza. Ele deixou claro que queria apenas conversar.
Depois da sua partida, uma pessoa confiável me contou o que pouca gente sabia: Duchamp, naquele momento, estava perdidamente apaixonado por Henri-Pierre Roché.
Sim, Roché, o escritor, o autor do romance “Jules et Jim”, que Truffaut adaptou para o cinema.
Não, você não precisa explicar nada a ninguém. Fica entre nós. Se, depois do que lhe contei, você acredita em mim, se tem certeza de que estou dizendo a verdade, para mim basta.

CADERNO DE POESIA CINCO POETAS, DE A a Z

Claudius Portugal

(foto: André Portugal)
Fluxo

Amanhã é segunda
Primeiro dia útil
Da semana

O ontem está morto
O mais do amanhã é a morte

Que as coisas continuem
Como antes
Antes as coisas não continuem

A casa

Não escolhi o meu pai
Não escolhi a minha mãe
Não escolhi a minha família
Não escolhi a cor dos meus olhos
Não escolhi o contorno da minha boca
Não escolhi este corpo
Não escolhi o país onde nasci

Nunca se sabe que tipo de coisa
Se há de encontrar
Na própria casa

Nunca se sabe


Fou

O tempo nos move a permanecermos água

Sendo água desdenharmos dos lagos

Para fluir ciente de que todas as águas
Um dia mar serão espelhos onde a lua
Debruçada oferece sete fôlegos aos peixes
Deita flores estrelas sonhos, abismos de luz,
E esta sombra que há por detrás de toda luz
Na nuvem que passa sobre a areia branca
Sem que se veja nenhum prenúncio de chuva
Onde deitados a amar esta noite de verão
Pronuncio teu sorriso na consoante líquida
Amor com uma gran M, com uma M mayúscula

A escorrer como sêmen entre as tuas pernas...


História natural

Folhas secas
Caem

Galhos fracos são podados

Com as flores vai junto
o cartão de pêsames


Pedra

Uma casa. Uma panela. Uma calçada.
Minério.
De toque, de cantaria, polida, filosofal.
Jogada sobre a testa uma arma mortal.
Fincada na terra – uma lápide.
No meio do caminho, mistério.
Com amor,
Para sempre...

Ao pegar uma pedra
Sempre pergunte o que ela quer ser


Claudius Portugal, poeta e editor baiano, publicou: “Carta à família”, “Em mãos,” “Olho de gato”, “Notas bandalhas”, “WXYZ”, “Negro azul,” “Duende”, “Águas”, “Texto táctil”.É autor de livros sobre artes visuais: “Outras cores – 27 artistas da Bahia, reportagens plásticas”, “Sérgio Rabinovitz, a poesia da cor”, “Pinturas recentes de Sante Scaldaferri”, “Murilo, a cor desta cidade”. Também escreve e adapta para teatro. Foram encenados:: “Quincas Berro d’Água”, “Pelo telefone,” “Cara amiga Sarah H.”, “Não vamos falar nisso agora”, “Poesia é coisa de mulher”, “Noite na taverna”, e um esquete com trechos do livro “Navegação de cabotagem”, de Jorge Amado. Escreveu a rádio-novela “O caso da menina morta”, adaptação de um livro de Luís Henrique; e, ainda para o rádio, “Não foi o vento que a levou.” Atualmente, tem uma coluna de livros na Rádio Educadora da Bahia, programa Multicultura; dirige e apresenta, no Canal Assembléia Net 16, os programas da Assembléia – “Literatura,” “Atelier” e “Vamos falar de teatro. Coordena, para a P55 edições, a coleção Cartas Baianas.


Cristina Ferreira Pinto-Bailey

Reading Kristeva

I

Shattering the body,
Crossing: Exile.

And thus the continuous
Desire for
Crossings
Traversing
Moving on
(even if not Forward):
An Escape.


II

Passional Ex-Re-pression

I oscillate
(have always)
Between
Propriety and
Carefree spirit.
In the end:
I, neutral,
Like Sand.


The Possibility of Death

(on a painting by Karl Zebe)

The woman on the trapeze
lime green bikini
boyish looks
unsmiling mouth
zooms over
the possibility of death.


Down below
the boss´s satisfaction
and the audience´s expectation
– pleasure —
they drool over
a possible failure,
disaster,
the possibility of death.

A casa

Solidão
na casa barulhenta
burburinho de vozes esganiçadas.
Pedintes num duelo
esmolam atenção
em vão alcançam
um SOM (gemido).
Terminam caindo,
no silêncio,
PRESAS de toda poderosa
Mater Dolorosa.


Cristina Ferreira Pinto-Bailey, carioca de Santa Teresa e, como ela diz, “brasiliense de coração”, mora nos Estados Unidos desde 1983. Tem mestrado e doutourado pela Tulane University (Nova Orleans) e é professora universitária de português, espanhol e literatura latino-americana. Além de escritora e pesquisadora, é também tradutora literária. Traduziu, entre outros textos, o romance “Dentes ao sol,” de IgnacioLoyola Brandão, publicado em 2007. Seus poemas e narrativas apareceram em várias antologias no Brasil e Estados Unidos. Em 2002, publicou “Poesia da vida meia”, pela 7 Letras. Em 2004, “Gender, Discourse, and Desire in Twentieth-Century Brazilian Women’s Literature”,pela Purdue University Press. Organizou a coletânea “Urban Voices,” com contos de autoras brasileiras. Tem publicado inúmeros ensaios sobre escritores hispano-americanos em revistas especializadas.



JUDITH GROSSMANN
Love song

I asked you
To phone me
Daily
From Paris.
You smiled.
I asked you
To phone me
Daily
From London.
You laughed.
Now you say
You love me
Desperately.
I am through
With you.
Drop dead
For the time
You left me alone.

Visões d’Africa

No ano que vem
Nesta época do ano
Por ocasião do teu aniversário
Estaremos em terras d’África.
É preciso partir.
Quando lá pisarmos
Com minhas próprias mãos
Acenderei uma fogueira
E tu irás em busca de água.
As tendas
Nós as armaremos juntos
E nelas despenderemos
A primeira noite de paz.
Daqui sairemos incógnitos e finitos
E uma vez lá
Não mais farei nenhum poema
E tu mesmo te afastarás
De todos os teus estudos.
Cuidaremos das crianças e dos velhos
Últimos aristocratas existentes sobre o planeta.
Seremos nós o poema
O início de um novo tempo.
Descobri a fórmula universal
Descobri o modo
Solicitando a Castro
Com o testemunho de DaMatta
Pelo Doutor Thales
Antropólogo e o melhor anthropos
De transformar 72 em 27 anos de idade.
Nas noites de frio
Usaremos mantas
Como aquela com que se aquece
Pierre Édouard Leopold Verger
No seu fabuloso retrato na poltrona.
Recitaremos encantações
E tu farás de mim
Uma mulher a acender uma fogueira
E eu de ti
Um homem a buscar água.


Sonho causado por uma enguia
um segundo antes de despertar

Uma enguia visitou-me em sonhos
Escorregadia
Esganando-me a goela.
Ou era o sempre cipó
Do soneto de Jorge de Lima
O mesmo que esmagava florestas.
E eram multidões de estrelas de sangue
Rubro tinto
Com certeza o de Augusto dos Anjos
(Oh! O cansaço dos bisavós)
E as árvores implorando pausas sestas
De Millet e de Van Gogh.
E todos os lírios do campo
Para ofertar às criaturas mortas de sede.
Urubus voejavam
E a sorte era
A carne túrgida
Servia ainda de amparo
Ao espírito-mola
E nunca venceria a envilecente fadiga.
- Até o fim – rugiam as doces feras fraternas
Até o fim! Era o repique de um sino
E era o tigre ele próprio
Com seus coruscantes olhos de William Blake.
E para além do sonho
O real puro absoluto.


Judith Grossmann, escritora, ensaísta e Professor Emérito da UFBA, publicou “Linhagem de Rocinante: 35 poemas”, São José, 1959; O meio da pedra: nonas estórias genéticas, José Álvaro, 1970; “A noite estrelada: estórias do ínterim”, Francisco Alves, 1977 (Prêmio Brasília de Ficção, 1976; “Outros trópicos”, romance, José Olympio, 1980; “Temas de teoria da literatura”, Ática, 1982; “Cantos delituosos romance”, Nova Fronteira, 1985 (Prêmio Ficção/85 da Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA); “Meu amigo Marcel Proust romance”, Fundação Casa de Jorge Amado, 1995. Judith está presente em numerosas publicações, periódicos e antologias nacionais e internacionais. Os poemas que aqui figuram foram escolhidos pela autora, tirados do livro “Vária navegação: mostra de poesia”, Fundação Casa de Jorge Amado, 1996.




KÁTIA BORGES


O coração na chuva

Você apenas finge que sente.
Mas que tarde cinza
É essa que traz nos olhos?

Perita em perguntas-disfarce
deixo a outra entretida
em desarmar armadilhas,
organizar as cores do cubo
mágico, montar o móbile.

Ah, sou poeta, sabe?
Por isso é que sei criar
esses efeitos sentimentais
a partir do ridículo. Não diz
nada, apenas finge que sente,
que esqueceu de escrever
a carta de despedida,
perdeu as chaves e chove.

Ah, eu sei que não chove.
Agora deixa que eu finjo.


Poeminha anos 80

Organizamos um piquenique
Dentro do parque da cidade
Toalha xadrez, cesta de vime
- a santa ceia –
Convidamos um Judas
de aspecto meio junkie
e um Pedro afeito a negar
todas as coisas. E, claro,
aquele que fria milagres.
Fazia um sol dos diabos,
Tiago levaria anfetaminas.
Ele subiu as alamedas
Com as bolinhas coloridas
apertadas entre os dedos,
assobiando um rock.
Quando chegou, vimos,
Espantados, o que os
comprimidos derretidos
haviam deixado:
em suas mãos,
uma tela de Pollock.


Kátia Borges é poeta e jornalista. Formada pela Ufba, trabalha desde 1995 no jornal A TARDE, em Salvador. Atualmente, faz parte do grupo editorial da revista “Muito”, daquele jornal. Em 2002, publicou seu primeiro livro de poesia, “De volta à caixa de abelhas,” pela editora As Letras da Bahia. Figurou em duas antologias poéticas, “Concerto lírico para 15 vozes”, Aboio Livre Edições, e “Sete cantares de amigos”, Edições Arpoador. Participou de vários eventos literários, como “Poesia na Boca da Noite”, “Novas Letras da Bahia” e “Travessia das Palavras”. Na mais recente Bienal do Livro da Bahia, participou do Café Literário e da Praça do cordel e da Poesia. Foi selecionada para integrar a coletânea “Roteiros da Poesia Brasileira – Poetas do Ano 2000”, a sair pela Global Editora. Integrou ainda o projeto “Mídia Poesia”, de vídeopoesia, feito em parceria pela Rede Bahia e TVE. Tem dois livros de poesias inéditos, “Ticket Zen”, e “Uma balada para Janis.”


LUCINDA PERSONA



Estrelas

Ver (o que outro olho não vê)
acima de todas as coisas
estrelas
pontuais, incendiadas, dançarinas
estrelas
espalhadas como pó-de-arroz
estrelas
invadindo o terreno das solidões
e dos assuntos necessários
estrelas
multiplicando o valor da noite
num livre jogo de mercado
estrelas
alertando como faróis
estrelas
estrelas
e quanta necessidade eu tenho
de dizer mais.


Abrindo viagens

Não será extravagância
(à beira da pia)
rever a vida
através do legume
que já está morto?

Ó inutilidade
Por amor do teu nome
suavizo labores
Poemas nunca serão demais
Haverá sempre o lugar certo
para cada um e suas palavras
como se não houvesse erro
e a alegria fosse possível
Nada se faz no mundo
sem que haja motivo
Quem chora entre um minuto e outro
abrindo o ventre das vagens
para a vida o faz.


Invento depois de amanhã

É um dia pequeno
pequeno
pequeno
De eventos
a que estou habituada
De fracos fundamentos
e nenhuma gema

É um dia pequeno
Do que faço por costume
Da realidade
que vive de si mesma
e eu do medo de perdê-la

É um dia pequeno
com tanta força no mínimo
que invento depois de amanhã.


Estes poemas fazem parte do novo livro de Lucinda Persona , “Tempo comum,” lançado este ano pela 7 Letras. Lucinda é poeta e professora. Nasceu em Arapongas – PR. Vive em Cuiabá – MT. É bióloga, Mestre em Histologia e Embriologia. Ensinava na UFMT, por onde se aposentou. Atualmente, é professora na Universidade de Cuiabá. Na poesia, fez estréia com Por imenso gosto (Massao Ohno, 1995), Prêmio especial no Concurso Cecília Meireles – UBE. Em seguida publicou pela 7Letras: Ser cotidiano (1998), Sopa Escaldante (2001), Prêmio Cecília Meireles – UBE, Leito de Acaso (2004) e Tempo comum (2009). É autora de livros infanto-juvenis. Escreve contos, crônicas e resenhas, colaborando com jornais e revistas mato-grossenses.

Rubem Mauro Machado comenta “Uma certa felicidade”


Felicidade de Sonia

Sonia Coutinho, é óbvio, escreve bem, muito bem. Mas esse escrever bem se consubstancia numa falsa simplicidade, que não obsta a elegância e dispensa fogos de artifício retóricos, para se concentrar na economia e na precisão sem exageros, que dá ao leitor a ilusão de que escrever é fácil e de que ele também é capaz de escrever como ela.
Essa qualidade está evidente nos contos de “Uma certa felicidade”, coletânea relançada há pouco pela Editora 7 Letras, inteiramente reescrita pela autora, mais de trinta anos depois da primeira edição, de 1976, e vastamente ignorada pela quase totalidade dos cadernos literários (mas aí a surpresa seria o contrário: os editores parecem ter decretado que relançamento não merece atenção, não importa quantos anos tenham decorrido e tampouco o nome consolidado da autora, como se as novas gerações de leitores não precisassem tomar conhecimento da nossa produção literária pré-existente, tornando assim mais difícil e inglório o trabalho de nossos autores: mas esse é um tema já mencionado aqui anteriormente e que não cabe neste momento discutir; fica apenas o registro).
As histórias giram invariavelmente em torno de uma narradora, personagem especializada: mulher solitária, de classe média, culta, independente, moradora de Copacabana, que ousou romper com a fatalidade do provinciano destino mãe-dona-de-casa e paga um preço por isso, pesado mas que no fundo não lamenta. Ela deixou no passado a Cidade (assim mesmo, com maíuscula, inonimada) quase mítica de sua juventude, que, sabe, não existe mais, que perdeu para sempre, já que o tempo tudo vai devorando, lembranças, amizades, amores, para vir se arriscar numa carreira profissional e na busca de uma vida mais intensa no Rio. Sob o disfarce de diferentes nomes e circunstâncias, essa mulher, ao atravessar os oito contos e a pequena novela que dá título ao volume (sim, para mim, pelo timing, andamento lento, a última história é antes uma pequena novela do que um conto longo) lhes dá uma unidade rara em coletâneas de histórias curtas. Ao se sentir envelhecer, na solidão da grande cidade, solidão essa que se em alguns momentos pode ser opressora é também requisito para o auto-conhecimento, a personagem-narradora tenta entender, na fragmentação característica dos tempos modernos, as experiências pelas quais passou, o que fez de sua existência: Uma coisa que sempre me espantou e chateou é o modo sinuoso e espatifado como se desenvolve a vida, parecendo não ter nenhuma continuidade além da que procuramos impor-lhe de fora, através de um esforço inútil de racionalização, já que é composta de todo tipo de fragmentos espalhados e inacabados ... (pag. 102). Essa reconstituição obsessiva de uma história pessoal que nunca chega a ter um sentido completo, o que é inerente a nossa condição e remete a uma literatura de fundo existencialista, aparece mais bem concretizada em termos artísticos exatamente no último texto, o mais longo, que parece conter em si de forma depurada todas os anteriores. A personagem de muitos nomes realiza assim, por entre o absurdo e o esquecimento, por entre perdas e o lento-rápido esvair da ampulheta, uma busca permanente do Eu e do sentido de sua vida, permeada pelo sonho, que no fundo é o de todos nós, de alcançarmos nesta nossa breve travessia ... uma certa felicidade. Se é certo que muitas mulheres deverão se identificar com essa personagem onipresente, os homens também não ficam indiferentes a ela. E isso porque, mais do que de uma questão de gênero, a ficção de Sonia Coutinho fala sobretudo do vazio da contingência que ameaça o tempo todo esvaziar as nossas vidas, que desejamos plenas e pelas quais somos os únicos responsáveis.

Este texto constou, inicialmente, na coluna de Rubem no site da ABI.
Rubem Mauro Machado é escritor, jornalista e tradutor. Criado no Rio Grande do Sul, morou alguns anos em São Paulo, antes de se radicar no Rio. Com “ A idade da paixão”, historia de formação ambientada nas pensões da Porto Alegre de 1961 (Editora José Olympio), ganhou o Prêmio Jubuti de melhor romance nacional de 1986. Reescrito pelo autor, o livro foi relançado em edição comemorativa pela Editora Bertrand, em 2006.
Seu romance “Lobos”, de 1997, que retrata a vida nas redações e nos quartéis nos Anos de Chumbo da ditadura militar, acaba de ser lançado na Itália pela Editora Fabula, com o titulo “Lupi”.
Participou de mais de uma dezena de antologias de contos no Brasil e no exterior. Seu conto “O executante” ganhou o Concurso Jerônimo Monteiro de Contos de Suspense e Ação, concorrendo com mais de mil trabalhos, e posteriormente deu nome à coletânea de três narrativas de literatura noir, publicada pela Record em 2000, finalista do Prêmio Jabuti.
É autor ainda, entre outros títulos, de “Jacarés ao sol” (Ed. Ática, contos) e “Não acreditem em mim ­- Memórias dos Anos Dourados” (Ed. Saraiva), este voltado para o público juvenil. Acaba de concluir um romance sobre Copacabana, intitulado Fogo sobre água, que pretende publicar em breve.