De maneira geral, imagina-se que a volta à pintura seja a grande característica que uniu a Geração 80 das artes plásticas brasileiras - uma geração que se tornou mais visível com a exposição “Como vai você, Geração 80?”, realizada em 1984.
Mas alguns dos participantes desse grupo de artistas parece que nunca tiveram nada, ou tiveram pouco a ver com esse gozo de pintar – é o caso de Luiz Ernesto, que naquele tempo já fazia instalações e com uma dela participou da grande mostra de 1984.
Ele fala disso e do que anda fazendo agora: coisas bem antenadas com o momento presente das artes visuais.
SC - Você já vinha colocando palavras e frases em seus objetos, em suas placas de fibra de vidro. Agora, você me contou que está escrevendo textos mais longos, que poderão ser utilizados separadamente, em outro tipo de projeto. É isso mesmo? Será que entendi direito? Você poderia explicar melhor?
LE - Sempre fui um leitor compulsivo. Leio de tudo um pouco. Além disso, como professor , tenho que usar as palavras, mesmo atuando no campo das artes visuais. Também escrevi muitos textos para exposições. Acredito que a questão da arte está na atribuição de sentidos, o que significa que a obra sempre suscita a palavra. Não quero dizer que a obra seja redutível às palavras. Mas que estão sempre juntas. Não é por acaso que a maioria dos movimentos de vanguarda modernos tinham poetas como líderes. Foi pensando nestas questões que decidi acrescentar palavras aos trabalhos que iniciei em 2001. Era um trabalho híbrido, um material de escultura (a fibra de vidro), fotografia e pintura. O uso de palavras me pareceu um modo de expandir os sentidos e esse caráter híbrido. Mas a palavra, mesmo utilizada de forma ambígua, com uma relação não imediata com a imagem, é muito pontual, muito “instantânea”. Em trabalhos mais recentes, resolvi usar sentenças, que sugerem uma temporalidade, algo que acontece num tempo indefinido. Acho que chegar ao texto, o que estou desenvolvendo atualmente, foi uma conseqüência natural deste processo. Além disso, a experiência de desmontar o enorme apartamento onde viveu minha avó desencadeou estes textos. Quando começava a elaborar as sentenças, estas não paravam de encadear-se e, quando me dei conta, já eram textos.
SC – Então, se entendo bem, você está realizando um projeto que surgiu a partir do que encontrou no apartamento da sua avó, depois que ela morreu. Pode descrever esse projeto?
Após a morte de minha avó, a última moradora do apartamento, iniciamos um processo doloroso de desmontá-lo para vendê-lo. O apartamento era muito grande e repleto de objetos de antepassados e outros de toda a família. Como era um lugar de muitas recordações, resolvi fotografá-lo, apenas para guardar de lembrança. Quando me dei conta, tinha centenas de fotos e resolvi então utilizá-las num projeto. Das lembranças que tenho do lugar é que partiram os textos. Eles se relacionam às coisas e aos ambientes do apartamento. Os objetos sempre foram as referências para meu trabalho. O projeto, em princípio, incluirá textos, fotos e desenhos. Mas tudo ainda está muito no começo e certamente ocorrerão surpresas e mudanças pelo caminho.
SC - Você ensina há muitos anos na Escola de Artes Visuais. Poderia falar da sua relação com essa atividade? Como se sente o professor Luiz Ernesto? Ensinar interfere em seu trabalho de artista?
LE - Desde que comecei minha carreira como artista, comecei também a dar aulas. É algo que gosto muito de fazer e que, na verdade, nunca pensei como uma coisa em separado. Dou aulas porque sou artista e o que desenvolvo no atelier é fruto de tudo o que estudo e aprendo dando aulas. Lidar com obras de outras pessoas é um ótimo motivo para sair do atelier e não ficar obcecado com o próprio umbigo. Sempre lembro de uma passagem de Ítalo Calvino, em “Se um Viajante numa Noite de Inverno”, onde ele diz: “Como eu escreveria bem, se não existisse!... O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade, a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento, os truques do ofício: todos os elementos que tornam reconhecível como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula, que limita minhas possibilidades.” Se não podemos nos livrar disso, ao menos podemos colocar tudo em discussão. Dar aulas é uma forma de fazer isso.
Mas alguns dos participantes desse grupo de artistas parece que nunca tiveram nada, ou tiveram pouco a ver com esse gozo de pintar – é o caso de Luiz Ernesto, que naquele tempo já fazia instalações e com uma dela participou da grande mostra de 1984.
Ele fala disso e do que anda fazendo agora: coisas bem antenadas com o momento presente das artes visuais.
SC - Você já vinha colocando palavras e frases em seus objetos, em suas placas de fibra de vidro. Agora, você me contou que está escrevendo textos mais longos, que poderão ser utilizados separadamente, em outro tipo de projeto. É isso mesmo? Será que entendi direito? Você poderia explicar melhor?
LE - Sempre fui um leitor compulsivo. Leio de tudo um pouco. Além disso, como professor , tenho que usar as palavras, mesmo atuando no campo das artes visuais. Também escrevi muitos textos para exposições. Acredito que a questão da arte está na atribuição de sentidos, o que significa que a obra sempre suscita a palavra. Não quero dizer que a obra seja redutível às palavras. Mas que estão sempre juntas. Não é por acaso que a maioria dos movimentos de vanguarda modernos tinham poetas como líderes. Foi pensando nestas questões que decidi acrescentar palavras aos trabalhos que iniciei em 2001. Era um trabalho híbrido, um material de escultura (a fibra de vidro), fotografia e pintura. O uso de palavras me pareceu um modo de expandir os sentidos e esse caráter híbrido. Mas a palavra, mesmo utilizada de forma ambígua, com uma relação não imediata com a imagem, é muito pontual, muito “instantânea”. Em trabalhos mais recentes, resolvi usar sentenças, que sugerem uma temporalidade, algo que acontece num tempo indefinido. Acho que chegar ao texto, o que estou desenvolvendo atualmente, foi uma conseqüência natural deste processo. Além disso, a experiência de desmontar o enorme apartamento onde viveu minha avó desencadeou estes textos. Quando começava a elaborar as sentenças, estas não paravam de encadear-se e, quando me dei conta, já eram textos.
SC – Então, se entendo bem, você está realizando um projeto que surgiu a partir do que encontrou no apartamento da sua avó, depois que ela morreu. Pode descrever esse projeto?
Após a morte de minha avó, a última moradora do apartamento, iniciamos um processo doloroso de desmontá-lo para vendê-lo. O apartamento era muito grande e repleto de objetos de antepassados e outros de toda a família. Como era um lugar de muitas recordações, resolvi fotografá-lo, apenas para guardar de lembrança. Quando me dei conta, tinha centenas de fotos e resolvi então utilizá-las num projeto. Das lembranças que tenho do lugar é que partiram os textos. Eles se relacionam às coisas e aos ambientes do apartamento. Os objetos sempre foram as referências para meu trabalho. O projeto, em princípio, incluirá textos, fotos e desenhos. Mas tudo ainda está muito no começo e certamente ocorrerão surpresas e mudanças pelo caminho.
SC - Você ensina há muitos anos na Escola de Artes Visuais. Poderia falar da sua relação com essa atividade? Como se sente o professor Luiz Ernesto? Ensinar interfere em seu trabalho de artista?
LE - Desde que comecei minha carreira como artista, comecei também a dar aulas. É algo que gosto muito de fazer e que, na verdade, nunca pensei como uma coisa em separado. Dou aulas porque sou artista e o que desenvolvo no atelier é fruto de tudo o que estudo e aprendo dando aulas. Lidar com obras de outras pessoas é um ótimo motivo para sair do atelier e não ficar obcecado com o próprio umbigo. Sempre lembro de uma passagem de Ítalo Calvino, em “Se um Viajante numa Noite de Inverno”, onde ele diz: “Como eu escreveria bem, se não existisse!... O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade, a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento, os truques do ofício: todos os elementos que tornam reconhecível como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula, que limita minhas possibilidades.” Se não podemos nos livrar disso, ao menos podemos colocar tudo em discussão. Dar aulas é uma forma de fazer isso.
SC - A Geração 80, da qual você faz parte, tendo participado das marcantes exposições do “movimento”, no período, enfatizou muito a questão da volta da pintura e celebrou o prazer matisseano de pintar. Mas você seguiu um caminho bem particular. Pintou durante certo período, uma pintura me parece que de tons mais sombrios e um toque algo surreal. E logo partiu para um processo de transformação das telas em "objetos". Primeiro, veio uma incorporação-colagem de algumas peças a essas telas, um pouco à moda dos "combines" de Rauschenberg. Depois, você abandonou completamente as telas, passando a utilizar, em lugar delas, placas de fibra de vidro com fotografias incorporadas. Descreva como foi esse processo, como é que você o sentiu. E fale das diferenças entre você e o conjunto da Geração 80.
LE - De fato, a Geração 80 enfatizou a pintura, embora a exposição de 1984 apresentasse muitas instalações. Meu trabalho na exposição era uma delas. Quanto ao prazer de pintar, sempre tive minhas dúvidas quanto a isto. O processo criativo, seja lá em que meio o artista trabalhe, é sempre difícil, tenso. Envolve dúvidas, assumir riscos, muitas horas de fazer e refazer, lidar com erros e limites. Acho que essa defesa do prazer sempre foi uma posição meio ingênua de alguns artistas daquela época.
Sempre conduzi meu trabalho de acordo com os problemas que iam surgindo. Nunca defendi um meio a priori como um valor em si mesmo
SC - Você poderia passar para mim alguns textos do projeto-memória do apartamento que foi da sua avó?
LE - Aí vão dois.
O corredor
Um espaço neutro entre o que se fez e o que se vai fazer. Ninguém se dá conta ao passar por um corredor. Ali, a consciência do presente se desvanece. O que importa está em outro lugar. Uma espécie de invisibilidade costuma envolvê-lo. Sem qualquer atrativo, sombrio, com um leve cheiro de mofo, era um tanto assustador. Deslizava por treze metros pelas entranhas do apartamento. Em seu percurso, encontrava-se, em sua margem direita, com quatro quartos e dois banheiros e ao final lançava-se no maior cômodo da casa, cuja porta branca, fechada, impunha-lhe um limite com autoridade. Vez por outra, um vento insidioso, aproveitando-se do descuido de alguma janela mal trancada, invadia o ambiente. Surpreendendo a imobilidade das portas, incitava-as a bater violentamente em sequência, em uma tentativa vã de impedir-lhe a insolência. Pequenos objetos, papéis e jornais rolavam em cambalhotas empurrados pela correnteza, em meio ao estrondo das portas. Um raro momento de agitação que despertava aquele lugar de seu torpor habitual.
O escritório
Uma comprida estante, repleta de livros e alguns atlas antigos, alongavam-se pela parede da esquerda de quem entrava. Não era muito alta, um metro e meio, talvez. Sobre ela, um par de cavalos de bronze segurava alguns dos livros maiores. Em frente à estante, um longo castiçal de prata refulgia elegante, contrastando com a madeira escura da pesada mesa que o sustentava. Em frente às suas duas velas havia uma placa de prata para rebater a acidez das chamas. Nas paredes, acima da mesa, ficavam os retratos do Marquês, solene, com seu uniforme militar, sua esposa, o Visconde, seu filho e o do Conde, cunhado do Visconde. Dezenas de porta-retratos menores, distribuíam-se ao redor da sala. Todos retratos de antepassados: os homens de terno e as mulheres de vestidos longos e ar circunspecto. Mas havia em todas aquelas pessoas algo inquietante. Seus olhares eram oblíquos, dirigiam-se para algum ponto distante no interior de seu próprio mundo, raramente sorriam. Os fundos neutros não os colocavam em lugar algum. Ensimesmados e concentrados em seu próprio instante, eram completamente indiferentes aos olhares do futuro, futuro este que inexoravelmente os esqueceria relegando-os para sempre ao limbo dos inominados.
Um espaço neutro entre o que se fez e o que se vai fazer. Ninguém se dá conta ao passar por um corredor. Ali, a consciência do presente se desvanece. O que importa está em outro lugar. Uma espécie de invisibilidade costuma envolvê-lo. Sem qualquer atrativo, sombrio, com um leve cheiro de mofo, era um tanto assustador. Deslizava por treze metros pelas entranhas do apartamento. Em seu percurso, encontrava-se, em sua margem direita, com quatro quartos e dois banheiros e ao final lançava-se no maior cômodo da casa, cuja porta branca, fechada, impunha-lhe um limite com autoridade. Vez por outra, um vento insidioso, aproveitando-se do descuido de alguma janela mal trancada, invadia o ambiente. Surpreendendo a imobilidade das portas, incitava-as a bater violentamente em sequência, em uma tentativa vã de impedir-lhe a insolência. Pequenos objetos, papéis e jornais rolavam em cambalhotas empurrados pela correnteza, em meio ao estrondo das portas. Um raro momento de agitação que despertava aquele lugar de seu torpor habitual.
O escritório
Uma comprida estante, repleta de livros e alguns atlas antigos, alongavam-se pela parede da esquerda de quem entrava. Não era muito alta, um metro e meio, talvez. Sobre ela, um par de cavalos de bronze segurava alguns dos livros maiores. Em frente à estante, um longo castiçal de prata refulgia elegante, contrastando com a madeira escura da pesada mesa que o sustentava. Em frente às suas duas velas havia uma placa de prata para rebater a acidez das chamas. Nas paredes, acima da mesa, ficavam os retratos do Marquês, solene, com seu uniforme militar, sua esposa, o Visconde, seu filho e o do Conde, cunhado do Visconde. Dezenas de porta-retratos menores, distribuíam-se ao redor da sala. Todos retratos de antepassados: os homens de terno e as mulheres de vestidos longos e ar circunspecto. Mas havia em todas aquelas pessoas algo inquietante. Seus olhares eram oblíquos, dirigiam-se para algum ponto distante no interior de seu próprio mundo, raramente sorriam. Os fundos neutros não os colocavam em lugar algum. Ensimesmados e concentrados em seu próprio instante, eram completamente indiferentes aos olhares do futuro, futuro este que inexoravelmente os esqueceria relegando-os para sempre ao limbo dos inominados.
Luiz Ernesto é uma ótima pessoa, ótimo professor e artista. Certamente o resultado do seu projeto será um sucesso. Foi bom revê-lo aqui e saber sobre este seu novo trabalho.
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