Conto de Sonia Coutinho
Essa história ainda não está pronta. Mas, se você insiste, eu conto. O que já escrevi? Veja, há um personagem, Pablo, que fala de si mesmo. E há Joana, que ainda estou criando.
Já sei que Joana nasceu e viveu, até os vinte e tantos anos, numa cidade do interior. Aos 20, casou-se com um fazendeiro; mas, não muito tempo depois, abandonou-o.
Segundo diziam, porque ele a espancava.
Joana fugiu com outro homem, um publicitário do Rio, e foi morar, em Copacabana.
Ela era inteligente, lia muito e escrevia bem. Então seu amigo arranjou-lhe um emprego como jornalista. Naquele tempo era mais fácil, não exigiam diploma.
Anos depois, quando o publicitário já a deixara, Joana foi demitida do jornal. Ficou um bom tempo desempregada, vivendo de algumas reservas de dinheiro, mas que foram acabando.
De repente, alguém lhe telefona e oferece trabalho num jornal da sua própria cidade. Mesmo contra sua vontade, Joana aceita.
Mas, em sua cidade, sente-se cercada de ódio e tem medo. Pensa: será que foi atraída para lá por alguém com intenção ruim?
Um dia, recebe um telefonema de Pablo, antigo colega do jornal do Rio, que está em visita à sua cidade - e marcam um encontro.
- Vim para te salvar, Joana, para te levar daqui. Estou captando uma aura estranha em torno de você. Não entendo como aceitou voltar – diz Pablo.
Joana se limita a sorrir, sem responder, sentada diante dele à mesa de uma cantina italiana.
Ela observa Pablo com carinho, lembrando aqueles primeiros meses seus de jornalismo no Rio, quando os dois eram colegas.
Ela fazia matérias para o suplemento feminino dos domingos e ele, alguns anos mais novo, uma espécie de garoto prodígio que vivia citando Artaud, era crítico de teatro. Agora, como ele explica, está na cidade para participar de um seminário de teatro na Universidade, tinha virado professor.
O garoto prodígio, ela observa, transformou-se num homem quase maduro, usando uma camisa esporte não tão informal quanto as de antigamente.
Pablo, uma vida embutida na sua, sim, uma outra vida que talvez ela pudesse ter vivido junto.
Conclui, meio espantada, que sua vida já é composta por muitas outras, que se superpõem, formando um labirinto de episódios e situações quase esquecidas, mas que às vezes vêm à tona.
O garçom traz os canelones, eles começam a comer e Joana pensa nas poucas vezes em que foi para a cama com Pablo, sem grandes prazeres. Na verdade, já parece que aconteceu há séculos.
Ela o amou por causa da vivacidade dele, daquele clima de rebeldia e loucura que o cercava.
Mas logo se apaixonou por outro colega de redação – e, não demorou muito, como num passe de mágica, os dois homens mudaram de jornal e se afastaram dela.
Pablo foi para São Paulo. Desde então, Joana o vira talvez apenas cinco ou seis vezes, mas sempre se falaram no mesmo tom, como se não houvesse nenhum ressentimento da parte dele, como se nada tivessem mudado e continuassem grandes amigos - o que são mesmo, ela conclui, agora.
Num relance, Joana lembra as notícias que teve de Pablo, durante o período em que ficaram sem contato. Houve um intervalo longo sem ela saber de nada, e então alguém lhe disse que ele se casara com uma moça judia muito rica, Liuba.
Outras notícias foram chegando, como a de que eles tinham tido um filho.
Mais adiante, uma informação chocante: o casal estava envolvido com um movimento de guerrilha urbana e estavam presos.
Comendo seu canelone, Pablo conta agora que o envolvimento de Liuba com a guerrilha era maior do que o seu. Ela foi muito torturada e teve de se submeter a uma cirurgia de emergência.
Quando foram soltos, o casamento entrou numa fase ruim, acabaram separando-se.
Um período difícil, diz Pablo, havia uma criança no meio daquilo tudo, o filho deles, que ficou com os pais dela. Eles ajudavam a contragosto, com muitas críticas e lamentações.
Foi um período em que Pablo, como ele conta, estava angustiado e desesperado como nunca em sua vida. E então “aconteceu”, diz, com voz mais baixa.
- Nessa ocasião, conheci um rapaz. Um rapaz muito bonito, com uma personalidade inquietante. Uma pessoa, como é que posso explicar? Uma pessoa intensa, autêntica. Começamos a nos encontrar todo dia, ele freqüentava o pequeno apartamento que aluguei depois de me separar de Liuba. Um dia, entrou em meu quarto, aparentemente de forma casual, e fui atrás dele, nós dois conversando. De repente, ele se deitou em minha cama e estendeu a mão para mim. Eu me apaixonei por ele. Era meu primeiro relacionamento desse tipo, nunca tinha vivido nada parecido.
Pablo continua a falar, diz agora que, na Universidade onde foi ensinar teatro, ele e o amigo eram aceitos como um casal. Mas a vida dos dois era cheia de altos e baixos.
Um dia tiveram uma briga feia e o amigo jogou o carro onde estavam dentro de uma vala. Mas as machucaduras não foram graves e o relacionamento deles continuou. Pablo lembra:
- Eu era feliz, naquele tempo. Mas, um dia, pouco depois do acidente com o carro, ele começou a procurar outros. Aquilo me fazia sofrer, eu queria apenas ele. Continuei ligado nele, sofrendo.
Pablo conta que o amigo buscava cada vez mais “intensidade”, tinha experiências sexuais sucessivas, fazia sexo até em mictórios públicos.
De repente Pablo informa, em tom neutro:
- Ele acabou pegando Aids. Comecei a perceber que a saúde dele não ia bem porque tinha pequenas doenças uma atrás da outra. Aquilo não parava e então a idéia me bateu como um relâmpago. Disse a ele que devia fazer um teste. Ele fez - e o resultado deu positivo.
Joana e Pablo terminam de almoçar, mas continuam sentados à mesa. Agora, ele fala com uma voz mais lenta, cheia de uma tristeza seca.
- Uma manhã, ele ficou muito tempo ao sol. De noite, estava com uma febre altíssima. Era meningite. Não se levantou mais da cama, foi hospitalizado. Perto do fim, ficou cego. Uma tarde, pediu um prato de comida, queria um cabrito assado, de que gostava muito. Eu e a irmã dele, que o acompanhava no hospital, telefonamos para um restaurante. O cabrito chegou e ele comeu tudo, com o maior apetite. Pouco depois, morreu. Na hora, não tive coragem de chegar perto. Fiquei olhando de longe, da porta do quarto.
Tomando agora um café, Pablo diz que isso aconteceu há dois anos – e, desde então, ele não teve mais coragem de fazer sexo. Já se submeteu a vários testes de Aids, todos deram negativos. Mas, mesmo assim, não tem coragem.
Ele fica calado por algum tempo e, depois, pergunta, sorrindo:
- Você não quer saber, como todo mundo, se prefiro homem ou mulher?
- Não, sei que você próprio não sabe – Joana responde, sorrindo.
Pagam a conta, saem do restaurante, caminham até a enseada do Porto, que fica perto, e se debruçam na amurada. Olham em silêncio o mar tranqüilo, os saveiros ancorados. Joana diz:
- Acho que você, sua vida inteira, de certa forma procurou a pureza.
Ele dá uma gargalhada.
- Tem razão. É a pureza que procuro. Digamos, uma pureza como a de Jean Genet.
Joana caminha com Pablo até o apartamento dela, que fica próximo.
Os dois se sentam no chão.
Depois, ele se deita e põe a cabeça no colo dela.
Ficam uma porção de tempo calados, Joana passando a mão nos cabelos dele.
Pablo repete:
- Vim para te salvar, tirar você daqui. Volte comigo para o Rio. Fique em meu apartamento, procuraremos outro emprego para você.
Mas ela sacode a cabeça, é um não.
Pouco depois, Pablo se levanta e diz que vai embora. Antes que ele saia, Joana fala:
- Somos namorados outra vez. Namorados distantes, infiéis, cada qual para seu lado. Mas namorados, mesmo assim.
Ele a beija nas duas faces, garante que vai telefonar e escrever sempre. Mas, depois que Pablo sai, Joana tem uma repentina certeza de que ele nunca mandará nada.
E, se mandar, ela não responderá nunca.
Joana continuou na cidade, mas com um medo cada vez maior. E tinha razão. Não demorou e ela foi assassinada com três tiros no peito.
Não sei ainda quem a matou.
Terá sido um colega do jornal da cidade, com quem ela estava namorando e que enlouqueceu? E então a matou nua, na cama do seu apartamento, usando um travesseiro em cima do cano da arma, para abafar o ruído dos tiros?
Ou foi um capanga do seu ultrajado ex-marido fazendeiro que, passando numa moto, disparou os tiros contra Joana, que dirigia seu carro?
Não adianta insistir mais, eu não sei. Esse final, ainda vou ter de inventar.
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
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sonia, é clara, do francês :) gostei MUITO desse conto *-*
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