quinta-feira, 22 de outubro de 2009

REVOLUÇÃO E POESIA

EAV Parque Lage
Por Sonia Coutinho
Desde meados dos anos 90, sou uma assídua freqüentadora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Mesmo num período em que deixei de ir a qualquer outra parte continuei firme indo àquele lugar maravilhoso e mágico. Aproveitando sempre para bater um papo com o fantasma da cantora lírica Gabriela Bezansoni Lage, para quem o casarão foi construído, por seu marido milionário, Henrique Lage. Gabriela continua a passear em torno da piscina, cantando...
Talvez muita gente não saiba, mas já pintei muito na EAV, entusiasticamente. No começo, derramava no chão baldes de água misturada com tinta, ao usar um borrifador de jardim sobre as telas já manchadas, realizando verdadeiras performances, sob o comando competente de Luiz Ernesto. Mais tarde, Chico Cunha me ensinou a fazer figuras.
O resultado mais lisonjeiro dessa atuação é uma tela minha que o escritor e crítico Silviano Santiago tem em sua sala até hoje e que já foi fotografada e publicada, em entrevistas dele.
Aos poucos, fui deixando a prática da pintura (pelo menos, no momento, embora acredite que haverá recaída) e reencontrei uma vocação antiga e funda, que está predominando - a de interessada em arte, ou estudiosa de arte.
Garota, quando morei uma temporada em Madri, estudava História da Arte no Instituto de Cultura Hispânica. Na EAV, já viajei com Charles Watson para Londres e Madri, visitando museus e ateliês de artistas, e vi seus vídeos contemporâneos.
Passei ainda por Pedro França (História da Arte) e, meteoricamente, por Guilherme Bueno (Arte Brasileira – eu voltarei, Guilherme). Agora, estou com Fernando Cocchiarale, estudando Estética. Durante todo esse período, de uns quinze anos interrompidos freqüentando os cursos da EAV, não encontrei nenhum escritor por lá. Até que, não faz muito tempo, fui a uma exposição sobre os inícios da Escola, vi uma imensa fotografia de Armando Freitas Filho, com bigodes imensos – e, na saída, deparei-me com o Poeta em pessoa.

Armando Freitas Filho

Aproveitei, então, para lhe perguntar o que eu não sabia: qual foi, Armando, ou qual é, sua relação com a EAV, com o Parque Lage?
E ele respondeu:
- Minha relação com o Parque Lage começou quando Rubens Gerchman criou a Escola de Artes Visuais. A sigla EAV, talvez por ser um anagrama de ave, levantou vôo, solta por Rubens nos jardins do Parque, e este foi alto, radical e transformador.
O palacete de gosto duvidoso dos Lage e o magnífico parque que o rodeia sofreu uma verdadeira revolução. Não somente a pintura mais contemporânea ganhou seu espaço privilegiado, mas o cinema, o teatro, a literatura, a música, e o que mais pintasse.

Rubens Gerchman


Rubens e eu fomos colegas de colégio, nos conhecemos em 1958, e desde aquela época, os primeiros quadros dele e meus primeiros poemas eram comentados por um e por outro, antes que a tinta do pincel e da caneta tivessem secado. Ele fez seis capas de livros meus e eu algumas apresentações para exposições suas. Além disso, elaboramos dois livros de arte juntos: Mademoiselle Furta-Cor e Dupla identidade. As litogravuras originais de Rubens do primeiro foram todas impressas nas horas vagas da prensa da oficina de gravura do Parque Lage, por MBia Medeiros e Wanderley Candido de Oliveira.
O ano era de 1977, a repressão ainda prendia e censurava. Um belo dia chegou aos nossos ouvidos que um almirante, - provavelmente a seco, que jamais conheceu o mar das batalhas nem o das missões relevantes, mas apenas o mar... de almirante das promoções burocráticas, e que fazia parte de um conselho de amigos ou coisa que o valha, do antigo Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro, que tinha deixado de existir com a criação da Escola, - vivia dizendo para seus pares, que o diretor da EAV estava imprimindo "nos porões do Parque", pornografia, já que os poemas e as gravuras tinham um cunho erótico. De fato, tinham, mas e daí? O boato ou o almirante de araque não prosperaram e a nossa Mademoiselle escapou ilesa e hoje está presente, vivíssima, no ensaio, de Renan Nuernberger, Poro por poro: o erotismo na poesia de Armando Freitas Filho, no seu relatório de iniciação científica a ser apresentado na USP.
Em 1978, junto com o também saudoso e querido amigo Roberto Maia, professor de fotografia da Escola, lançamos, no próprio Parque Lage, A flor da pele, um tablóide, com fotos dele e texto meu, onde se mostrava e se falava abertamente sobre a tortura, ainda vigente, naqueles anos. Este trabalho foi objeto da dissertação de mestrado de Mariana Quadros Pinheiro, Na fenda dos dias: leituras a partir de algumas datas na obra de Armando Freitas Filho, defendida, no começo do corrente ano, na UFRJ.

Gabriela Bezansoni Lage
Rubens iria gostar de saber dos trabalhos desses jovens, frutos, mais de 30 anos depois, do seu Jardim da Oposição, que a exposição montada por Heloisa Buarque de Hollanda e Helio Eichbauer, tão bem apresenta em seus múltiplos caminhos e paisagens. Iria gostar, também, de ouvir meu poema "Cidade Maravilhosa" feito para o livro sobre sua obra, publicado pela Funarte em meados dos 70, ser lido por Paulo José no DVD realizado por Tiago Rios na graduação deste, em cinema, pela PUC-RJ.
Tanto aqui foi dito daquela época e das nossas "tabelinhas". Mas não foi dito tudo, não foi dito nem um pouco da falta que eu sinto do meu amigo de adolescência, da nossa amizade de 50 anos, que perdurou, operante, pela vida afora e das nossas conversas, até os seus últimos dias. Por isso mesmo, minha relação com o Parque Lage atual tem que ser, obrigatoriamente, de saudade e de lembranças vivas.

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