Felicidade de Sonia
Sonia Coutinho, é óbvio, escreve bem, muito bem. Mas esse escrever bem se consubstancia numa falsa simplicidade, que não obsta a elegância e dispensa fogos de artifício retóricos, para se concentrar na economia e na precisão sem exageros, que dá ao leitor a ilusão de que escrever é fácil e de que ele também é capaz de escrever como ela.
Essa qualidade está evidente nos contos de “Uma certa felicidade”, coletânea relançada há pouco pela Editora 7 Letras, inteiramente reescrita pela autora, mais de trinta anos depois da primeira edição, de 1976, e vastamente ignorada pela quase totalidade dos cadernos literários (mas aí a surpresa seria o contrário: os editores parecem ter decretado que relançamento não merece atenção, não importa quantos anos tenham decorrido e tampouco o nome consolidado da autora, como se as novas gerações de leitores não precisassem tomar conhecimento da nossa produção literária pré-existente, tornando assim mais difícil e inglório o trabalho de nossos autores: mas esse é um tema já mencionado aqui anteriormente e que não cabe neste momento discutir; fica apenas o registro).
As histórias giram invariavelmente em torno de uma narradora, personagem especializada: mulher solitária, de classe média, culta, independente, moradora de Copacabana, que ousou romper com a fatalidade do provinciano destino mãe-dona-de-casa e paga um preço por isso, pesado mas que no fundo não lamenta. Ela deixou no passado a Cidade (assim mesmo, com maíuscula, inonimada) quase mítica de sua juventude, que, sabe, não existe mais, que perdeu para sempre, já que o tempo tudo vai devorando, lembranças, amizades, amores, para vir se arriscar numa carreira profissional e na busca de uma vida mais intensa no Rio. Sob o disfarce de diferentes nomes e circunstâncias, essa mulher, ao atravessar os oito contos e a pequena novela que dá título ao volume (sim, para mim, pelo timing, andamento lento, a última história é antes uma pequena novela do que um conto longo) lhes dá uma unidade rara em coletâneas de histórias curtas. Ao se sentir envelhecer, na solidão da grande cidade, solidão essa que se em alguns momentos pode ser opressora é também requisito para o auto-conhecimento, a personagem-narradora tenta entender, na fragmentação característica dos tempos modernos, as experiências pelas quais passou, o que fez de sua existência: Uma coisa que sempre me espantou e chateou é o modo sinuoso e espatifado como se desenvolve a vida, parecendo não ter nenhuma continuidade além da que procuramos impor-lhe de fora, através de um esforço inútil de racionalização, já que é composta de todo tipo de fragmentos espalhados e inacabados ... (pag. 102). Essa reconstituição obsessiva de uma história pessoal que nunca chega a ter um sentido completo, o que é inerente a nossa condição e remete a uma literatura de fundo existencialista, aparece mais bem concretizada em termos artísticos exatamente no último texto, o mais longo, que parece conter em si de forma depurada todas os anteriores. A personagem de muitos nomes realiza assim, por entre o absurdo e o esquecimento, por entre perdas e o lento-rápido esvair da ampulheta, uma busca permanente do Eu e do sentido de sua vida, permeada pelo sonho, que no fundo é o de todos nós, de alcançarmos nesta nossa breve travessia ... uma certa felicidade. Se é certo que muitas mulheres deverão se identificar com essa personagem onipresente, os homens também não ficam indiferentes a ela. E isso porque, mais do que de uma questão de gênero, a ficção de Sonia Coutinho fala sobretudo do vazio da contingência que ameaça o tempo todo esvaziar as nossas vidas, que desejamos plenas e pelas quais somos os únicos responsáveis.
Sonia Coutinho, é óbvio, escreve bem, muito bem. Mas esse escrever bem se consubstancia numa falsa simplicidade, que não obsta a elegância e dispensa fogos de artifício retóricos, para se concentrar na economia e na precisão sem exageros, que dá ao leitor a ilusão de que escrever é fácil e de que ele também é capaz de escrever como ela.
Essa qualidade está evidente nos contos de “Uma certa felicidade”, coletânea relançada há pouco pela Editora 7 Letras, inteiramente reescrita pela autora, mais de trinta anos depois da primeira edição, de 1976, e vastamente ignorada pela quase totalidade dos cadernos literários (mas aí a surpresa seria o contrário: os editores parecem ter decretado que relançamento não merece atenção, não importa quantos anos tenham decorrido e tampouco o nome consolidado da autora, como se as novas gerações de leitores não precisassem tomar conhecimento da nossa produção literária pré-existente, tornando assim mais difícil e inglório o trabalho de nossos autores: mas esse é um tema já mencionado aqui anteriormente e que não cabe neste momento discutir; fica apenas o registro).
As histórias giram invariavelmente em torno de uma narradora, personagem especializada: mulher solitária, de classe média, culta, independente, moradora de Copacabana, que ousou romper com a fatalidade do provinciano destino mãe-dona-de-casa e paga um preço por isso, pesado mas que no fundo não lamenta. Ela deixou no passado a Cidade (assim mesmo, com maíuscula, inonimada) quase mítica de sua juventude, que, sabe, não existe mais, que perdeu para sempre, já que o tempo tudo vai devorando, lembranças, amizades, amores, para vir se arriscar numa carreira profissional e na busca de uma vida mais intensa no Rio. Sob o disfarce de diferentes nomes e circunstâncias, essa mulher, ao atravessar os oito contos e a pequena novela que dá título ao volume (sim, para mim, pelo timing, andamento lento, a última história é antes uma pequena novela do que um conto longo) lhes dá uma unidade rara em coletâneas de histórias curtas. Ao se sentir envelhecer, na solidão da grande cidade, solidão essa que se em alguns momentos pode ser opressora é também requisito para o auto-conhecimento, a personagem-narradora tenta entender, na fragmentação característica dos tempos modernos, as experiências pelas quais passou, o que fez de sua existência: Uma coisa que sempre me espantou e chateou é o modo sinuoso e espatifado como se desenvolve a vida, parecendo não ter nenhuma continuidade além da que procuramos impor-lhe de fora, através de um esforço inútil de racionalização, já que é composta de todo tipo de fragmentos espalhados e inacabados ... (pag. 102). Essa reconstituição obsessiva de uma história pessoal que nunca chega a ter um sentido completo, o que é inerente a nossa condição e remete a uma literatura de fundo existencialista, aparece mais bem concretizada em termos artísticos exatamente no último texto, o mais longo, que parece conter em si de forma depurada todas os anteriores. A personagem de muitos nomes realiza assim, por entre o absurdo e o esquecimento, por entre perdas e o lento-rápido esvair da ampulheta, uma busca permanente do Eu e do sentido de sua vida, permeada pelo sonho, que no fundo é o de todos nós, de alcançarmos nesta nossa breve travessia ... uma certa felicidade. Se é certo que muitas mulheres deverão se identificar com essa personagem onipresente, os homens também não ficam indiferentes a ela. E isso porque, mais do que de uma questão de gênero, a ficção de Sonia Coutinho fala sobretudo do vazio da contingência que ameaça o tempo todo esvaziar as nossas vidas, que desejamos plenas e pelas quais somos os únicos responsáveis.
Este texto constou, inicialmente, na coluna de Rubem no site da ABI.
Rubem Mauro Machado é escritor, jornalista e tradutor. Criado no Rio Grande do Sul, morou alguns anos em São Paulo, antes de se radicar no Rio. Com “ A idade da paixão”, historia de formação ambientada nas pensões da Porto Alegre de 1961 (Editora José Olympio), ganhou o Prêmio Jubuti de melhor romance nacional de 1986. Reescrito pelo autor, o livro foi relançado em edição comemorativa pela Editora Bertrand, em 2006.
Seu romance “Lobos”, de 1997, que retrata a vida nas redações e nos quartéis nos Anos de Chumbo da ditadura militar, acaba de ser lançado na Itália pela Editora Fabula, com o titulo “Lupi”.
Participou de mais de uma dezena de antologias de contos no Brasil e no exterior. Seu conto “O executante” ganhou o Concurso Jerônimo Monteiro de Contos de Suspense e Ação, concorrendo com mais de mil trabalhos, e posteriormente deu nome à coletânea de três narrativas de literatura noir, publicada pela Record em 2000, finalista do Prêmio Jabuti.
É autor ainda, entre outros títulos, de “Jacarés ao sol” (Ed. Ática, contos) e “Não acreditem em mim - Memórias dos Anos Dourados” (Ed. Saraiva), este voltado para o público juvenil. Acaba de concluir um romance sobre Copacabana, intitulado Fogo sobre água, que pretende publicar em breve.
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