ARMANDO FREITAS FILHO
Batismo
Banho simétrico, quadriculado
evitando lavar as partes
tudo o que o primeiro cheiro úmido
de mulher molhou: a cara, o sabor
de fruta pisada, o perfume fundo
de adubo, o punhado do sexo, a placa
na mão e na alma, a ponta
do dedo médio, e o que ficou
grudado nos cabelos – sal, soro, suor
goma, gosto de cola, chuva e choro.
Um dia depois do outro
Esta página expirou.
Não deu para ficar tudo claro.
Trabalho com preto e branco
em meio a sono e súbito
misturado à noite da terra.
Apodreço, alerta
a cabeça alta, no sol.
O tempo pula, agulha
perceptível, nos ponteiros
dos relógios da casa incansável
cercada do dia que nasce
em alumínio severo.
Em casa
A mesa da madrugada está posta.
Quase: ainda no esboço. Faltam dois copos
uma xícara, todas as facas e colheres.
Quem a pôs assim parou: sono, falência
desânimo. Talvez durma também inter-
rompida no linho do sonho, lá em cima.
O escuro comeu uma perna, um braço e
meio, deixou intacto o tronco, um pouco
do rosto. Na toalha da copa, no lençol
do quarto, a noite parou para o dia vir
tentando completar o trabalho e o corpo:
todo dia seguinte é a morte e a manhã.
Estes poemas fazem parte do livro “Lar,”, de Armando Freitas Filho, lançado este ano pela Companhia das Letras.
DINU FLAMAND
Tradução Sonia Coutinho
Sacada
Exercício respiratório – pelo maior tempo possível
reter a adiada erupção de ar
com a florescência de lilases num ramo
que se estendeu dentro de você.
preguiçosa polinização
no horizonte
visto
por cima dos gerânios na sacada
onde levita o mistério do vento
o mar
continua a ovular na direção
de nuvens assexuadas
céu de uma cor irreversível
melancolia como uma súbita ereção
no centro da vida
tarde.
N.T. Em romeno, a palavra “mar” é feminina.
Aprisionado
Ela chega com um cheiro de pele quente
da cama
de outro
tira um sol com erva do seu cabelo
e estende a mão
entre seus dedos a água toma a forma de um copo
ela envia para as profundezas a emoção de um beijo esquecido.
Uma felicidade amuralhada a protege do sono
como uma fortaleza
ela está impregnada por uma densa fosforescência
intangível
enquanto pulsa em minha direção
de uma insuportavelmente próxima
distância
onde me afogo em anos luz de encargos.
Eu abriria de repente o meu peito para recebê-la já
bem dentro do meu silêncio
ruidoso
nos verdes cumes de Abril
mas nenhuma das minhas palavras a toca
e espero
aprisionado no latido do eco inútil
que me repete.
Vinho derramado
Enquanto eu acho procurando você acha achando
uma fenda na fibra do tempo, para ali nos escondermos desta cidade onde não é bom
ser o intruso universal, no fim do milênio.
Mal você me abandona e a vejo chegar,
com migração de pedras roladas por nuvens
em estradas que antigamente também nos trouxeram, no centro das suas margens.
Estou cansado da sua solidão, que não pode
ser curada nem mesmo engolida por minha
canibal solidão;
como você permanece em distância próxima,
parece vinho derramado, mas impedido
de cair pela luva de sombra da minha mão...
N.T. Estes poemas foram traduzidos a partir da tradução para o inglês feita por Olga Dunca. Houve também consultas ao original romeno, com o uso de dicionário, e uma constante colaboração do autor, por e-mail.
LUCINDA PERSONA
Notícia mínima
Coisa nenhuma se esconde à vida
E nem se esconde ao poder da língua
a notícia mínima.
Um ovo levemente frito está no prato
a ponto de ser um sonho, elemento perfeito,
mantimento ativo
E tudo se reduz ao velho e justo termo:
o que vive sem sonhos, vivendo, está morto.
Abrindo vagens
Não será extravagância
(à beira da pia)
rever a vida
através do legume
que já está morto?
Ó inutilidade
Por amor do teu nome
suavizo labores
Poemas nunca serão demais
Haverá sempre o lugar certo
para cada um e suas palavras
como se não houvesse erro
e a alegria fosse possível
Nada se faz no mundo
sem que haja motivo
Quem chora entre um minuto e outro
abrindo o ventre das vagens
para a vida o faz.
Estes poemas fazem parte do novo livro de Lucinda Persona , “Tempo comum,” lançado este ano pela 7 Letras.
ARRIETE VILELA
Poema 26
Montas o laço
da armadilha tão clara
e calmamente sob os meus pés
que me ofereço, inclusive, para te ajudar
no remate ao nó.
Em docilidade, permito que tires
todas as exatas medidas dos meus passos,
para que eu não os dê muito rígidos
em direção ao inevitável vazio,
às devastadoras não-referências.
É assim que deve ser,
pois se trata de libertação:
tu me preparas a armadilha,
e eu te ajudo no requinte do laço.
Desse modo, dificilmente saberemos
quem feriu a ética dessa paixão
e a fez sangrar para que doesse sempre,
sempre e sempre, como uma maldição.
(Do livro “Palavras em travessia”)
Arriete Vilela é alagoana e mora em Maceió. Professora de Letras, publicou os livros de contos “Maria flor”; “Tardios afetos”;” Grande baú, a infância” e de poemas “A rede do anjo”; “Vadios afetos”; “O ócio dos anjos ignorados”, entre outros. Em 2005, saiu seu primeiro romance, “Lãs ao vento”, que recebeu o Prêmio Lúcia Aizim, da União Brasileira de Escritores do Rio. Em 2008, o livro “Ávidas paixões, áridos amores” ganhou o Prêmio Marly de Oliveira, também da UBE.
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