quarta-feira, 9 de setembro de 2009

ARMANDO E A POESIA "AUTOBIOGRÁFICA"



Armando Freitas Filho lançou recentemente seu novo livro, “Lar,”, pela Companhia das Letras. Armando já reunira sua obra, que agora cresce, em “Máquina de escrever” publicado pela Nova Fronteira em 2003.
O poeta, ao longo de uma vida, não interrompeu nunca sua premiada produção.
Ele ganhou por três vezes o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, com “3x4” (1985), “Máquina de escrever” e “Raro mar” (2006). E recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional, com “Fio terra” (2000).
Walter Carvalho prepara um filme sobre o Armando e poesia, com o título de “Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície.”
Encontrei imprevistamente com Armando, um poeta que conheço e admiro de longa data, embora o veja pouco, no café da Escola de Artes Visuais do Parque Lage - e assim surgiu a oportunidade para esta entrevista.

SC - Por que você decidiu deixar a vírgula no “Lar,”? É uma coisa diferente e corajosa fazer um título assim.

AFF -Meu livro se chamava “Lar”. Antes de mandar os originais para a Companhia das Letras pedi ao Sergio Liuzzi, que já tinha feito a capa do meu livro anterior, “Raro mar”, também publicado pela Companhia, além de pequenos livros de minha autoria fora do comércio – livros de artista – em tiragem reduzida, tais como “Para este papel” e “Mr. Interlúdio”, que ele fizesse a capa de “Lar”. Tinha eu algumas idéias que ele esqueceu, para sorte minha, e um belo dia me aparece na tela do meu computador a capa com a vírgula instigante. Meu único mérito foi aceitar de imediato aquele achado, que tinha tudo a ver com o livro em si, que ele, Sergio, só conhecia do que eu contava para ele muito vagamente, sem mostrar nenhum poema. Ele acertou na vírgula e acertou na cor da capa, que eu teimava que fosse cinza. Acho que a vírgula serve não só para esse livro como para minha concepção de poesia, ainda mais para uma poesia que puxa pela memória, que é sempre lacunar, uma e outra. Portanto, a coragem e a novidade, que provocam a diferença, foram todas dele. Desejo que minha poesia corresponda a esses atributos. Aliás, essa vírgula, tem causado espécie generalizada. Todos que a viram, comentam. Nunca vi prefaciador fazer referência à capa do livro que prefacia e o Vagner Camilo, autor do prefácio de “Lar,” comenta a ocorrência da vírgula inquietante. Não custa chamar a atenção, também, para a esplêndida gravura de Carlos Martins, “Interior com poltrona,” na quarta capa, lugar inusual para se apresentar a imagem que representa muito da atmosfera do livro. Creio que sua exposição, assim, isolada, aumentou a solidão ou o desamparo que ela transmite.


SC – Ainda não li o “Lar,” inteiro, mas senti neste livro digamos uma dor, talvez mais presente em sua poesia agora, com a passagem do tempo, com uma consciência da temporalidade do corpo. Essa impressão minha é verdadeira, corresponde de fato à realidade da sua poesia agora?

AFF - Acho que, quando se chega a uma certa idade, estou a meses de completar 70 anos, esses temas passam a ser problemas. Se, quando moço, no meu livro de estréia, “Palavra”, de 1963, escrevia este poema:

CORPO


Acrobata enredado
em clausura de pele
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?

Doce máquina
com engrenagem de músculo
suspiro e rangido
o espaço devora
seu movimento
(braços e pernas
sem explosão).

Engenho de febre
sono e lembrança
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.

e ia para a praia, ou para Petrópolis, com a sensação do dever cumprido, agora não vou mais para lugar nenhum, pois nunca se cumpre um dever, na poesia, suficientemente; ou, se vou, sei que quando a "Indesejada das gentes chegar, não encontrará a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar". Já que essa perfeição humilde só os grandes, como Manuel Bandeira, que a praticou e a escreveu plenamente, conseguem.

SC - Como foi que você partiu para a escrita de um livro de poesia "autobiográfica"? Claro que se pode dizer que há um elemento autobiográfico em toda a poesia, mas neste “Lar,” há uma espécie de direcionamento neste sentido, não? Diga como foi que aconteceu esse enfoque diferenciado.

AFF - Desde sempre, em todos os meus livros, a casa, o corpo, com seus motivos e consequências, estiveram presentes. Posso colher no mesmo longínquo Palavra este poema que confirma o que digo:

CASA


A casa torta
escura e morta
é coisa virando no espaço
(sem espaço).

A casa enorme guarda:
furor de pedra escondida
parede em súbita subida
degrau embolado no escuro
salto de muro sem furo
corpo retido no corpo
desmaio de roupa vazia
olho aberto-fechado
bicho peludo deitado
toque encolhido na mão
pé cortado no chão
contato tecendo rochedo
imóveis móveis de som.


Mas, como você bem nota, neste “Lar,” houve uma concentração, como se eu apanhasse, num único ramo, todos esses motivos que, salvo erro, ganharam mais espessura por um lado, enquanto, por outro, eu abria mão das cores mais chamativas. Tenho a impressão que, hoje, sou mais sóbrio, trabalho com o preto e com o branco, digamos, e se existe alguma nuança ela mal chega ao cinza.


SC - A esta altura, com uma obra poética numerosa e consagrada, o que você diria, em resumo, sobre sua atividade de poeta? O que você obteve? Para onde isso o levou? Era uma fatalidade, ser poeta? Ou foi uma opção?

AFF - Não foi opção nem fatalidade. Foi vocação pura e simples, que acabou me levando a obter um lugar na minha geração. A recepção melhorou muito com o tempo, ou, talvez, mais exatamente, se alargou. Afinal, por teimar tanto, e por tantos anos, às vezes, a gente acaba convencendo os outros. Tomara que esse convencimento perdure o mais que puder, já que o esquecimento é inevitável. De fato, minha produção poética é numerosa, mas quanto à consagração ela só acontece quando quem consagra é generosa como você.


SC - Diga alguma coisa sobre a poesia agora, no Brasil ou no exterior, em todos os tempos, como marca de alguns seres humanos, privilegiados ou amaldiçoados.

AFF - Nunca senti, por ser poeta, privilégio ou maldição. Isso só acontece em outros patamares, onde vivem Carlos Drummond e Rimbaud, para só citar os dois primeiros que me vieram, de pronto, e que trazem essas marcas e respiram, com naturalidade, no ar rarefeito dos absolutamente eleitos. As minhas marcas são cotidianas: paciência e urgência apaixonadas são as que me ocorreram nesse momento.

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