segunda-feira, 25 de maio de 2009

WALY RECITA NO PORTO DA BARRA

Sonia Coutinho

Alguns dos meus melhores momentos, nos dias mais recentes que passei em Salvador, foi quando assisti ao documentário “Pan-cinema permanente”, de Carlos Nader, sobre a vida e as atividades do poeta e músico Waly Salomão, com quem convivi diariamente durante mais de cinco anos, por causa das nossas caminhadas, de manhã cedo, pelo Jardim Botânico.
Quando ouvi, no filme, o poeta e músido Antônio Cícero dizer que o amigo que ele perdeu e cuja falta mais sente é o Waly, minha impressão foi a de que a frase saía também da minha própria boca.
Mas o documentário premiado de Nader - que vi num espaço novo e interessante de Salvador, o “Glauber Rocha” (tem salas de cinema, tem livraria de arte, tem café e restaurante), na praça Castro Alves - curou-me momentaneamente da perda, porque me trouxe Waly vivo, com sua esfuziante vitalidade, com as frases incríveis que ele dizia a toda hora.
Ainda segundo Antônio Cícero, o viver de Waly Salomão era teatro, puro teatro. No documentário, Carlos Nader o mostra repetindo: “A vida é sonho. A vida é sonho. A vida é sonho.” Para além da vida e da morte, entramos em seu sonho, somos o sonho, sonhamos Waly e ele nos sonha, enquanto seguimos seus passos.
Vamos com ele para a Síria, onde foi rastrear suas origens, procurar os parentes que ainda lhe restariam. Ele nos apresenta à sua família – Martha, os filhos Omar e Khalid. E divaga em voz alta para nós, numa estrada lamacenta da Amazônia.
Magicamente, no final do “Pan-cinema permanente,” com um riso maroto, sobre as areias do Porto da Barra, Waly abre uma página do seu livro “Lábia” e mostra o poema “Post-mortem”, como se falasse conosco da posição em que agora está.
Mas o que ele diz é do gozo da vida. E, numa demonstração prática, lança-se na areia e se espicha, braços e pernas abertos, momento seu de plenitude total entre mar e céu.
Quando saí do cinema, telefonei para Martha Braga, para lhe dizer como estava feliz por ter sido amiga de Waly e participado, mesmo que apenas um pouco, do seu universo.
Quem puder, veja o “Pan-cinema permanente” de Carlos Nader. E, agora mesmo, abaixo, leia o “Post Mortem.” E o “Verão”, meu poema favorito de Waly, que ele com certeza recitou naquela hora, deitado na areia do Porto da Barra.
Que ele vem recitando todos os dias ali, quando não chove, enquanto o sol se põe. Moro perto e já vi várias vezes, juro.

VERÃO

Waly Salomão

Desde que o Imperador Amarelo
Quebrou a barra do dia
Irrompeu com suas forjas
O horizonte febril
Que uma espada de luz
Serra em prata a água salgada
E miríades de lâminas
Douram e escaldam a areia vítrea.

Saltam faíscas do bate-bigorna imperial.

Nenhuma nuvem tolda
A ferraria do estio.

Azul excessivo solda
Céu e mar.


POST-MORTEM
(Final)

Waly Salomão
...
Não cortejar a morte.
Não perambular pelos cemitérios
nem brindar o luar patético
com caveiras repletas de vinho tinto seco
como um Byron-Castro Alves gótico e obsoleto.
Sereno e cabeça dura – testa ruda –
mirar de frente a caveira
e as tropas de vermes de prontidão
(como observo vermes dentro de um pêssego)
mas por enquanto gargalhar da irrealidade da morte.
Gozar, gozar e gozar
a exuberância órfica das coisas
em riba da terra
debaixo
do céu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário