Kublai Khan observa: “Por que falar das pedras? Só o arco me interessa”. Polo responde: “Sem as pedras o arco não existe”. (Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis).
Eu quero construir pontes. Unir os dois mundos. Mas sou fraca. Um pobre Marco Pólo, sem seu Imperador. Sem Kublai Khan. Estou muito longe. Algo na paisagem anuncia as cúpulas redondas das igrejas. É noite. Quase impossível identificar o lugar onde me encontro. Oriente? Caminho entre os muros de uma cidade de pedra. Muitas pedras. Tento unir os caminhos, chegar à ponte de K. Mas as ruas, com sua luz mortiça, me assustam como fantasmas.
Um homem passa na calçada deserta e eu me precipito, qual Alice noturna, nos braços do homem que passa. Eu me agarro a ele. É meu coelho branco, meu salvador. Ele me levará a um lugar seguro. Pergunta-se Rousseau (o Jean-Jacques): “Pertence a mulher à espécie humana?”. Eu, Alice ou Natasha ou Dorine ou Gabriela...não importa o nome, aguardo, zonza, o final da queda. Há um precipício e uma luz intensa corta a escuridão. Ela vem de um lustre de cristal e, pendurados no lustre, estão seres humanos. Homens? Abstraindo o discurso de Rousseau, eu, Alice, vejo vultos, homens e mulheres se atirando no espaço. Ouço gritos, vejo acrobacias. Seres voando no espaço aberto. Meus sentidos estão atentos. Os vultos se movimentam no interior de um mundo desconhecido para mim. São seres humanos, ou apenas feras, animais se movimentando em uma jaula de cristal?
Agora estou no meio da neve. Muita neve. Espaços vazios. É como se tivesse saído de um teatro aquecido para o exterior de uma cidade congelada. Percebo, próximo a mim, corvos. Dezenas deles. Voam, se aproximando. Ficam tão próximos que posso ver seus olhos me fitando. São aves de rapina. Os urubus jamais fariam isso. Pelo menos, não no Rio de Janeiro. Ninguém os encorajaria a se aproximarem dessa maneira! Todos sabem que os urubus só gostam de cadáveres, de podridão... E eu estou viva, bem viva!
Os corvos têm asas de aço e se aproximam. Eles me enlouquecem com os seus gritos. Eu percebo rostos humanos, aquelas bocas negras de pássaro lançando gritos agudos: “Niet! Mói muj! Maia giná!”. Não sei o que eles gritam. Tento agarrar suas penas. Elas são pontudas, podem me ferir. Eu, Dorine, Alice, Natália... sinto nesta cena a morte do amor. Os personagens de Tchecov buscam a morte do amor.
“Tchecov” – alguém sussurra em meu ouvido.
Vejo o coelho branco. O meu coelho branco. O homem apressado que se precipitou comigo na escuridão da queda. Agora, no lusco-fusco do lustre de cristal, percebo o brilho irônico de seu olhar. “Tchecov”, ele repete. As luzes se acendem e tudo volta ao normal. Há um precipício, ele me separa do palco. O espaço aberto a meus pés parece querer me sugar. Penso em Genet, no diretor Vitor Garcia, no Brasil do século XX. O espaço cênico de “O Balcão”. Isso não me surpreende. Já nada mais me surpreende. Penso vagamente em Garcia e no espetáculo que acabo de ver. Trata-se de um espetáculo teatral? Penso no que acharia o diretor argentino daquela versão de Tchecov.
- Quer ver a diretora? – me pergunta o homem. Ele fala a minha língua. Ele é apenas um rosto, como milhares de rostos que lembram outros rostos. Possui feições eslavas. Penso. Há também uma mulher de cabelos vermelhos. Não sei o que ela fala. Não a entendo. Ela não fala a minha língua.
A mulher é Nathalia Timberg!
Ela gesticula, cita Grotoviski, Maiakovski, Stanislavski, Ruboviski, Ludoieff... Ouço a mulher de cabelos vermelhos dizer: “Se fosse no tempo de Stalin
(subitamente entendo o que ela fala!)
... eu estaria presa ou morta, como Meyerhold.”
Ela para de falar e começa a cumprimentar as pessoas em uma língua que eu não conheço. Aperta as mãos das pessoas e diz:
“Spaciba!” “Zdaróbia!” “Harashó!”
Eu não me aproximei.
Esta é uma cidade estranha. Aqui falam uma língua estranha. Isso é autêntico. É real.
Repito obsessiva, como se estivesse decorando um texto teatral: “é uma realidade irreal. Ela não é Nathalia Timberg. Este mundo aqui não é real... não é real...”
Meu coelho se aproxima. Procura vencer a sala repleta. Vem em minha direção, mas eu fujo. Estou livre! Corro, apressada. Estou livre! Livre!
Respiro o ar da noite.
“Em que rua de Perínzia estarei”?
“Nas ruas e praças de Perínzia, hoje em dia, vêem-se aleijados, anões, corcundas, obesos, mulheres com barba. Mas o pior não se vê: gritos guturais irrompem nos porões e nos celeiros, onde as famílias escondem os filhos com três cabeças ou seis pernas”. Perínzia, um das cidades invisíveis de Calvino?
- Não é Perínzia - murmura o coelho de pelo branco. “Ele fala novamente em teus ouvidos, Alice! Ele pode ouvir meus pensamentos...!”
Sinto seu hálito quente em meu pescoço e me descontrolo. Começo a correr. Ele me persegue. Pelas ruas, becos, parques. O calor sensual convida à desrazão. No céu, enorme, a lua cheia se confunde com o mar, num alvoroço de prata.
A água se desalinha em ângulos concêntricos e eu enlouqueço. Fugir! Tenho que fugir! As cidades invisíveis se confundem naquele turbilhão e eu penso na cidade aquática. Esmeraldina? Veneza...
Penso no Rio de Janeiro. A cidade amada...
Eu, Alice, Gabriela, Natasha, não importa o nome, me sinto enorme. Trago comigo o desejo do mundo. A cidade me acolhe em seu centro de fogo. Eu me uno a ele, ao meu coelho branco. Ao bode lascivo. Ao homem. Ele está ali, o eslavo. Eu consinto. Eu vivo esse prazer. Nos tornamos um só.
À luz da lua!
À LA LUZ DE LA LUNA!
Eu brilho na noite...
Ida Vicenzia nasceu no Rio Grande do Sul. Formação: Colégio Sévigné, Porto Alegre. Graduação em Jornalismo pela USP/SP - Mestre e Doutora em Letras pela PUC/RJ. Tem publicados Sabática, a Gata Lunática, um conto infantil, Editora Mauad/RJ e História da Dança no Brasil, Editora Atração/SP.Com o trabalho A Dama da Lua - sobre Cecília Meireles -, ganhou o Prêmio Monografia 2004, da Casa de Rui Barbosa/RJ. Tem vários contos publicados. Assinou colunas de Literatura em vários jornais do Rio. Especializada em literatura e teatro. Atualmente assina uma coluna de critica teatral e desenvolve pesquisa para a Casa de Rui Barbosa, com apoio da Faperj, sobre O Teatro Católico de Octavio de Faria.
Eu quero construir pontes. Unir os dois mundos. Mas sou fraca. Um pobre Marco Pólo, sem seu Imperador. Sem Kublai Khan. Estou muito longe. Algo na paisagem anuncia as cúpulas redondas das igrejas. É noite. Quase impossível identificar o lugar onde me encontro. Oriente? Caminho entre os muros de uma cidade de pedra. Muitas pedras. Tento unir os caminhos, chegar à ponte de K. Mas as ruas, com sua luz mortiça, me assustam como fantasmas.
Um homem passa na calçada deserta e eu me precipito, qual Alice noturna, nos braços do homem que passa. Eu me agarro a ele. É meu coelho branco, meu salvador. Ele me levará a um lugar seguro. Pergunta-se Rousseau (o Jean-Jacques): “Pertence a mulher à espécie humana?”. Eu, Alice ou Natasha ou Dorine ou Gabriela...não importa o nome, aguardo, zonza, o final da queda. Há um precipício e uma luz intensa corta a escuridão. Ela vem de um lustre de cristal e, pendurados no lustre, estão seres humanos. Homens? Abstraindo o discurso de Rousseau, eu, Alice, vejo vultos, homens e mulheres se atirando no espaço. Ouço gritos, vejo acrobacias. Seres voando no espaço aberto. Meus sentidos estão atentos. Os vultos se movimentam no interior de um mundo desconhecido para mim. São seres humanos, ou apenas feras, animais se movimentando em uma jaula de cristal?
Agora estou no meio da neve. Muita neve. Espaços vazios. É como se tivesse saído de um teatro aquecido para o exterior de uma cidade congelada. Percebo, próximo a mim, corvos. Dezenas deles. Voam, se aproximando. Ficam tão próximos que posso ver seus olhos me fitando. São aves de rapina. Os urubus jamais fariam isso. Pelo menos, não no Rio de Janeiro. Ninguém os encorajaria a se aproximarem dessa maneira! Todos sabem que os urubus só gostam de cadáveres, de podridão... E eu estou viva, bem viva!
Os corvos têm asas de aço e se aproximam. Eles me enlouquecem com os seus gritos. Eu percebo rostos humanos, aquelas bocas negras de pássaro lançando gritos agudos: “Niet! Mói muj! Maia giná!”. Não sei o que eles gritam. Tento agarrar suas penas. Elas são pontudas, podem me ferir. Eu, Dorine, Alice, Natália... sinto nesta cena a morte do amor. Os personagens de Tchecov buscam a morte do amor.
“Tchecov” – alguém sussurra em meu ouvido.
Vejo o coelho branco. O meu coelho branco. O homem apressado que se precipitou comigo na escuridão da queda. Agora, no lusco-fusco do lustre de cristal, percebo o brilho irônico de seu olhar. “Tchecov”, ele repete. As luzes se acendem e tudo volta ao normal. Há um precipício, ele me separa do palco. O espaço aberto a meus pés parece querer me sugar. Penso em Genet, no diretor Vitor Garcia, no Brasil do século XX. O espaço cênico de “O Balcão”. Isso não me surpreende. Já nada mais me surpreende. Penso vagamente em Garcia e no espetáculo que acabo de ver. Trata-se de um espetáculo teatral? Penso no que acharia o diretor argentino daquela versão de Tchecov.
- Quer ver a diretora? – me pergunta o homem. Ele fala a minha língua. Ele é apenas um rosto, como milhares de rostos que lembram outros rostos. Possui feições eslavas. Penso. Há também uma mulher de cabelos vermelhos. Não sei o que ela fala. Não a entendo. Ela não fala a minha língua.
A mulher é Nathalia Timberg!
Ela gesticula, cita Grotoviski, Maiakovski, Stanislavski, Ruboviski, Ludoieff... Ouço a mulher de cabelos vermelhos dizer: “Se fosse no tempo de Stalin
(subitamente entendo o que ela fala!)
... eu estaria presa ou morta, como Meyerhold.”
Ela para de falar e começa a cumprimentar as pessoas em uma língua que eu não conheço. Aperta as mãos das pessoas e diz:
“Spaciba!” “Zdaróbia!” “Harashó!”
Eu não me aproximei.
Esta é uma cidade estranha. Aqui falam uma língua estranha. Isso é autêntico. É real.
Repito obsessiva, como se estivesse decorando um texto teatral: “é uma realidade irreal. Ela não é Nathalia Timberg. Este mundo aqui não é real... não é real...”
Meu coelho se aproxima. Procura vencer a sala repleta. Vem em minha direção, mas eu fujo. Estou livre! Corro, apressada. Estou livre! Livre!
Respiro o ar da noite.
“Em que rua de Perínzia estarei”?
“Nas ruas e praças de Perínzia, hoje em dia, vêem-se aleijados, anões, corcundas, obesos, mulheres com barba. Mas o pior não se vê: gritos guturais irrompem nos porões e nos celeiros, onde as famílias escondem os filhos com três cabeças ou seis pernas”. Perínzia, um das cidades invisíveis de Calvino?
- Não é Perínzia - murmura o coelho de pelo branco. “Ele fala novamente em teus ouvidos, Alice! Ele pode ouvir meus pensamentos...!”
Sinto seu hálito quente em meu pescoço e me descontrolo. Começo a correr. Ele me persegue. Pelas ruas, becos, parques. O calor sensual convida à desrazão. No céu, enorme, a lua cheia se confunde com o mar, num alvoroço de prata.
A água se desalinha em ângulos concêntricos e eu enlouqueço. Fugir! Tenho que fugir! As cidades invisíveis se confundem naquele turbilhão e eu penso na cidade aquática. Esmeraldina? Veneza...
Penso no Rio de Janeiro. A cidade amada...
Eu, Alice, Gabriela, Natasha, não importa o nome, me sinto enorme. Trago comigo o desejo do mundo. A cidade me acolhe em seu centro de fogo. Eu me uno a ele, ao meu coelho branco. Ao bode lascivo. Ao homem. Ele está ali, o eslavo. Eu consinto. Eu vivo esse prazer. Nos tornamos um só.
À luz da lua!
À LA LUZ DE LA LUNA!
Eu brilho na noite...
Ida Vicenzia nasceu no Rio Grande do Sul. Formação: Colégio Sévigné, Porto Alegre. Graduação em Jornalismo pela USP/SP - Mestre e Doutora em Letras pela PUC/RJ. Tem publicados Sabática, a Gata Lunática, um conto infantil, Editora Mauad/RJ e História da Dança no Brasil, Editora Atração/SP.Com o trabalho A Dama da Lua - sobre Cecília Meireles -, ganhou o Prêmio Monografia 2004, da Casa de Rui Barbosa/RJ. Tem vários contos publicados. Assinou colunas de Literatura em vários jornais do Rio. Especializada em literatura e teatro. Atualmente assina uma coluna de critica teatral e desenvolve pesquisa para a Casa de Rui Barbosa, com apoio da Faperj, sobre O Teatro Católico de Octavio de Faria.
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