A foto dele é de Cláudio Nadalin.
MEDITAÇÃO SOBRE O OFÍCIO DE CRIAR
Silviano Santiago
Nos dois últimos livros de ficção que publiquei - O falso mentiroso (2004) e Histórias mal contadas (2005) -, tentei dar corpo textual a quatro questões constitutivas do que tem sido para mim o exercício da literatura do eu – as questões da experiência, da memória, da sinceridade e da verdade poética. Se eu aceitei o convite para lhes falar hoje, não foi com a intenção de trazer ao palco o autor dos livros e, com ele, o objetivo de oferecer-lhes uma leitura explicativa daqueles dois e de outros textos autoficcionais meus. Pelo contrário. Só ao leitor compete a tarefa da leitura. Aliás, não sou escritor que busca minimizar o trabalho do leitor; em geral, complico-o. Subscrevo dois versos de Nietzsche/Zaratustra, que dizem: “odeio todos os preguiçosos que lêem. / Alguém que conhece o leitor, nada fará pelo leitor”. Perguntado sobre se encenava peças para seu público, Antonin Artaud respondeu: “O público, é preciso em primeiro lugar que o teatro seja”. Em nossas palavras: O leitor, é preciso em primeiro lugar que a literatura seja.
. O objetivo primordial desta fala é o de lhes apresentar e, na medida do possível, discutir algumas questões abstratas que preocuparam e preocupam o escritor enquanto personalidade que reflete sobre o estatuto disso a que hoje se chama – e ele próprio passou a chamar - de autoficção. Se pedisse ajuda a João Cabral de Melo Neto, estas palavras trariam como título e intenção “Meditação sobre o ofício de criar”. A ele peço de novo ajuda para acrescentar que a meditação “nada têm de pregação e sequer da sugestão de receitas possíveis”.
No meu caso, cheguei à autoficção através de um longo processo de diferenciação, preferência e contaminação. Falo primeiro da diferenciação e da preferência. Parti da distinção entre discurso autobiográfico e discurso confessional. Os dados autobiográficos percorrem todos meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando por terra a expressão meramente confessional. Os dados autobiográficos servem de alicerce na hora de idealizar e compor meus escritos e, eventualmente, podem servir ao leitor para explicá-los. Traduz o contato reflexivo da subjetividade criadora com os fatos da realidade que me condicionam e os da existência que me conformam. Do ponto de vista da forma e do conteúdo, o discurso autobiográfico per se – na sua pureza - é tão proteiforme quanto camaleão e tão escorregadio quanto mercúrio, embora carregue um tremendo legado na literatura brasileira e na ocidental.
Já o discurso propriamente confessional está ausente de meus escritos. Nestes não está em jogo a expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole romântica ou neo-romântica. Não nos iludamos, a distinção entre os dois discursos tem, portanto, o efeito de marcar minha familiaridade criativa com o autobiográfico e o conseqüente rebaixamento do confessional ao grau zero da escrita. Em que pese seu legado insuspeito para as culturas nacionais, o discurso autobiográfico jamais transpareceu per se em meus escritos, ou seja, não me apropriei dele em sua pureza subjetiva e intolerância sentimental. Não escrevi minha autobiografia. Uma pergunta se impõe: Então, como tenho valido do discurso autobiográfico nos escritos? Para respondê-la, passemos ao terceiro movimento, o da contaminação.
Ao reconhecer e adotar o discurso autobiográfico como força motora da criação, coube-me levá-lo a se deixar contaminar pelo conhecimento direto - atento, concentrado e imaginativo - do discurso ficcional da tradição ocidental, de Miguel de Cervantes a James Joyce, para ficar com extremos. Não foi por casualidade que, na juventude, o crítico de cinema se matriculou na Faculdade de Letras e se tornou, na maturidade, professor de literatura. Se minha vida é a que me toca viver, minha formação foi e é estofada pela leitura dos ficcionistas canônicos e dos contemporâneos – independente de nacionalidade. Com a exclusão da matéria que constitui o meramente confessional, o texto híbrido, constituído pela contaminação da autobiografia pela ficção – e da ficção pela autobiografia -, marca a inserção do tosco e requintado material subjetivo meu na tradição literária ocidental e indicia a relativização por esta de seu anárquico potencial criativo.
Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa.
A força criadora do eu – o que Michel Foucault chama de ressemantização do sujeito pelo sujeito - tropeça na pedra no meio do caminho que é a tradição literária ocidental. Tropeça na pedra, leva tombo, levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima e se afirma como também produtora no embate com o poder esmagador da tradição ficcional. Dessa forma é que a ressemantização do sujeito pelo sujeito ganha tutano para questionar, pela produção textual, o estatuto contemporâneo tanto da técnica/artesanato da ficção (the craft of fiction, em inglês) quanto do cânone ficcional. Com o correr dos anos, o movimento de vai-vem do questionamento duplo abriu-me uma brecha de intervenção dramática e textual, onde tenho trabalhado as principais características – experiência, memória, sinceridade e verdade poética - da moderna literatura do eu.
A fim de evitar mal entendidos, afirmo que em nenhum momento do passado remoto usei a categoria autoficção para classificar os textos híbridos por mim escritos e publicados. Quando pude, evitei a palavra romance. No caso de Em liberdade (1981), um diário íntimo falso “de” Graciliano Ramos, classifiquei o livro de “uma ficção de”, para o desagrado dos editores que preferem o ramerrão do gênero. Já a professora Ana Maria Bulhões de Carvalho o classificou de alterbiografia, um neologismo que já aponta para o caráter híbrido da proposta. Não tive pejo em usar “memórias” para O falso mentiroso. Memórias tem boa tradição ficcional entre nós.[1] Finalmente, acrescento que fiquei alegremente surpreso quando deparei com a informação de que Serge Doubrovsky, crítico francês radicado nos Estados Unidos, tinha cunhado, em 1977, o neologismo autoficção e que, em 2004, Vincent Colonna, um jovem crítico e historiador da literatura, tenha valido do neologismo para escrever o desde já indispensável Autofiction & autres mythomanies littéraires (Paris, Tristram). Em suma, passei a usar como minha a categoria posterior e alheia de autoficção.
Meu percurso certamente difere do percurso de Serge Doubrovsky e de Vincent Colonna, e é por isso que aceitei o convite que me foi feito por Luciana Hidalgo para participar deste encontro. Aliás, Colonna é bastante generoso na sua configuração do gênero híbrido - a autoficção, que motivou seu estudo, optando por classificar o conjunto das narrativas afins como “uma nebulosa de práticas aparentadas”. Escreve ele que é imensa a lista dos escritores que vêm emoldurando sua identidade numa montagem textual, acrescentando: “Desiguais em sua riqueza, as obras deles são também diferentes pela forma e pela amplidão dos processos de hibridização, mas todas elas marcam uma época, um momento da história literária, em que a ficção do eu [la fiction de soi] ocupa os mais diferentes escritores, para constituir não tanto um gênero, mas talvez uma nebulosa de práticas aparentadas”.
Como a autoficção não é forma simples nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais recente, eis-me à vontade para relatar-lhes meu caminho pessoal. Retorno à distinção inicial entre discurso autobiográfico e confessional.
Não esbocei intencionalmente a distinção e muito menos a arquitetei por artes da inteligência ou da razão. Tampouco a constitui de maneira fria e pragmática como lugar original de minha prática literária. A distinção entre autobiográfico e confessional ganhou corpo textual no momento em que comecei a conjugar minha própria experiência infantil de vida com o auxílio dos verbos de minha memória. Ou seja, desde a mais tenra infância, a distinção entre autobiografia e confissão foi feita e existiu em mim e, desde sempre, existe como força a alavancar a imaginação criadora.
A preferência pelo discurso autobiográfico e a conseqüente contaminação dele pelo discurso ficcional se tornou prática textual, ou seja, elas configuraram um produto híbrido, no momento em que o menino/sujeito teve a imperiosa necessidade de jogar para escanteio - ou para o inconsciente - o confessional e aliar a fala de sua experiência de vida à invenção ficcional. A contaminação se tornou prática propriamente literária no momento em que o adolescente/sujeito – um memorioso estudioso de Letras - revisitava as práticas textuais híbridas da infância para torná-las do domínio público. Ao revisitá-las pelo exercício da memória, tenta apreendê-las com o fim de equacionar o desejo de criar narrativas literárias que signifiquem no universo cultural brasileiro. Muita pretensão? Talvez sim, talvez não. Mas nenhum escritor se realiza sem uma “ambição justa”, para retomar a expressão de Autran Dourado.
Portanto, a preferência pelos dados autobiográficos e a contaminação do discurso autobiográfico pelo ficcional existiram desde sempre lá na infância e estarão para sempre em meus escritos. Não tirei distinção, preferência e contaminação do nada, não as inventei recentemente e é por isso que vale a pena pagar uma visita ao menino antigo.
Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe - não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Nisso talvez possa me oferecer como paradigmas a infância de Gustave Flaubert e, principalmente, a maturidade de Fernando Pessoa. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição.
Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, co-existiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo. Os fatos autobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional.
O sujeito ressemantizava o sujeito pelo discurso híbrido.
Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso ficcional.. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com este exemplo.
Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico (para as conotações, veja-se o período histórico), no escurinho protegido pelas grades do pseudo-anonimato (morava numa cidade do interior), tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar e confessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranóia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis. Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala.
Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto de vivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe - e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional - verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso. Faço minhas as palavras contundentes de Michel Foucault em A arqueologia do saber: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”.
Na infância, já era multiplicadoramente confessional e sincero, era autoficcionalmente confessional e sincero. O discurso confessional – que nunca existiu no domínio público – se articulava e se articulou desde sempre pela multiplicação explosiva dos discursos autobiográficos que faziam pacto com o ficcional. O discurso confessional – que na verdade não o era, era apenas um lugar vazio, desesperador, preenchido por discursos híbridos - só poderia estar plena e virtualmente num feixe discursivo, numa soma em aberto de discursos autoficcionais, cujo peso e valor final seriam de responsabilidade do padre-confessor – e, hoje, de meu leitor. Ao padre-confessor e ao leitor passava algumas histórias mal contadas.
A boa literatura é uma verdade bem contada... pelo leitor... que delega a si – pelo ato de leitura - a incumbência de decifrar uma história mal contada pelo narrador. Competiu aos ouvidos do padre-confessor - e compete hoje aos olhos do leitor - preencher os brancos e os vazios de que é também feito um texto literário, aliás, não tenhamos dúvida, qualquer texto, que o diga o psicanalista. Compete ao leitor empinar (como a uma pipa) e endireitar (como a algo sinuoso) um objeto em palavras que lhe é dado de maneira corriqueira e aparentemente em desordem. Um exemplo? Pois não. Dom Casmurro é uma história mal contada pelo narrador Bentinho sobre o adultério de sua esposa, Capitu, com Ezequiel, o melhor amigo do casal. Caso narrada da perspectiva do leitor, a estória em primeira pessoa sobre o adultério de Capitu se transforma numa bem contada história sobre o ciúme doentio do personagem Bentinho.
As histórias – todas elas, eu diria num acesso de generalização – são mal contadas porque o narrador, independentemente do seu desejo consciente de se expressar dentro dos parâmetros da verdade, acaba por se surpreender a si pelo modo traiçoeiro como conta sua história (ao trair a si, trai a letra da história que deveria estar contando). A verdade não está explícita numa narrativa ficcional, está sempre implícita, recoberta pela capa da mentira, da ficção. No entanto, é a mentira, ou a ficção, que narra poeticamente a verdade ao leitor.
Um dos grandes temas que dramatizo em meus escritos, com o gosto e o prazer da obsessão, é o da verdade poética. Ou seja, o tema da verdade na ficção, da experiência vital humana metamorfoseada pela mentira que é a ficção. Trata-se de óbvio paradoxo, cuja raiz está entre os gregos antigos. Recentemente, encontrei a forma moderna do paradoxo num desenho de Jean Cocteau, da série grega. Está datado de novembro de 1936. No desenho vemos um perfil nitidamente grego, o do poeta e músico Orfeu. De sua boca, como numa história em quadrinho, sai uma bolha onde está escrito: “Je suis un mensonge qui dit toujours la vérité” (Sou uma mentira, que diz sempre a verdade). Esse jogo entre o narrador da ficção que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade poética, esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional, é que possibilitou que eu pudesse levar até as últimas conseqüências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos, emoções, modo de encarar as coisas e as pessoas, etc.), do outro, adequá-la à tradição canônica da ficção ocidental.
Toda narrativa ficcional em que a verdade poética está transparente – aquilo que se chama de romance de tese – é um saco. A verdade ficcional é algo de palpitante, pulsante, que requer sismógrafos, estetoscópios, e todos os muitos aparelhos científicos ou cirúrgicos que levam o leitor a detectar tudo o que vibra, pulsa e trepida no quadro da aparente tranqüilidade da narrativa literária, ou seja, no mal contado pela linguagem. Nesse sentido, e exclusivamente nesse sentido, o bem contado é a forma superficial de toda grande narrativa ficcional que é, por definição e no seu abismo, mal contada.
Para terminar, leio parte dum fragmento de “Sem aviso”, texto assinado por Clarice Lispector: “Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser precavida, e depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso – já atordoada eu sentia – era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta”. Permitam-me a glosa. O sujeito em primeira pessoa começou a mentir por prudência e cautela e, como a realidade ambiente o incitava a ser prudente e cauteloso, continuou a mentir descaradamente. E tanto mentia, que já mentia sobre as mentiras que tinha inventado. E a tal ponto mente, que a mentira se torna o meu modo mais radical de ser escritor, de dizer a verdade que lhe é própria, de dizer a verdade poética.
[1] Memórias de um sargento de milícias, Memórias póstumas de Brás Cubas e Memórias sentimentais de João Miramar.
Silviano Santiago
Nos dois últimos livros de ficção que publiquei - O falso mentiroso (2004) e Histórias mal contadas (2005) -, tentei dar corpo textual a quatro questões constitutivas do que tem sido para mim o exercício da literatura do eu – as questões da experiência, da memória, da sinceridade e da verdade poética. Se eu aceitei o convite para lhes falar hoje, não foi com a intenção de trazer ao palco o autor dos livros e, com ele, o objetivo de oferecer-lhes uma leitura explicativa daqueles dois e de outros textos autoficcionais meus. Pelo contrário. Só ao leitor compete a tarefa da leitura. Aliás, não sou escritor que busca minimizar o trabalho do leitor; em geral, complico-o. Subscrevo dois versos de Nietzsche/Zaratustra, que dizem: “odeio todos os preguiçosos que lêem. / Alguém que conhece o leitor, nada fará pelo leitor”. Perguntado sobre se encenava peças para seu público, Antonin Artaud respondeu: “O público, é preciso em primeiro lugar que o teatro seja”. Em nossas palavras: O leitor, é preciso em primeiro lugar que a literatura seja.
. O objetivo primordial desta fala é o de lhes apresentar e, na medida do possível, discutir algumas questões abstratas que preocuparam e preocupam o escritor enquanto personalidade que reflete sobre o estatuto disso a que hoje se chama – e ele próprio passou a chamar - de autoficção. Se pedisse ajuda a João Cabral de Melo Neto, estas palavras trariam como título e intenção “Meditação sobre o ofício de criar”. A ele peço de novo ajuda para acrescentar que a meditação “nada têm de pregação e sequer da sugestão de receitas possíveis”.
No meu caso, cheguei à autoficção através de um longo processo de diferenciação, preferência e contaminação. Falo primeiro da diferenciação e da preferência. Parti da distinção entre discurso autobiográfico e discurso confessional. Os dados autobiográficos percorrem todos meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando por terra a expressão meramente confessional. Os dados autobiográficos servem de alicerce na hora de idealizar e compor meus escritos e, eventualmente, podem servir ao leitor para explicá-los. Traduz o contato reflexivo da subjetividade criadora com os fatos da realidade que me condicionam e os da existência que me conformam. Do ponto de vista da forma e do conteúdo, o discurso autobiográfico per se – na sua pureza - é tão proteiforme quanto camaleão e tão escorregadio quanto mercúrio, embora carregue um tremendo legado na literatura brasileira e na ocidental.
Já o discurso propriamente confessional está ausente de meus escritos. Nestes não está em jogo a expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole romântica ou neo-romântica. Não nos iludamos, a distinção entre os dois discursos tem, portanto, o efeito de marcar minha familiaridade criativa com o autobiográfico e o conseqüente rebaixamento do confessional ao grau zero da escrita. Em que pese seu legado insuspeito para as culturas nacionais, o discurso autobiográfico jamais transpareceu per se em meus escritos, ou seja, não me apropriei dele em sua pureza subjetiva e intolerância sentimental. Não escrevi minha autobiografia. Uma pergunta se impõe: Então, como tenho valido do discurso autobiográfico nos escritos? Para respondê-la, passemos ao terceiro movimento, o da contaminação.
Ao reconhecer e adotar o discurso autobiográfico como força motora da criação, coube-me levá-lo a se deixar contaminar pelo conhecimento direto - atento, concentrado e imaginativo - do discurso ficcional da tradição ocidental, de Miguel de Cervantes a James Joyce, para ficar com extremos. Não foi por casualidade que, na juventude, o crítico de cinema se matriculou na Faculdade de Letras e se tornou, na maturidade, professor de literatura. Se minha vida é a que me toca viver, minha formação foi e é estofada pela leitura dos ficcionistas canônicos e dos contemporâneos – independente de nacionalidade. Com a exclusão da matéria que constitui o meramente confessional, o texto híbrido, constituído pela contaminação da autobiografia pela ficção – e da ficção pela autobiografia -, marca a inserção do tosco e requintado material subjetivo meu na tradição literária ocidental e indicia a relativização por esta de seu anárquico potencial criativo.
Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa.
A força criadora do eu – o que Michel Foucault chama de ressemantização do sujeito pelo sujeito - tropeça na pedra no meio do caminho que é a tradição literária ocidental. Tropeça na pedra, leva tombo, levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima e se afirma como também produtora no embate com o poder esmagador da tradição ficcional. Dessa forma é que a ressemantização do sujeito pelo sujeito ganha tutano para questionar, pela produção textual, o estatuto contemporâneo tanto da técnica/artesanato da ficção (the craft of fiction, em inglês) quanto do cânone ficcional. Com o correr dos anos, o movimento de vai-vem do questionamento duplo abriu-me uma brecha de intervenção dramática e textual, onde tenho trabalhado as principais características – experiência, memória, sinceridade e verdade poética - da moderna literatura do eu.
A fim de evitar mal entendidos, afirmo que em nenhum momento do passado remoto usei a categoria autoficção para classificar os textos híbridos por mim escritos e publicados. Quando pude, evitei a palavra romance. No caso de Em liberdade (1981), um diário íntimo falso “de” Graciliano Ramos, classifiquei o livro de “uma ficção de”, para o desagrado dos editores que preferem o ramerrão do gênero. Já a professora Ana Maria Bulhões de Carvalho o classificou de alterbiografia, um neologismo que já aponta para o caráter híbrido da proposta. Não tive pejo em usar “memórias” para O falso mentiroso. Memórias tem boa tradição ficcional entre nós.[1] Finalmente, acrescento que fiquei alegremente surpreso quando deparei com a informação de que Serge Doubrovsky, crítico francês radicado nos Estados Unidos, tinha cunhado, em 1977, o neologismo autoficção e que, em 2004, Vincent Colonna, um jovem crítico e historiador da literatura, tenha valido do neologismo para escrever o desde já indispensável Autofiction & autres mythomanies littéraires (Paris, Tristram). Em suma, passei a usar como minha a categoria posterior e alheia de autoficção.
Meu percurso certamente difere do percurso de Serge Doubrovsky e de Vincent Colonna, e é por isso que aceitei o convite que me foi feito por Luciana Hidalgo para participar deste encontro. Aliás, Colonna é bastante generoso na sua configuração do gênero híbrido - a autoficção, que motivou seu estudo, optando por classificar o conjunto das narrativas afins como “uma nebulosa de práticas aparentadas”. Escreve ele que é imensa a lista dos escritores que vêm emoldurando sua identidade numa montagem textual, acrescentando: “Desiguais em sua riqueza, as obras deles são também diferentes pela forma e pela amplidão dos processos de hibridização, mas todas elas marcam uma época, um momento da história literária, em que a ficção do eu [la fiction de soi] ocupa os mais diferentes escritores, para constituir não tanto um gênero, mas talvez uma nebulosa de práticas aparentadas”.
Como a autoficção não é forma simples nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais recente, eis-me à vontade para relatar-lhes meu caminho pessoal. Retorno à distinção inicial entre discurso autobiográfico e confessional.
Não esbocei intencionalmente a distinção e muito menos a arquitetei por artes da inteligência ou da razão. Tampouco a constitui de maneira fria e pragmática como lugar original de minha prática literária. A distinção entre autobiográfico e confessional ganhou corpo textual no momento em que comecei a conjugar minha própria experiência infantil de vida com o auxílio dos verbos de minha memória. Ou seja, desde a mais tenra infância, a distinção entre autobiografia e confissão foi feita e existiu em mim e, desde sempre, existe como força a alavancar a imaginação criadora.
A preferência pelo discurso autobiográfico e a conseqüente contaminação dele pelo discurso ficcional se tornou prática textual, ou seja, elas configuraram um produto híbrido, no momento em que o menino/sujeito teve a imperiosa necessidade de jogar para escanteio - ou para o inconsciente - o confessional e aliar a fala de sua experiência de vida à invenção ficcional. A contaminação se tornou prática propriamente literária no momento em que o adolescente/sujeito – um memorioso estudioso de Letras - revisitava as práticas textuais híbridas da infância para torná-las do domínio público. Ao revisitá-las pelo exercício da memória, tenta apreendê-las com o fim de equacionar o desejo de criar narrativas literárias que signifiquem no universo cultural brasileiro. Muita pretensão? Talvez sim, talvez não. Mas nenhum escritor se realiza sem uma “ambição justa”, para retomar a expressão de Autran Dourado.
Portanto, a preferência pelos dados autobiográficos e a contaminação do discurso autobiográfico pelo ficcional existiram desde sempre lá na infância e estarão para sempre em meus escritos. Não tirei distinção, preferência e contaminação do nada, não as inventei recentemente e é por isso que vale a pena pagar uma visita ao menino antigo.
Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe - não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Nisso talvez possa me oferecer como paradigmas a infância de Gustave Flaubert e, principalmente, a maturidade de Fernando Pessoa. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição.
Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, co-existiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo. Os fatos autobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional.
O sujeito ressemantizava o sujeito pelo discurso híbrido.
Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso ficcional.. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com este exemplo.
Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico (para as conotações, veja-se o período histórico), no escurinho protegido pelas grades do pseudo-anonimato (morava numa cidade do interior), tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar e confessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranóia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis. Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala.
Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto de vivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe - e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional - verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso. Faço minhas as palavras contundentes de Michel Foucault em A arqueologia do saber: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”.
Na infância, já era multiplicadoramente confessional e sincero, era autoficcionalmente confessional e sincero. O discurso confessional – que nunca existiu no domínio público – se articulava e se articulou desde sempre pela multiplicação explosiva dos discursos autobiográficos que faziam pacto com o ficcional. O discurso confessional – que na verdade não o era, era apenas um lugar vazio, desesperador, preenchido por discursos híbridos - só poderia estar plena e virtualmente num feixe discursivo, numa soma em aberto de discursos autoficcionais, cujo peso e valor final seriam de responsabilidade do padre-confessor – e, hoje, de meu leitor. Ao padre-confessor e ao leitor passava algumas histórias mal contadas.
A boa literatura é uma verdade bem contada... pelo leitor... que delega a si – pelo ato de leitura - a incumbência de decifrar uma história mal contada pelo narrador. Competiu aos ouvidos do padre-confessor - e compete hoje aos olhos do leitor - preencher os brancos e os vazios de que é também feito um texto literário, aliás, não tenhamos dúvida, qualquer texto, que o diga o psicanalista. Compete ao leitor empinar (como a uma pipa) e endireitar (como a algo sinuoso) um objeto em palavras que lhe é dado de maneira corriqueira e aparentemente em desordem. Um exemplo? Pois não. Dom Casmurro é uma história mal contada pelo narrador Bentinho sobre o adultério de sua esposa, Capitu, com Ezequiel, o melhor amigo do casal. Caso narrada da perspectiva do leitor, a estória em primeira pessoa sobre o adultério de Capitu se transforma numa bem contada história sobre o ciúme doentio do personagem Bentinho.
As histórias – todas elas, eu diria num acesso de generalização – são mal contadas porque o narrador, independentemente do seu desejo consciente de se expressar dentro dos parâmetros da verdade, acaba por se surpreender a si pelo modo traiçoeiro como conta sua história (ao trair a si, trai a letra da história que deveria estar contando). A verdade não está explícita numa narrativa ficcional, está sempre implícita, recoberta pela capa da mentira, da ficção. No entanto, é a mentira, ou a ficção, que narra poeticamente a verdade ao leitor.
Um dos grandes temas que dramatizo em meus escritos, com o gosto e o prazer da obsessão, é o da verdade poética. Ou seja, o tema da verdade na ficção, da experiência vital humana metamorfoseada pela mentira que é a ficção. Trata-se de óbvio paradoxo, cuja raiz está entre os gregos antigos. Recentemente, encontrei a forma moderna do paradoxo num desenho de Jean Cocteau, da série grega. Está datado de novembro de 1936. No desenho vemos um perfil nitidamente grego, o do poeta e músico Orfeu. De sua boca, como numa história em quadrinho, sai uma bolha onde está escrito: “Je suis un mensonge qui dit toujours la vérité” (Sou uma mentira, que diz sempre a verdade). Esse jogo entre o narrador da ficção que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade poética, esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional, é que possibilitou que eu pudesse levar até as últimas conseqüências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos, emoções, modo de encarar as coisas e as pessoas, etc.), do outro, adequá-la à tradição canônica da ficção ocidental.
Toda narrativa ficcional em que a verdade poética está transparente – aquilo que se chama de romance de tese – é um saco. A verdade ficcional é algo de palpitante, pulsante, que requer sismógrafos, estetoscópios, e todos os muitos aparelhos científicos ou cirúrgicos que levam o leitor a detectar tudo o que vibra, pulsa e trepida no quadro da aparente tranqüilidade da narrativa literária, ou seja, no mal contado pela linguagem. Nesse sentido, e exclusivamente nesse sentido, o bem contado é a forma superficial de toda grande narrativa ficcional que é, por definição e no seu abismo, mal contada.
Para terminar, leio parte dum fragmento de “Sem aviso”, texto assinado por Clarice Lispector: “Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser precavida, e depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso – já atordoada eu sentia – era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta”. Permitam-me a glosa. O sujeito em primeira pessoa começou a mentir por prudência e cautela e, como a realidade ambiente o incitava a ser prudente e cauteloso, continuou a mentir descaradamente. E tanto mentia, que já mentia sobre as mentiras que tinha inventado. E a tal ponto mente, que a mentira se torna o meu modo mais radical de ser escritor, de dizer a verdade que lhe é própria, de dizer a verdade poética.
[1] Memórias de um sargento de milícias, Memórias póstumas de Brás Cubas e Memórias sentimentais de João Miramar.
Excelente esta entrevista! Estou buscando tudo sobre autoficção principalmente por este viés de discurso hibrido entre realidade e ficção que fala o Santiago.
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