O poeta, crítico literário, tradutor e jornalista franco-romeno Dinu Flamand esteve na ilha de Itaparica durante dois meses, no final do ano passado, participando de um programa do Instituto Sacatar, que leva à Bahia escritores do mundo inteiro. Reencontrei Dinu em Salvador 25 anos depois - participamos ambos do International Writing Program, em Iowa City, Iowa, em 1983. Traduzi alguns poemas dele, a partir da versão inglesa e usando um dicionário romeno-português. E DF, que nasceu numa aldeia da Transilvânia, filho de um camponês, e que hoje trabalha para a Radio France Internationale, em Paris, lembra sua infância, com exclusividade para o Sidarta:
“ Havia livros em nossa casa, na Transilvânia. Não muitos, mas de boa qualidade. Eu me lembro de que meu pai lia Zola e Tolstoi, em tradução. Durante o inverno, quando havia pouco trabalho na fazenda, líamos muito em casa.
O livro mais antigo do meu avô datava de 1710. Ele é sempre o orgulho da minha biblioteca. É um breviário de preces, escrito num bizarro alfabeto de transição: palavras com caracteres latinos na transcrição cirílica.
Meu avô era um camponês que se tornou diácono só para cantar na igreja todo domingo. Ele me ensinou o alfabeto antes que eu chegasse à idade escolar.
Pouco depois, minha avó havia tomado a decisão: eu continuaria meus estudos numa cidade grande, em Brasov. É preciso explicar que, mesmo tendo sido humilhados politicamente, durante séculos, pela política imperial de Viena, sob os Habsburgos, os romenos se beneficiaram também da sólida rede de escolas públicas que existia na Europa central, mesmo no campo. Existia um respeito real pelos professores e por todo trabalho intelectual.
Por tradição, em minha família o filho mais velho se tornava preceptor. Meu pai era o caçula da família. Ele nunca se resignou com sua sorte de camponês.
Ele também me transmitiu o amor pelos livros e a ‘arte’ de ceifar a erva nas clareiras daquelas montanhas magníficas.
Falo sempre dessa querida Transilvânia, bem-amada pelos grandes imperadores da Roma antiga, mas que assustou a pobre imaginação de um Bram Stoker, sem que ele tivesse jamais posto o pé na região. Pobre destino, diga-se de passagem: uma terra tão rica de lendas, obrigada, humilhada, a “comprar” uma mitologia vampiresca fabricada no Soho, e que a ironia pós moderna transformou atualmente em sua “marca registrada” internacional!
Nossa região é muito rica em escritores. O maior romancista clássico da literatura romena, Liviu Rebreanu, tinha vivido numa aldeia a 15 quilômetros da minha. Bem perto de mim tinha passado sua infância um grande poeta popular, George Cosbuc, cujos poemas mais conhecidos eram cantados pelos camponeses, entre eles minha mãe. Eram quadros idílicos – a moça que abandona bruscamente seu trabalho de tecer porque ouve o barulho do chicote do seu namorado, que conduz o rebanho para a aldeia (até parece “O guardador de rebanhos”, de Fernando Pessoa!) Muito depressa, identifiquei a poesia como uma espécie de elegância do falar.
Mas os tumultos do amor campestre e as volutas do amor patriótico me deixavam totalmente indiferente. A poesia não me ‘falava’, eu a situava entre outras invenções sociais dos adultos. Até que um dia dei, na biblioteca da minha aldeia, com uma antologia da poesia dos Estados Unidos. O livro havia escapado como por milagre do grande expurgo ideológico, quando os comunistas tocaram fogo num bom número de livros publicados antes de 1947, a data do meu nascimento. Havia, sempre em tradução romena, o poema célebre de Robert Frost – “Birches” (“Bétulas”). O poeta lembra os momentos felizes da sua infância em que ele subia no topo dessas árvores.
Essa sensação de voar pelo espaço, com a ajuda das flexíveis bétulas, eu a experimentei centenas de vezes. E o fato de que tudo estava colocado no papel, por um desconhecido que havia experimentado as mesmas sensações e que, além disse, conseguia dissecar sua felicidade e transmiti-la me espantava imensamente. Era isso, então, a poesia!
Perturbado por essa descoberta, eu não me contentava mais com outros poemas que não chegavam a essa densidade de emoções transmitidas a mim, longe, em minha Transilvânia, por esse ianque desconhecido. Precisei de muito tempo para retomar minhas leituras de poesia.
Bem mais tarde, descobri a poesia hermética e o modernismo, Rilke, Trakl, Saint-John Perse, para voltar ao romantismo e ao simbolismo, depois de ter engolido avidamente Tzara, que era proibido, Whitman, graças à mesma antologia, Eminescu, Barbu, Bacovia, Blaga (quatro dos maiores poetas romenos), Leopardi ou então Kavafis...
Meu primeiro poema lamentava a morte de uma nogueira do nosso jardim, atingida por um raio durante uma tempestade. Um irmão da minha mãe, que já era escritor consagrado, ele também ‘saído’ do meio camponês, guarda até hoje esse poema.”
DOIS POEMAS DE DF
AUBADE
Tradução Sonia Coutinho
a solidão me ajuda a te amar
pois não sei amar a solidão
e duas solidões juntas
são apenas uma dividida pela metade
os encontros nos separam
multiplicações trazem a morte
assim só nos aproximaremos se partirmos sozinhos
como ameixas que caem do ramo se juntam na grama
poderíamos ser a doação deste outono
como a resposta é uma boa pergunta
mas nossas faltas de aproximação no início
quando improbabilidade e impossibilidade se tocam
porque se você não me ama ninguém jamais amará
o que há de não amado dentro de mim mesmo pelo meu amor
porque se não te amo mesmo não te amando
você não será amada nem pela mais sedenta ausência de amor
INTIMIDADE DISTANTE
Tradução Sonia Coutinho
I
ela estava exatamente saindo de trás de uma cortina
e a vida passava por perto para presentear
o momento em que ela estava exatamente saindo de trás de uma cortina
recebida pela sede da minha surpresa
uma atmosfera intangível a amortalhou
e a luz se apressou a afastar
o silêncio insinuado como uma sombra
no discurso desta fonte
uma lágrima de Deus apareceu a prumo
era apenas a gota quente do seu olho
neblina do eclipse na glória
da beleza imensurável
e a partir de então nos tornamos mais próximos um do outro
e continuamos a nos aproximar mais
como duas árvores
II
como duas árvores respirando num único céu
duas pequenas colinas na palma da mesma paisagem
quando o vento lá fora inclina o trigo no quadro
e acalma o espírito da impossibilidade
porque o caminho soube flutuar sob seus pés
é que ela se movimenta com sua grande imobilidade
em direção à ilusão de um possível encontro
como as nuvens vistas da grama
embora distantes tocam o alto das árvores
e porque as ondas da minha tontura
giram em seu dedo indiferente
como fazem no inverno as ervas-de-passarinho enroscadas
nos plátanos secos
existo aninhado fora dela
como uma bola de ilusão
III
ela se torna a lembrança do meu passado
vôo de cores em ramos para os céus de verão
chama ascendente
fraîche amertume du laurier
sol noturno na pele
IV
continuo a evitá-la habitando justamente na sufocação pela qual ela permanece uma lembrança
sobre os cumes dessa dissipação
feita de uns poucos dias na superfície do lago
em fins de tarde com nuvens preguiçosas e vida curta
algumas vezes ela apenas aparece por trás de uma frase
e se mostra indulgente com as coisas reais
que chegam a tempo na realidade onde começaram
dentro do âmbito da inacessibilidade
segunda-feira, 25 de maio de 2009
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