segunda-feira, 25 de maio de 2009

TRINTA ANOS DA GERAÇÃO 80

Tela de Beatriz MilhazesSonia Coutinho

A chamada Geração 80 das artes plásticas brasileiras, que reabilitou a pintura e o gosto das cores, depois de muitos anos de “ascetismo visual”, na expressão do crítico Frederico Morais, está completando 30 anos de atuação. Seus integrantes começaram a aparecer, ainda como alunos, no final dos anos 70. Mas eles se tornaram de fato visíveis com uma imensa exposição, realizada em 1984, reunindo mais de cem expositores, e intitulada “Como vai você, Geração 80”. Os curadores foram Marcos Lontra e Paulo Roberto Leal e tudo aconteceu no Parque Lage, no pátio da grande mansão onde já funcionava a Escola de Artes Visuais.
A revista “Módulo”, que fez um exemplar especial tratando dessa mostra, traz um texto de Frederico Morais, um crítico que desde a primeira hora acolheu bem o novo movimento. Algumas frases de Frederico, sobre a nova pintura que surgia: “Dizem que é bad painting, eu a vejo linda. Dizem que é feia, ultrajante – eu a sinto sensualíssima. Tem seis dedos, um olho só e manca de uma perna. I love her.”
Frederico continua: “Alegres, limpos, bem vestidos, bem paginados, os jovens da geração 80, mesmo depois de vinte anos de ditadura, não estão com a cuca fundida, não resistem, querem viver, acontecer, pintar.” Era o “retorno do artista a si mesmo, à sua subjetividade”, naquele momento eufórico da abertura política brasileira, o momento das “diretas-já.”

ESPÍRITO DA ÉPOCA

Achille Bonito Oliva

Neo-informalismo? Neo-figurativismo?
As tendências conviviam, não havia um “estilo” único, mas havia, sem dúvida, um “espírito de época,” presente na produção artística de vários cantos do mundo.
Na Itália, a Transvanguarda, cujo porta-voz, o crítico de arte Achille Bonito Oliva, fez várias visitas ao Brasil. Na Alemanha, os neo-expressionistas. Na França, a “Figuration libre”.
No Brasil, prevalecia entre os novos artistas, por cima das diferenças, uma alegria de pintar que Luiz Áquila, expressou na frase curta: “A maior desgraça é não pintar.”

FREDERICO MORAIS
A volta da arte ao emocional

Converso com o crítico Frederico Morais na bela casa dele, em Santa Teresa, com uma vista deslumbrante da varanda, abarcando Corcovado e Pão de Açúcar. Peço que Frederico (ele está ótimo e com uma memória incrível) defina, em linhas gerais, a arte dos anos 80. Diz ele:
- A arte voltou ao emocional, gestual, físico, o corpo estava presente, quase que o suor estava presente. E foi também uma volta à figura. Uma volta à figura, uma volta à cor. Claro que, internacionalmente, havia as referências do expressionismo alemão, da Transvanguarda italiana, da nova imagem norte-americana.
E quem foram os pioneiros da Geração 80? Quais foram as figuras mais importantes do início do “movimento”? Responde Frederico:
- Na exposição que organizei no MAM do Rio, em 1982, e chamei de “A mancha e a figura”, apareceram justamente os pioneiros da Geração 80. Não mostrei nenhum dos artistas novos, o que fiz foi tentar mostrar alguns antecedentes da nova tendência no Brasil. Sempre tive a preocupação de mostrar que temos um desenvolvimento independente do que acontece lá fora, apesar da globalização inevitável. Então peguei, por exemplo, um Iberê Camargo, na fase em que ele passou pela abstração, peguei o Ivan Serpa da fase negra, peguei o Ernesto de Fiori, pouco estudado, mas um artista excelente. A exposição que ocupou todo o segundo andar do MAM, na época um espaço novo. Eram quadros gigantescos de 3, 4, 5 metros. Peguei, por exemplo, um Espíndola, de Mato Grosso que, partindo de uma temática que é a do boi, foi abstraindo até reduzir aquilo a manchas. E aí vou me aproximando dos artistas mais próximos de hoje, como, por exemplo, o Áquila, chamado de pai da geração 80.
Frederico destaca a importância de Jorge Guinle:
- Outro pioneiro da Geração 80 acho que foi o Jorge Guinle. Tanto que ele entra como apresentador, não apenas como artista. O Guinle, naquela época, não era o mais velho, mas era um dos mais velhos do grupo. Ele começou a pintar muito jovem. A primeira exposição de arte abstrata aqui aconteceu em 1953, em Petrópolis, no Quitandinha. Juscelino inaugurou essa exposição. Havia um livro de presenças, que reproduzi, e nele havia piadas arrasando a exposição. Diziam que aquilo era loucura, que qualquer criança fazia aquela arte. Enfim, esses argumentos furados. Mas ficou também, dessa exposição, uma foto do Guinle pai com o Jorge Guinle, naquele tempo com três ou quatro anos de idade, os dois de mãos dadas vendo os quadros. Quer dizer, parece que o filho estava destinado, desde criança, a ser um pintor. Depois ele foi para os Estados Unidos, porque sua mãe era americana, depois foi para a França. Ele era um cara que aparentemente não teve infância. A infância dele foi dentro de um museu. Ele morava numa rua no final do Leblon. Mas seu ateliê era na pracinha do Bairro Peixoto. Quem foi no ateliê dele, que ficava no final de um corredor, sabe que era uma experiência fantástica. O Jorge era um cara noturno, pintava principalmente à noite, e o ateliê dele era só tinta. O chão era uma camada de tinta onde a pessoa patinhava. E ele, já num certo momento, pintava com as mãos. E era tão grande a quantidade de tinta que os quadros dele, muito grandes, tinham uma retórica assim de pintura, faustosa, gordurosa, suntuosa. Era gozado, porque ele saía todo coberto de tinta. Ele tinha uma espécie de tapete de chão de borracha, todo manchado, que ia até o final do corredor, e o dele era o último apartamento. Num dia em que eu fui lá, eu o levei até o seu apartamento e o meu carro ficou todo sujo de tinta, por causa da roupa dele. Tanto que uma das minhas fantasias era expor não a pintura de Jorge Guinle, mas o ateliê dele, os sapatos dele, a roupa dele, etc e tal. O Guinle é um exemplo da visceralidade da pintura. Era uma coisa patética, dramática mas, ao mesmo tempo, havia muita cabeça naquilo, porque ele era inteligente, tinha muita leitura e, sobretudo, um olho bem treinado. Era capaz de falar durante duas ou três horas sobre um quadro dele.
Como Frederico descreve o surgimento da Geração 80?
- A Escola de Artes Visuais do Parque Lage, num certo momento, transformou-se num ateliê de pintura. Havia professores como Cláudio Kuperman, Luiz Áquila, Charles Watson, que também pintava, naquele tempo. Charles chegou ao Brasil muito jovem. Apresentei aquele menino na primeira exposição que ele fez aqui, que foi no IBEU. Ele era figurativo. Uma figuração um pouco seca e muito marcada pelo desenho. Mas o Watson era principalmente um professor.
Frederico destaca outro nome que ele acha importante, nos inícios da Geração 80:
- Outro nome interessante é o Victor Arruda. Ele era dono da galeria Saramenha. Victor participou da exposição “Como vai você, Geração 80,” mas ele vinha de um pouco antes, já fazia um tipo de figuração que até se aproximava um pouco da Transvanguarda italiana. Tanto que talvez ele tenha sido o primeiro artista brasileiro, carioca, no caso, que teve a atenção do Bonito Oliva. Oliva tinha um ego imenso, era um ególatra. Mas ficou muito amigo do Victor Arruda. Inclusive porque o Victor tinha a galeria e acabou expondo alguns artistas que eram da preferência de Oliva, quando ele já estava abandonando a Transvanguarda e entrando em outra coisa. O Victor se interessava por arte marginal.
Será que o que se chama de Geração 80 foi um movimento fundamentalmente carioca? Frederico responde:
- Os paulistas se sentiam meio alijados e tinham um pouco de razão. Na verdade, foi quase uma manifestação apenas carioca. Havia em São Paulo, por exemplo, um pintor como Ivald Granato, que fazia muito sucesso na época. Ele é do Rio, de Campos, mas vivia em São Paulo. Naquele período, tinha um Ibope fantástico. E ele tinha muito essa coisa do pintor dos anos 80, a mise-en-scène, pintava de gravata borboleta, com uma velocidade muito grande, ia atrás da publicidade. Mas acho que ele nem entrou na exposição da Geração 80.
Como foi que a crítica de arte, de forma geral, tratou os artistas da geração 80? Diz FM:
- Interessante é que a geração 80 exigiu um texto crítico diferente. Entrou em cena uma crítica mais verborrágica e mais psicanalítica. Era um tipo de crítica menos teórica, menos certinha. De certa maneira, o crítico se punha também dentro do texto, era uma crítica bem derramada. Era uma crítica com um texto totalmente diferente dos textos, por exemplo, da Aracy Amaral, do Marcio Doctors. E principalmente, eram textos que iam contra os do grupo todo do Ronaldo Brito, que escrevia de forma muito asséptica, muito limpinha.

CHICO CUNHA
Memórias da festa Sentado a uma das mesas da cantina da Escola de Artes Visuais, o pintor e arquiteto Chico Cunha, atualmente professor de pintura da EAV e que foi um dos participantes da exposição “Como vai você, Geração 80”, lembra a mostra, ocorrida neste mesmo cenário.
Chico se refere ao cenário como “romântico”, por causa da história algo mirabolante do antigos proprietários da casa, a cantora de ópera italiana Gabriela Besanzoni e seu marido, o milionário brasileiro Henrique Lage. E lembra:
- A volta à pintura já havia começado no final dos anos 70. Foi em 77, 78, que entrou no meio artístico carioca a idéia da pintura associada com o “prazer.” Uma espécie de alegria matisseana de pintar.
Dentro desse clima aconteceu a grande exposição. Com o comparecimento de parentes e amigos dos artistas, e mais “uma galera de praia, do Posto Nove e outra galera de teatro”, Chico calcula que havia uns mil presentes na “Como vai você, Geração 80?” que começou mais ou menos às três da tarde.
Os alunos da EAV, na época, pintaram telões para os cenários da ópera “O Guarani,” lembra ainda Chico. Além disso, na própria mansão foram encenadas peças de grande repercussão na época, como “A tempestade”, de Shakespeare, com Miguel Falabella e Maria Padilha.
Um momento lírico da exposição, conta Chico Cunha, foi quando o já desaparecido artista Carlos Mascarenhas entregou a várias pessoas, no terraço, inúmeras pequenas gaivotas de papel colorido, que foram atiradas de lá e caíram no pátio e na piscina.
Chico lembra um pouco da história da Escola de Artes Visuais, desde o início.
- Primeiro, o que havia aqui era o Instituto de Belas Artes – o IBA – que era acadêmico. Quando Rubens Gerchman veio ser diretor, por volta de 1975, ele mudou tudo. Mandou embora todo o pessoal acadêmico e trouxe professores como Roberto Magalhães, e Gastão Manoel Henrique, que fazia objetos. Durante a barra pesada da ditadura, o clima mental daqui do Parque Lage era bem outro, bem diferente, tínhamos aqui um outro nível de pensamento.
Chico lembra ainda que a gestão de Gerchman acabou em 79 e com sua saída foram embora vários professores. Durante algum tempo, a escola ficou vazia. Depois, vieram outros diretores: Rubem Breitman, Hélio Eichbauer, Luiz Carlos Ripper.
Chico cita professores que marcaram seus alunos, na época:
- Charles Watson, vindo da Inglaterra, John Nicholson, dos Estados Unidos, Astréia, Rosa Magalhães, que depois se tornou carnavalesca mas, nos anos 80, dava aula de cor, aqui na EAV.
Entre os alunos, além do próprio Chico, estavam nomes como Beatriz Milhares, Luiz Pizarro, Cristina Canale, Daniel Senise. E, já em 80, ainda muito jovem, Luiz Ernesto passou de aluno a professor.
- A gente trabalhava aqui dentro mesmo, como se isto fosse um grande ateliê. O número de alunos era muito menor do que é hoje.
Em 82, diz Chico, começaram as exposições de pintura. Uma delas foi “Entre a mancha e a figura.”
- Duas presenças marcantes, nessa mostra, foram Luiz Áquila e Jorge Guinle, este expondo pela primeira vez. De início, havia certo preconceito contra ele, por causa do meio social de onde vinha, mas depois ele começou a ter apoio crítico.
Chico prossegue lembrando outra grande exposição da época, realizada em São Paulo, com curadoria de Aracy Amaral e que reuniu nomes como Leda Catunda, Sérgio Romagnolo e Leonilson (um dos grandes desaparecidos da Geração 80, junto com o próprio Guinle e Ana Horta, uma pintora mineira que morreu aos 29 anos num acidente).
- E em 83, o Salão Nacional, no MAM, atraiu muita gente, inclusive de São Paulo, e havia muita pintura. Marcos Lontra e Paulo Roberto Leal, os curadores da exposição “Como vai você, Geração 80”, estavam no júri. No mesmo ano, 83, desse salão, houve uma troca na direção da EAV e quem veio foi Marcos Lontra.
Chico diz que o fato de os artistas trabalharem juntos no Parque Lage trazia um clima de afinidade, mas não existia entre eles uma unidade teórica.
Também, segundo ele, não havia exatamente um clima de euforia – os novos artistas, naquele meio reduzido de 80, 81, 82, eram uma “margem.”
- Quem decidia ser artista estava optando por uma ameaça de pobreza, a pessoa podia ficar esquecida, não tinha mídia.
A idéia inicial da exposição “Como vai você, Geração 80” veio de Marcos Lontra, conta Chico, e era a de reunir vinte artistas que haviam participado do Salão Nacional de 83.
- Cada um deveria apresentar um trabalho ligado à arquitetura da mansão do Parque Lage e os trabalhos não seriam obrigatoriamente pintura.
Marcos Lontra, na época, era o editor da Revista Módulo, de arte, e se tornou um crítico.
- Depois – diz Chico – Lontra resolveu transformar a exposição numa grande festa e foi convidando outras pessoas, até chegar a mais de cem, entre artistas e estudantes. A repercussão foi muito maior do que se imaginava. Houve muita cobertura de imprensa. Lembro que, da “Veja,” ligou para mim o Casimiro Xavier de Mendonça, querendo saber tudo sobre a exposição. Estava nela a crista da onda dos jovens artistas da época. E os galeristas abriram o olho, entre eles o conceituado Thomas Cohn.

BEATRIZ MILHAZES
A diva, na visão de Herkenhoff
Com telas de Beatriz e texto de Paulo Herkenhoff, o livro “Beatriz Milhazes” é lindo, pelas reproduções das telas dela, e seríssimo, com o erudito texto de Paulo Herkenhoff. (Editora Francisco Alves, R$ 180).
As inúmeras referências de Herkenhoff ajudam a aguçar o olhar para a obra de Beatriz Milhazes: Volpi, Guignard, crochê, pedras preciosas, rendas, Bridget Riley, festa junina, chitão, igrejas barrocas, bolo de milho, Matisse, Carmem Miranda, Oiticica, procissão, Salvador, Parati, Tarsila, alegorias de carnaval, entre outras.
Sobre o carnaval, a própria Milhazes diz, no texto: “Eu acho que a coisa mais incrível que existe no mundo é o carnaval. Há coisas que morrem com o tempo. A coisa mais estimulante é o carnaval. Está sempre mudando.”
Herkenhoff aprofunda: “Cedo, Milhazes opta pelos contrastes estridentes da cor calcados na cultura popular... Uma obra de 1982 denota o gosto pela padronagem e pelo ornamental... O suporte de um tríptico deste ano surge da costura das faixas diagonais de tecido estampado... O chitão era cortado em pedaços unidos para constituir equações matemáticas... Ela articula uma relação antitética entre racionalismo e espontaneidade... Entre a noção de estrutura e a de experimentalismo visual, entre o rigor estrutural do neoplasticismo e a exuberância sensorial do carnaval...”
Por cima de tudo isso, há na obra da Milhazes um toque do Barroco brasileiro, segundo Paulo Herkenhoff: “Beatriz Milhazes percebe que o Barroco oferecia formas exuberantes, sistemas de cores, ritmos visuais dinâmicos, suntuosidade, exuberância e política da forma.”
Quanto à técnica muito pessoal que a artista utiliza em seus quadros, e que também é importante para entender os resultados que ela alcança, explica Beatriz, no livro: “A técnica que eu utilizo se apóia no princípio da colagem. Pinto motivos sobre uma folha de plástico e colo esta imagem terminada sobre a tela. Em seguida, retiro o plástico, como uma decalcomania.”
Como é que ela conseguiu sua atual posição de destaque internacional, e preços surpreendentes para suas telas? Herkenhoff pensa que foi importante para sua evolução como artista a presença de um professor diferente e altamente qualificado: Charles Watson.
Diz Paulo Herkenhoff:
“No contexto de uma formação brasileira, Beatriz Milhazes recebeu inesperados aportes sob certa perspectiva inglesa de ensino no Rio de Janeiro. Estudou na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio, de 1980 a 1982. Depois do incêndio do Museu de Arte Moderna, em 1978, essa escola livre se tornara o principal centro de formação de artistas no Rio de Janeiro. Charles Watson, um pintor escocês formado pela Bath Academy of Art (1970-1974) na Inglaterra, chega ao Brasil em 1979, quando passa a ensinar no Parque Lage e traz para a pintura uma disciplina didática contemporânea que não encontrava paralelo no Rio de Janeiro. Milhazes estudou pintura com Waton, a quem credita sua sólida formação.”
Conta ainda Herkenhoff:
“Watson monta na EAV, nesse período, um ateliê coletivo com outros professores para demonstrar aos alunos a realização da pintura... Num momento dominado pelo conhecimento superficial das novas correntes européias e norte-americanas de pintura, o ensino de Watson, baseado na disciplina e no estímulo à invenção, faz uma diferença. Contra reivindicações de hedonismo pictórico, Watson exigia rigor.”
Paulo Herkenhoff se refere à cena brasileira e internacional, na ocasião em que Beatriz Milhazes e seus companheiros de geração 80 iniciam sua trajetória – depois do acento conceitual dos anos 70, era a cena marcada pelo retorno à pintura, a partir dos “modelos do neo-expressionismo alemão, da transvanguarda, do graffiti ou da bad painting.”
E lembra Herkenhoff: “A mostra ‘Como vai você, Geração 80?’ fez um balanço da arte emergente no país. Milhazes dela participou com uma pintura com figura de anjo e céu. No ano seguinte, a seção ‘A Grande Tela,’ da 18ª. Bienal de São Paulo, resumiu a prática da pintura na cena internacional, ao reunir artistas diversificados, como os brasileiros Daniel Senise, Leda Catunda, Nuno Ramos e Cláudio Fonseca ao lado de Paula Rego, Enzo Cucchi, Helmut Middendorf, Marlene Dumas e Guillermo Kuitca, entre outros.”

DINU FLAMAND DA TRANSILVÂNIA A ITAPARICA

O poeta, crítico literário, tradutor e jornalista franco-romeno Dinu Flamand esteve na ilha de Itaparica durante dois meses, no final do ano passado, participando de um programa do Instituto Sacatar, que leva à Bahia escritores do mundo inteiro. Reencontrei Dinu em Salvador 25 anos depois - participamos ambos do International Writing Program, em Iowa City, Iowa, em 1983. Traduzi alguns poemas dele, a partir da versão inglesa e usando um dicionário romeno-português. E DF, que nasceu numa aldeia da Transilvânia, filho de um camponês, e que hoje trabalha para a Radio France Internationale, em Paris, lembra sua infância, com exclusividade para o Sidarta:

“ Havia livros em nossa casa, na Transilvânia. Não muitos, mas de boa qualidade. Eu me lembro de que meu pai lia Zola e Tolstoi, em tradução. Durante o inverno, quando havia pouco trabalho na fazenda, líamos muito em casa.
O livro mais antigo do meu avô datava de 1710. Ele é sempre o orgulho da minha biblioteca. É um breviário de preces, escrito num bizarro alfabeto de transição: palavras com caracteres latinos na transcrição cirílica.
Meu avô era um camponês que se tornou diácono só para cantar na igreja todo domingo. Ele me ensinou o alfabeto antes que eu chegasse à idade escolar.
Pouco depois, minha avó havia tomado a decisão: eu continuaria meus estudos numa cidade grande, em Brasov. É preciso explicar que, mesmo tendo sido humilhados politicamente, durante séculos, pela política imperial de Viena, sob os Habsburgos, os romenos se beneficiaram também da sólida rede de escolas públicas que existia na Europa central, mesmo no campo. Existia um respeito real pelos professores e por todo trabalho intelectual.
Por tradição, em minha família o filho mais velho se tornava preceptor. Meu pai era o caçula da família. Ele nunca se resignou com sua sorte de camponês.
Ele também me transmitiu o amor pelos livros e a ‘arte’ de ceifar a erva nas clareiras daquelas montanhas magníficas.
Falo sempre dessa querida Transilvânia, bem-amada pelos grandes imperadores da Roma antiga, mas que assustou a pobre imaginação de um Bram Stoker, sem que ele tivesse jamais posto o pé na região. Pobre destino, diga-se de passagem: uma terra tão rica de lendas, obrigada, humilhada, a “comprar” uma mitologia vampiresca fabricada no Soho, e que a ironia pós moderna transformou atualmente em sua “marca registrada” internacional!
Nossa região é muito rica em escritores. O maior romancista clássico da literatura romena, Liviu Rebreanu, tinha vivido numa aldeia a 15 quilômetros da minha. Bem perto de mim tinha passado sua infância um grande poeta popular, George Cosbuc, cujos poemas mais conhecidos eram cantados pelos camponeses, entre eles minha mãe. Eram quadros idílicos – a moça que abandona bruscamente seu trabalho de tecer porque ouve o barulho do chicote do seu namorado, que conduz o rebanho para a aldeia (até parece “O guardador de rebanhos”, de Fernando Pessoa!) Muito depressa, identifiquei a poesia como uma espécie de elegância do falar.
Mas os tumultos do amor campestre e as volutas do amor patriótico me deixavam totalmente indiferente. A poesia não me ‘falava’, eu a situava entre outras invenções sociais dos adultos. Até que um dia dei, na biblioteca da minha aldeia, com uma antologia da poesia dos Estados Unidos. O livro havia escapado como por milagre do grande expurgo ideológico, quando os comunistas tocaram fogo num bom número de livros publicados antes de 1947, a data do meu nascimento. Havia, sempre em tradução romena, o poema célebre de Robert Frost – “Birches” (“Bétulas”). O poeta lembra os momentos felizes da sua infância em que ele subia no topo dessas árvores.
Essa sensação de voar pelo espaço, com a ajuda das flexíveis bétulas, eu a experimentei centenas de vezes. E o fato de que tudo estava colocado no papel, por um desconhecido que havia experimentado as mesmas sensações e que, além disse, conseguia dissecar sua felicidade e transmiti-la me espantava imensamente. Era isso, então, a poesia!
Perturbado por essa descoberta, eu não me contentava mais com outros poemas que não chegavam a essa densidade de emoções transmitidas a mim, longe, em minha Transilvânia, por esse ianque desconhecido. Precisei de muito tempo para retomar minhas leituras de poesia.
Bem mais tarde, descobri a poesia hermética e o modernismo, Rilke, Trakl, Saint-John Perse, para voltar ao romantismo e ao simbolismo, depois de ter engolido avidamente Tzara, que era proibido, Whitman, graças à mesma antologia, Eminescu, Barbu, Bacovia, Blaga (quatro dos maiores poetas romenos), Leopardi ou então Kavafis...
Meu primeiro poema lamentava a morte de uma nogueira do nosso jardim, atingida por um raio durante uma tempestade. Um irmão da minha mãe, que já era escritor consagrado, ele também ‘saído’ do meio camponês, guarda até hoje esse poema.”


DOIS POEMAS DE DF

AUBADE

Tradução Sonia Coutinho

a solidão me ajuda a te amar
pois não sei amar a solidão
e duas solidões juntas
são apenas uma dividida pela metade

os encontros nos separam
multiplicações trazem a morte
assim só nos aproximaremos se partirmos sozinhos
como ameixas que caem do ramo se juntam na grama

poderíamos ser a doação deste outono
como a resposta é uma boa pergunta
mas nossas faltas de aproximação no início
quando improbabilidade e impossibilidade se tocam

porque se você não me ama ninguém jamais amará
o que há de não amado dentro de mim mesmo pelo meu amor
porque se não te amo mesmo não te amando
você não será amada nem pela mais sedenta ausência de amor


INTIMIDADE DISTANTE

Tradução Sonia Coutinho

I
ela estava exatamente saindo de trás de uma cortina
e a vida passava por perto para presentear
o momento em que ela estava exatamente saindo de trás de uma cortina
recebida pela sede da minha surpresa

uma atmosfera intangível a amortalhou
e a luz se apressou a afastar
o silêncio insinuado como uma sombra
no discurso desta fonte

uma lágrima de Deus apareceu a prumo
era apenas a gota quente do seu olho
neblina do eclipse na glória
da beleza imensurável

e a partir de então nos tornamos mais próximos um do outro
e continuamos a nos aproximar mais
como duas árvores

II

como duas árvores respirando num único céu
duas pequenas colinas na palma da mesma paisagem
quando o vento lá fora inclina o trigo no quadro
e acalma o espírito da impossibilidade
porque o caminho soube flutuar sob seus pés
é que ela se movimenta com sua grande imobilidade
em direção à ilusão de um possível encontro
como as nuvens vistas da grama
embora distantes tocam o alto das árvores

e porque as ondas da minha tontura
giram em seu dedo indiferente
como fazem no inverno as ervas-de-passarinho enroscadas
nos plátanos secos
existo aninhado fora dela
como uma bola de ilusão

III

ela se torna a lembrança do meu passado
vôo de cores em ramos para os céus de verão
chama ascendente
fraîche amertume du laurier
sol noturno na pele

IV

continuo a evitá-la habitando justamente na sufocação pela qual ela permanece uma lembrança
sobre os cumes dessa dissipação
feita de uns poucos dias na superfície do lago
em fins de tarde com nuvens preguiçosas e vida curta

algumas vezes ela apenas aparece por trás de uma frase
e se mostra indulgente com as coisas reais
que chegam a tempo na realidade onde começaram
dentro do âmbito da inacessibilidade

ADELICE A MIL, ENTRE TEATRO E LITERATURA

Adelice Souza é diretora teatral, contista e dramaturga. Escreveu três livros de contos: ‘As Camas e os Cães’, ‘Caramujos Zumbis’ e Para uma certa Nina. Participou da coletânea “As 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”(2005, Record) e, no momento, ensaia mais uma peça de sua autoria . Mandei umas perguntas para Adelice, por e-mail. Aí vão as respostas.

SC - Adelice, como é ser diretora/autora de teatro em Salvador?
AS - Não tenho do que reclamar, acabei de ganhar um bom edital da Fundação Cultural, que me permitirá montar um texto meu, “Jeremias, profeta da chuva.” Mas sou apenas uma, em dezenas que querem a mesma coisa e não conseguem. As produções são difíceis, o dinheiro é muito escasso. Temos excelentes profissionais e poucas condições de trabalho. Talvez por isso tanta gente boa sai de Salvador para fazer teatro no Rio, por exemplo. Amo Salvador, sou enraizada, e fico triste com as condições de trabalho tão precárias, aqui, para a classe teatral.
SC - O que você acha que já conseguiu?
AS - Estou sempre dirigindo ou escrevendo alguma coisa. E isso tem me dado muita alegria. Recentemente, ganhei a Bolsa Funarte de Criação Literária e estou concluindo o meu primeiro romance, “O homem que sabia a hora de morer.” É o melhor que se pode querer.
SC - O que ainda pretende conseguir?
AS - Ser publicada por uma grande editora, ter patrocínios para viajar com os meus espetáculos. Ganhar um bom dinheirinho com literatura e teatro. Tudo com a glória íntima de sentir que estou fazendo algo bom.
SC - Está satisfeita, até agora, com a recepção aos seus trabalhos?
AS - Os amigos da literatura e do teatro e o pequeno público a que tenho acesso são sempre muito generosos. Sigo tentando dar o meu melhor.
SC - Que perspectivas você vê para o teatro na Bahia?
AS - Tem muita gente criando, na esfera teatral. As empresas privadas poderiam abrir um pouco mais os olhos para o teatro, como abrem para a música.
SC - E a Adelice ficcionista, como vai? Algum livro novo a sair?
AS – Recentemente, lancei um livrinho chamado “Para uma certa Nina,” numa bela coleção, “Cartas baianas,” idealizada pelo escritor e editor Claudius Portugal. Um livrinho gostoso, que fiz por encomenda. Um diálogo com o sertão, através de fragmentos de contos. Às vezes parece poema, me sinto perto do haicai.
SC - Quais são seus projetos mais imediatos?
AS - Estou vivendo, nos últimos dois meses, só pensando na minha nova peça, “Jeremias, profeta da chuva,” que conta a via-crucis de um pequeno agricultor que com o dom de prever, através de estrelas, pedras, animais, se haverá chuva. A história se passa no sertão, mas a chuva é algo que todos desejamos muito e nos é essencial. A peça poderia passar-se nos Alpes ou no Saara. Terei estréia na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, no dia 6 de junho. Será, portanto, uma peça junina.

WALY RECITA NO PORTO DA BARRA

Sonia Coutinho

Alguns dos meus melhores momentos, nos dias mais recentes que passei em Salvador, foi quando assisti ao documentário “Pan-cinema permanente”, de Carlos Nader, sobre a vida e as atividades do poeta e músico Waly Salomão, com quem convivi diariamente durante mais de cinco anos, por causa das nossas caminhadas, de manhã cedo, pelo Jardim Botânico.
Quando ouvi, no filme, o poeta e músido Antônio Cícero dizer que o amigo que ele perdeu e cuja falta mais sente é o Waly, minha impressão foi a de que a frase saía também da minha própria boca.
Mas o documentário premiado de Nader - que vi num espaço novo e interessante de Salvador, o “Glauber Rocha” (tem salas de cinema, tem livraria de arte, tem café e restaurante), na praça Castro Alves - curou-me momentaneamente da perda, porque me trouxe Waly vivo, com sua esfuziante vitalidade, com as frases incríveis que ele dizia a toda hora.
Ainda segundo Antônio Cícero, o viver de Waly Salomão era teatro, puro teatro. No documentário, Carlos Nader o mostra repetindo: “A vida é sonho. A vida é sonho. A vida é sonho.” Para além da vida e da morte, entramos em seu sonho, somos o sonho, sonhamos Waly e ele nos sonha, enquanto seguimos seus passos.
Vamos com ele para a Síria, onde foi rastrear suas origens, procurar os parentes que ainda lhe restariam. Ele nos apresenta à sua família – Martha, os filhos Omar e Khalid. E divaga em voz alta para nós, numa estrada lamacenta da Amazônia.
Magicamente, no final do “Pan-cinema permanente,” com um riso maroto, sobre as areias do Porto da Barra, Waly abre uma página do seu livro “Lábia” e mostra o poema “Post-mortem”, como se falasse conosco da posição em que agora está.
Mas o que ele diz é do gozo da vida. E, numa demonstração prática, lança-se na areia e se espicha, braços e pernas abertos, momento seu de plenitude total entre mar e céu.
Quando saí do cinema, telefonei para Martha Braga, para lhe dizer como estava feliz por ter sido amiga de Waly e participado, mesmo que apenas um pouco, do seu universo.
Quem puder, veja o “Pan-cinema permanente” de Carlos Nader. E, agora mesmo, abaixo, leia o “Post Mortem.” E o “Verão”, meu poema favorito de Waly, que ele com certeza recitou naquela hora, deitado na areia do Porto da Barra.
Que ele vem recitando todos os dias ali, quando não chove, enquanto o sol se põe. Moro perto e já vi várias vezes, juro.

VERÃO

Waly Salomão

Desde que o Imperador Amarelo
Quebrou a barra do dia
Irrompeu com suas forjas
O horizonte febril
Que uma espada de luz
Serra em prata a água salgada
E miríades de lâminas
Douram e escaldam a areia vítrea.

Saltam faíscas do bate-bigorna imperial.

Nenhuma nuvem tolda
A ferraria do estio.

Azul excessivo solda
Céu e mar.


POST-MORTEM
(Final)

Waly Salomão
...
Não cortejar a morte.
Não perambular pelos cemitérios
nem brindar o luar patético
com caveiras repletas de vinho tinto seco
como um Byron-Castro Alves gótico e obsoleto.
Sereno e cabeça dura – testa ruda –
mirar de frente a caveira
e as tropas de vermes de prontidão
(como observo vermes dentro de um pêssego)
mas por enquanto gargalhar da irrealidade da morte.
Gozar, gozar e gozar
a exuberância órfica das coisas
em riba da terra
debaixo
do céu.

TODA A VERDADE SOBRE A TIA DE LÚCIA

Conto de Sonia Coutinho

O escritor decide escrever a história que lhe ocorreu hoje, mesmo sendo triste. Decide escrever essa história que, além de triste, é incômoda. Está constrangido, prestes a pedir desculpas. Mas não pede. Apenas pensa: pena que eu não consiga fazer de outro jeito.
“Claro que eu preferiria escrever histórias alegres. Mas, à minha revelia, sempre saem tristes e incômodas,” ele admite para si mesmo, um segundo antes de se sentar e começar a escrever “Toda a verdade sobre a tia de Lúcia.”

“Preciso falar com alguém sobre essa tia antes que ela morra e sua história se torne definitiva, antes que sua história se transforme, para mim, num epitáfio,” pensa Lúcia.
É o primeiro parágrafo que o escritor escreve. E continua.
Sentada em sua cama, Lúcia observa uma fotografia da sua velha tia Lina, que acabou de descobrir numa gaveta do seu armário, num maço de fotos antigas, tiradas ainda em Solinas. Nesta, além da tia, aparecem ainda ela própria, em menina, e sua mãe.
A tia, de quase 90 anos, mora em Solinas. Ela e Ramiro, o filho de Lúcia, que também ainda mora lá, são os únicos parentes próximos lhe restam. Como Lúcia não se casou novamente e, de uns tempos para cá, seus relacionamentos amorosos cessaram, sua solidão se tornou radical.
Nem amizades de verdade ela tem: jamais se entendeu bem com as pessoas, no Rio, e continua mais ligada, interiormente, às antigas amigas de Solinas.

Lúcia teve de deixar o filho com sua mãe, quando se separou do marido e veio trabalhar no Rio. (Preciso descobrir o motivo grave e secreto para essa separação, pensa o escritor. Lúcia foi embora de repente, sem tratar nem de pensão do ex-marido.)
No início, ela levou Ramiro, mas era difícil conseguir alguém que tomasse conta dele, quando Lúcia saía. Ela ficava muito preocupada com o que poderia acontecer com menino, não conseguia nem trabalhar direito. E, quando voltava, Ramiro dizia sempre que queria ir para Solinas, morar com sua avó. O que acabou acontecendo.

Depois da morte da mãe de Lúcia, Ramiro, a essa altura já um engenheiro, disse a ela: “Agora que minha avó morreu, não quero mais ter o desprazer de ver sua cara na minha frente. Se ainda via você, era porque ela pedia.”
Uma completa mentira, Lúcia tinha certeza. A velha jamais pediria ao seu filho que continuasse seu amigo. Ao contrário, sempre fez tudo para separar os dois. Seu golpe de mestre foi o testamento que deixou, deserdando Lúcia em favor de Ramiro.
Isso provocou a ruptura definitiva entre mãe e filho.

Inesperadamente, o carinho que tia Lina lhe demonstra se tornou muito importante para Lúcia.
A tia usa frases de uma bondade antiga: “Nossa Senhora cubra você com seu manto de luz.” Repete: “Você é uma filha para mim, uma verdadeira filha.” E continua a chamá-la de Lucinha, como ninguém mais chama, há muito tempo.

Quando fala com tia Lina pelo telefone, Lúcia visualiza com ternura sua imagem: os óculos de lentes grossas, os cabelos já inteiramente brancos e ralos, a bengala que ela usa para caminhar.
Mas não consegue deixar de lado suas dúvidas quanto à sinceridade da tia – o carinho não será um engodo? Tia Lina, afinal, era tão unida com a irmã dela, a mãe de Lúcia.
E, se de fato a tia a ama, como diz, por que não lhe contou do testamento, quando a família inteira sabia de tudo e só ela, Lúcia, foi apanhada de surpresa?
Lúcia, às vezes, acha o discurso da tia parecido com o pranto das carpideiras, tudo fingimento treinado.Mas está tão carente de qualquer tipo de carinho que se deixa envolver, de qualquer forma.

Hoje, bem cedo, Lúcia recebeu um telefonema da tia. Em seguida, como de costume, chorou um pouco. Por que chora, todas as vezes em que fala com tia Lina? Talvez porque afeto, para ela, está associado com sofrimento, pensa.
Logo depois do telefonema, Lúcia se lembrou de uma certa fotografia. Onde estaria? Teve uma intuição, foi abrir a gaveta do armário - e lá a encontrou.
Sim, essa foto que ela agora observa, demoradamente, antes mesmo de tomar o seu café e trocar de roupa para ir trabalhar.
Tia Lina, sua mãe e ela estão na margem de um rio, em Solinas, onde há uma fileira de árvores finas e altas.
A tia usa um penteado antigo, com um grande pimpão, e Lúcia lembra, num relâmpago, que esse pimpão era feito com um enchimento de pano que ela vira, certa vez, na casa da tia Lina.
Agora, olha para sua mãe: linda, como sempre. Muito mais bonita do que Lúcia jamais fora. Menina, como aparece na foto, ela era feia, magríssima e com uns dentes tortos.
Já sua mãe parece uma estrela de cinema, num filme de depois da Segunda Guerra Mundial: batom escuro, saia justa na altura dos joelhos, de um tecido quadriculado, miúdo e escuro, e uma blusa de seda branca com mangas compridas e fofas e punhos abotoados.

Lúcia se levanta, vai até o banheiro, pega uma tesoura. Volta para a cama e corta a fotografia pela metade, separando a imagem da sua mãe, que rasga em pedacinhos e vai jogar no saco de lixo.
Foi demais o que a mãe fez com ela com aquele testamento, pensa, cheia de raiva. E fez isso mesmo sabendo das suas dificuldades financeiras, do seu novo emprego mal pago.
O testamento está obrigando Lúcia a fazer economias do tipo que distorce a alma de uma pessoa. Ela se tornou alguém que não pode mais comprar uma blusinha nova nem um CD de harpas celtas.
Resta decidir, agora, o que fará com a outra metade da foto, a parte em que ela aparece com tia Lina.

Num arquivo diferente, em seu computador, o escritor faz um resumo da vida de Lúcia, para usar em sua história.
O pai, que tinha uma boa situação financeira, morreu quando ela era ainda pequena. Todos os bens da família ficaram com sua mãe.
Mais tarde, já adulta, Lúcia não pensou em reivindicar direitos, achou que não era preciso, sendo filha única.
Não tinha feito um curso universitário porque sua mãe achou que não valia a pena, era bobagem, “melhor seria arrumar um empreguinho enquanto esperava marido.”
Lúcia, que naquele tempo era fraca e tola, deixou-se levar e arrumou um emprego que detestava. Então, nem essa saída ela teve, a de uma profissão rendosa.
Seria por causa da fuga de Lúcia para o Rio que sua mãe quisera castigá-la? Indaga-se o escritor. Mas não, ele conclui.
Lúcia tem certeza, ele escreve, de que o ódio da sua mãe era coisa mais antiga. Imperdoável, para mãe de Lúcia, era o próprio fato de ela ter nascido.
Sua mãe a odiava por causa do pai dela, escreve em seguida o escritor. Tinha repulsa pelo marido, uma repulsa que se estendeu à filha, continua ele a escrever.
Depois, de volta ao arquivo principal, o escritor passa a palavra à própria Lúcia, que conta seus primeiros tempos no Rio.

“Logo que cheguei, fiquei numa pensão no Catete, usando algumas economias que tinha. Procurei uma Antiga Amiga de Solinas e, a conselho dela, que conseguira seu emprego assim, esquadrinhei muitas páginas de Classificados.
Afinal, consegui ficar como secretária de uma firma importadora. Sempre gostei de estudar inglês, foi o que ajudou. Além, claro, da boa aparência que eu já tinha, aos 30 anos.
O salário deu para alugar um quarto-e-sala em Copacabana e então meu filho veio e ficou uns tempos comigo, antes de voltar. Mas férias e feriados, sempre eu sempre visitei Ramiro em Solinas.
Mais tarde, na casa dos 50, fui demitida, tive de me contentar com outro emprego de salário inferior.
O pior de tudo, meu pai morreu. Ele, que sempre me dizia: ‘Se precisar de alguma coisa, é só pedir.’”

O escritor, que é jornalista free-lancer, depois de um período desocupado recebe uma porção de pedidos de matérias.
E pára temporariamente sua história. Deixa Lúcia imóvel, sentada na cama, com os olhos voltados para a velha fotografia.

Estranhamente, sem nenhum motivo aparente, mesmo estamdp muito ocupado, nesse período o escritor começa a pensar em anjos.
Primeiro, vem uma imagem que parece de sonho, embora ele esteja acordado: anjos voam de um lado para outro, despejando flores em cima de um farol.
Num estado quase de transe, o escritor, que às vezes pinta, faz um pequeno quadro onde aparecem o farol, uma lua imensa, estrelas douradas e muito anjos.
Pensa: são anjos misteriosos como num quadro surrealista. Anjos sérios, graves, como no filme “Asas do desejo,” de Wim Wenders.
E recita as “Elegias de Duíno”, de Rilke : “Quem, se eu gritasse, me escutaria, entre as hierarquias dos anjos...”
Depois de algum tempo, já com menos trabalho, o escritor volta à história de Lúcia e da sua tia.

Claro que tia Lina não é nenhuma santa, argumenta Lúcia consigo mesma, tentando racionalizar uma relação que assume proporções imprevistas e a faz pensar em voltar para Solinas.
Na verdade, não apenas por causa da tia Lina, mas pela falta de dinheiro. O que mais Lúcia teme é ser obrigada a sair de Copacabana, ir para a Zona Norte.

O escritor escreve que Lúcia vai agora para a cozinha, tira da geladeira um mamão papaia, coloca duas torradas no forno, põe água para ferver. Tem de tomar logo seu café e se preparar para ir trabalhar, não deve chegar novamente atrasada, adverte a si mesma.
Mas, enquanto isso, continua a julgar mentalmente sua tia Lina.
Claro que a tia sabia do testamento, mas não lhe contou nada. E o imenso apartamento da sua mãe e os investimentos dela, que vinham do tempo do marido vivo, e um terreno, e uma casa de praia, tudo passou diretamente para Ramiro.
Surgiu até, Lúcia não sabia como, um documento forjado em que ela concordava com os termos do testamento.

Rasgará ou não a foto da tia Lina?
Lúcia toma rapidamente seu café. Tem medo de ser novamente demitida. Na véspera, já chegara atrasada ao trabalho.
Está cansadíssima de ser secretária e, atualmente, uma secretária mal paga. Mas, se parar de trabalhar, o que será dela?
Seria bem melhor, pensa, lavando a xícara e o prato, se acreditasse mesmo no amor da tia Lina.
Seria bem melhor se pudesse, sem dúvidas nem temores, continuar a ouvir a voz doce e cantante da tia, que vem pelo telefone, consoladora, lá de Solinas.
Resistirá ela a uma vida inteiramente sem amor? É o que Lúcia se pergunta, neste momento, antecipando com um arrepio a solidão arrasadora de uma existência assim.

Tenho de enxergar a realidade, tia Lina escondeu o testamento de mim, pensa Lúcia outra vez.
Mas, imediatamente, torna a perdoar a tia, lembrando de um presente dela, que recebeu dias atrás, pelo correio: uma camiseta com a imagem de Nossa Senhora da Glória.
Olhando para aquele objeto ingênuo e tosco, Lúcia chorou novamente, e agora com força. Pensou, com raiva, que era de propósito que tia Lina lhe mandava presentes assim, patéticos.
Só parou de chorar quando lembrou do advogado lhe dando, pelo telefone, a notícia do testamento.
Prevendo a pobreza na velhice, Lúcia uivava: “Não, não, não, não.” Mas era “sim,” e o advogado foi muito objetivo, quando explicou os detalhes.

O escritor reflete se vale a pena incluir em sua história pelo menos um resumo da vida da tia Lina. Decide que sim.
Ingênua e acomodada, Claudelina no entanto se casou por paixão com um tipo meio aventureiro, um forasteiro em Solinas. Ao contrário da mãe de Lúcia, que fez um casamento rico e sem amor.
Previsivelmente, o desastre foi completo, o marido de Lina logo a abandonou. E ela, depois da separação, Jamais Teve Outro Homem.
Felizmente, era funcionária pública. Tinha seu dinheirinho e o apartamento dos seus pais para morar. Agora, com uma minúscula aposentadoria, continua a viver lá, mesmo já sozinha.
O escritor pensa: é interessante duas criaturas com trajetórias tão diferentes, Lina e Lúcia, estarem agora lançadas numa situação parecida. Sim, de solidão, falta de dinheiro e envelhecimento, em maior ou menor grau.
É uma história horrorosa, conclui. Pelo menos, repete para si mesmo, com certeza colocarei anjos nela.

Lúcia tenta ainda decidir se rasga ou não a fotografia de tia Lina. Como pôde a tia silenciar, sabendo do cruel testamento? Como pôde concordar com o castigo que sua mãe lhe infligira?
Se, pelo menos, Lúcia tivesse levado, no Rio, algum tipo de “vida alegre”, como diria sua mãe. “ Mas, na verdade,” pensa Lúcia, “os dias da minha vida foram todos consumidos pelo trabalho duro. Só que, claro, moro em Copacabana e o pessoal de Solinas acha que isto aqui é uma espécie de covil da devassidão.”
Comentário da sua mãe, que lhe foi contado por alguém, ela não se lembra mais quem: “Lúcia sempre se deu muito bem com coisas dela, mas agora se dará muito mal”.
“Com tanto ódio em redor de mim, uma hora dessas fico sem dinheiro nem comer,” pensa ela, desesperada.

Quando acaba de tomar seu café, Lúcia torna a se sentar na cama e a olhar a fotografia cortada pela metade, agora só com sua tia e ela, na margem do rio, entre as árvores finas e altas.
Mas a tia é humilde, diz Lúcia a si mesma, tentando salvar seu último afeto. Com certeza, ela não contribuiu, de nenhuma maneira, para que o testamento fosse feito.
Por um instante, decide ficar com a metade da foto. “Amanhã vou comprar um porta-retrato para esta parte,” pensa, quase feliz.
Mas logo muda de idéia e tem um pensamento muito doloroso sobre tia Lina. Pensa que ela vive bajulando todo mundo, tirando casquinhas aqui e acolá, fazendo permanentemente o papel de boa, mas não é sincera. Tudo é fingimento, imagina Lúcia.

É quando o escritor sente que precisa pôr um ponto final em sua história. Não chegou a inventar o motivo para a separação de Lúcia e seu marido, o motivo grave e secreto que ele sabe que existiu, mas não podia ser revelado a ninguém e ela aceitou a culpa.
E o escritor sente que não disse tudo o que era preciso sobre Lúcia e sua tia. Mas não agüenta continuar, precisa parar.
Dispõe-se, então, a responder à pergunta: Lúcia rasga ou não a fotografia da tia Lina?
Em arquivo separado, ele coloca duas possibilidades.
A) Lúcia conclui que, sejam quais forem os defeitos da sua tia, ela ainda é a coisa mais próxima de uma mãe que conhece. E decide não rasgar a fotografia e continuar retribuindo o amor da Tia Lina.
B) Lúcia decide rasgar a foto. Sua tia estava muito próxima da sua mãe e sabia de tudo. Impossível uma pessoa que a amasse não lhe contar sobre o testamento, talvez ainda a tempo de Lúcia evitar que a crueldade se consumasse.
A decisão do escritor vem inesperadamente rápida. O correto é a possibilidade B, ele conclui.

Lúcia rasga a foto da sua tia e, como fez com a da sua mãe, joga os pedacinhos no saco do lixo.
Todo o seu amor neste mundo tinha sarado, ela sentiu, como uma ferida que cicatriza e não deixa nenhuma dor. Não chorará mais.
Segue para o banheiro, toma um banho, arruma-se para ir trabalhar. É melhor chegar atrasada do que não comparecer.

E, nos dias seguintes, Lúcia se movimenta pela vida a fora de maneira aparentemente normal: dorme sem insônia e acorda com coragem para dar um pulo da cama e seguir adiante.
Mas é apenas uma trégua, reflete o escritor. Desacreditar do amor da tia Lina está além da capacidade de Lúcia para suportar.
Sem a tia, só lhe resta aguardar a chegada dos Anjos.

Poucos dias depois. Lúcia começa a ver Anjos em toda parte. Anjos imensos e sombrios voam por cima do aglomerado dos prédios de Copacabana; um por um, descem, pousam no peitoril da sua janela e conversam com ela.
Deixou de ir ao trabalho, já não sai mais de casa, sempre esperando por eles.
Quando os anjos não aparecem, ela os invoca, com palavras que não sabe de onde vêm: MEBAHEL, HARIEL, HEKAMIAH!

Anjos cabalísticos, com nomes hebraicos, pensa o escritor, acabando de escrever a história que lhe ocorreu hoje.
Mesmo sendo triste.
Está prestes a pedir desculpas, mas não pede.
Apenas pensa: pena que eu não consiga fazer de outro jeito.
Pelo menos, conclui, coloquei anjos nela.

RUY E CYRO

RUY ÀS VOLTAS COM VAMPIROS

O consagrado e prolífico poeta baiano Ruy Espinheira Filho parece que, ultimamente, está mais para romancista. Em 2007, ele publicou “Um rio corre para a lua.” Ano passado, veio com “De paixões e de vampiros” (Bertrand Brasil), do qual transcrevemos aqui um capítulo.
Ruy é um excelente bate-papo, uma pessoa de excelente astral e sempre otimista com relação à literatura brasileira. Recentemente, em Salvador, tive o prazer de conversar com Ruy no mezanino da Livraria Civilização Brasileira, no Shopping Barra – onde trabalha o filho do histórico livreiro baiano Sr. Demerval, o Álvaro, que às vezes aderiu ao papo.
Ruy teve sobre seu “Vampiros”, palavras elogiosas de Jaguar e Wilson Martins, que também aí vão.


“De paixões e de vampiros”
Capítulo 36

UM CONVITE, VAMPIRO ETC

Alguns dias depois do comício, Juvenal passara a tarde na biblioteca, só aparecendo na Redação quase no fim do expediente. Ao vê-lo, logo percebi que havia enfrentado alguns conhaques, sua bebida predileta.
- Tem algum compromisso para esta noite? – perguntou-me.
Eu não tinha.
Então, vamos a uma festa. Aniversário de uma amiga minha. Nos encontraremos às oito no Crystal, certo?
- Certo.
Terminei minha matéria, fui para a pensão, tomei um banho, jantei. Seu Amphilophio perguntou-me como ia a “experiência” no jornal. Considerava Juvenal Andrade um tipo um tanto, como disse, heterodoxo, mas sem dúvida inteligente, de valor. Uma espécie de paria, sem família, com certos hábitos discutíveis – mas, se eu seguisse apenas os seus bons exemplos...
Dona Clotilde estava aérea e saiu logo da mesa. Vi-a entrar na despensa e, em seguida, rumar para o sótão, carregando latinhas, garrafinhas, uma escova e panos. Philinho teria um belo banho naquela noite.
Como eu estava indo a uma festa, tinha que vestir o que possuía de melhor. Enquanto trocava de roupa, Luís Virgem chegou.
- Vai aonde, todo enfeitado assim?
Falei da festa. Disse-me que, mesmo não convidado, iria comigo, se não tivesse um compromisso no Coliseu.
- Que compromisso?
- Vamos discutir a criação do Centro de Vampirologia.
- Ora – sorri-, pensei que fosse alguma coisa séria...
- Mas é claro que é uma coisa séria, Magro! – reagiu ele, indignado.
- Sabe o que eu acho? – falei. – Que você está ficando de miolo mole...
- E eu – disse ele – acho que você, que vai andar por aí à noite, deve é ter muito cuidado... Quando menos se espera, olha os dentes do vampiro no pescoço!
- Quanta bobagem...
Ele assumiu um ar grave:
- Sem brincadeira – disse. – Estamos estudando os vampiros pra valer. Eu até indiquei o seu nome para participar do Centro.
- Obrigado, mas estou sem tempo. Bom, já vou indo... Dê lembranças minhas ao Conde Drácula.
- Talvez você o encontre antes de mim – respondeu ele, soturno.


Palavras de Jaguar sobre De paixões e de vampiros: uma história do tempo da Era, de Ruy Espinheira Filho (Bertrand Brasil, 2008):
... romance pequeno com nome grande (...) Dei uma lida no ônibus, quando ia pro jornal. Quando desci já tinha lido um terço do livro; o resto li à noite. O relato me pegou pelo pé, só parei no final, coisa que muito prêmio Nobel não conseguiu de mim.
O que posso dizer é que o Ruy consegue fazer a coisa mais difícil que tem em literatura: escrever com simplicidade sobre essa coisa complicadíssima que é a vida. Pouquíssimos conseguiram isso. Machado de Assis, por exemplo.
Ruy conta histórias, digamos assim, com uma requintada singeleza. Escreve para o leitor. Não estou fazendo gracinha nem querendo dar uma de Conselheiro Acácio. A maioria dos escritores que conheço escreve olhando para o próprio umbigo.

DE UMA CRÍTICA DE WILSON MARTINS:

Com sua "história do tempo da era" (De paixões e de vampiros), Ruy Espinheira Filho acrescenta uma pequena obra-prima à linhagem da Vila dos Confins (...) É uma sátira, sem dúvida, mas sátira, estamos vendo, que pouco difere da realidade real, como diria Eça de Queiroz, mestre da ironia, família em que Ruy Espinheira Filho agora assegura o seu lugar. Jornal do Brasil (05/07/2008)


CYRO DE MATTOS, DIRETOR

O poeta e ficcionista Cyro de Mattos é o novo diretor da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania. A entidade está a mil e tem um site: http://www.ficc.com.br/ que merece ser visitado. Como nasci lá, eles estão me fazendo uma homenagem.

O LIVRO DOS EXCESSOS

Conto de Ida Vicenzia


Kublai Khan observa: “Por que falar das pedras? Só o arco me interessa”. Polo responde: “Sem as pedras o arco não existe”. (Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis).

Eu quero construir pontes. Unir os dois mundos. Mas sou fraca. Um pobre Marco Pólo, sem seu Imperador. Sem Kublai Khan. Estou muito longe. Algo na paisagem anuncia as cúpulas redondas das igrejas. É noite. Quase impossível identificar o lugar onde me encontro. Oriente? Caminho entre os muros de uma cidade de pedra. Muitas pedras. Tento unir os caminhos, chegar à ponte de K. Mas as ruas, com sua luz mortiça, me assustam como fantasmas.
Um homem passa na calçada deserta e eu me precipito, qual Alice noturna, nos braços do homem que passa. Eu me agarro a ele. É meu coelho branco, meu salvador. Ele me levará a um lugar seguro. Pergunta-se Rousseau (o Jean-Jacques): “Pertence a mulher à espécie humana?”. Eu, Alice ou Natasha ou Dorine ou Gabriela...não importa o nome, aguardo, zonza, o final da queda. Há um precipício e uma luz intensa corta a escuridão. Ela vem de um lustre de cristal e, pendurados no lustre, estão seres humanos. Homens? Abstraindo o discurso de Rousseau, eu, Alice, vejo vultos, homens e mulheres se atirando no espaço. Ouço gritos, vejo acrobacias. Seres voando no espaço aberto. Meus sentidos estão atentos. Os vultos se movimentam no interior de um mundo desconhecido para mim. São seres humanos, ou apenas feras, animais se movimentando em uma jaula de cristal?
Agora estou no meio da neve. Muita neve. Espaços vazios. É como se tivesse saído de um teatro aquecido para o exterior de uma cidade congelada. Percebo, próximo a mim, corvos. Dezenas deles. Voam, se aproximando. Ficam tão próximos que posso ver seus olhos me fitando. São aves de rapina. Os urubus jamais fariam isso. Pelo menos, não no Rio de Janeiro. Ninguém os encorajaria a se aproximarem dessa maneira! Todos sabem que os urubus só gostam de cadáveres, de podridão... E eu estou viva, bem viva!
Os corvos têm asas de aço e se aproximam. Eles me enlouquecem com os seus gritos. Eu percebo rostos humanos, aquelas bocas negras de pássaro lançando gritos agudos: “Niet! Mói muj! Maia giná!”. Não sei o que eles gritam. Tento agarrar suas penas. Elas são pontudas, podem me ferir. Eu, Dorine, Alice, Natália... sinto nesta cena a morte do amor. Os personagens de Tchecov buscam a morte do amor.
“Tchecov” – alguém sussurra em meu ouvido.
Vejo o coelho branco. O meu coelho branco. O homem apressado que se precipitou comigo na escuridão da queda. Agora, no lusco-fusco do lustre de cristal, percebo o brilho irônico de seu olhar. “Tchecov”, ele repete. As luzes se acendem e tudo volta ao normal. Há um precipício, ele me separa do palco. O espaço aberto a meus pés parece querer me sugar. Penso em Genet, no diretor Vitor Garcia, no Brasil do século XX. O espaço cênico de “O Balcão”. Isso não me surpreende. Já nada mais me surpreende. Penso vagamente em Garcia e no espetáculo que acabo de ver. Trata-se de um espetáculo teatral? Penso no que acharia o diretor argentino daquela versão de Tchecov.
- Quer ver a diretora? – me pergunta o homem. Ele fala a minha língua. Ele é apenas um rosto, como milhares de rostos que lembram outros rostos. Possui feições eslavas. Penso. Há também uma mulher de cabelos vermelhos. Não sei o que ela fala. Não a entendo. Ela não fala a minha língua.

A mulher é Nathalia Timberg!

Ela gesticula, cita Grotoviski, Maiakovski, Stanislavski, Ruboviski, Ludoieff... Ouço a mulher de cabelos vermelhos dizer: “Se fosse no tempo de Stalin
(subitamente entendo o que ela fala!)
... eu estaria presa ou morta, como Meyerhold.”
Ela para de falar e começa a cumprimentar as pessoas em uma língua que eu não conheço. Aperta as mãos das pessoas e diz:
“Spaciba!” “Zdaróbia!” “Harashó!”

Eu não me aproximei.

Esta é uma cidade estranha. Aqui falam uma língua estranha. Isso é autêntico. É real.
Repito obsessiva, como se estivesse decorando um texto teatral: “é uma realidade irreal. Ela não é Nathalia Timberg. Este mundo aqui não é real... não é real...”
Meu coelho se aproxima. Procura vencer a sala repleta. Vem em minha direção, mas eu fujo. Estou livre! Corro, apressada. Estou livre! Livre!
Respiro o ar da noite.
“Em que rua de Perínzia estarei”?
“Nas ruas e praças de Perínzia, hoje em dia, vêem-se aleijados, anões, corcundas, obesos, mulheres com barba. Mas o pior não se vê: gritos guturais irrompem nos porões e nos celeiros, onde as famílias escondem os filhos com três cabeças ou seis pernas”. Perínzia, um das cidades invisíveis de Calvino?
- Não é Perínzia - murmura o coelho de pelo branco. “Ele fala novamente em teus ouvidos, Alice! Ele pode ouvir meus pensamentos...!”
Sinto seu hálito quente em meu pescoço e me descontrolo. Começo a correr. Ele me persegue. Pelas ruas, becos, parques. O calor sensual convida à desrazão. No céu, enorme, a lua cheia se confunde com o mar, num alvoroço de prata.
A água se desalinha em ângulos concêntricos e eu enlouqueço. Fugir! Tenho que fugir! As cidades invisíveis se confundem naquele turbilhão e eu penso na cidade aquática. Esmeraldina? Veneza...
Penso no Rio de Janeiro. A cidade amada...
Eu, Alice, Gabriela, Natasha, não importa o nome, me sinto enorme. Trago comigo o desejo do mundo. A cidade me acolhe em seu centro de fogo. Eu me uno a ele, ao meu coelho branco. Ao bode lascivo. Ao homem. Ele está ali, o eslavo. Eu consinto. Eu vivo esse prazer. Nos tornamos um só.
À luz da lua!
À LA LUZ DE LA LUNA!

Eu brilho na noite...


Ida Vicenzia nasceu no Rio Grande do Sul. Formação: Colégio Sévigné, Porto Alegre. Graduação em Jornalismo pela USP/SP - Mestre e Doutora em Letras pela PUC/RJ. Tem publicados Sabática, a Gata Lunática, um conto infantil, Editora Mauad/RJ e História da Dança no Brasil, Editora Atração/SP.Com o trabalho A Dama da Lua - sobre Cecília Meireles -, ganhou o Prêmio Monografia 2004, da Casa de Rui Barbosa/RJ. Tem vários contos publicados. Assinou colunas de Literatura em vários jornais do Rio. Especializada em literatura e teatro. Atualmente assina uma coluna de critica teatral e desenvolve pesquisa para a Casa de Rui Barbosa, com apoio da Faperj, sobre O Teatro Católico de Octavio de Faria.

A LIBERDADE AMARELA DE ANDRÉ GIUSTI

André Giusti volta com um novo livro de contos, “A liberdade é amarela e conversível”, da 7 Letras, Coleção Rocinante. André já havia publicado “Voando Pela Noite - Até de manhã” (7Letras, 1996); “A solidão do livro emprestado” (7Letras – Coleção Rocinante - 2003) e “Eu nunca fecharei a porta da geladeira com o pé em Brasília” (LGE Editora - 2004). Ele é carioca, mas mora em Brasília, onde é jornalista, editor e apresentador da TV Brasília. Junto com Alexandre Pilati, edita o site Messaginabótou.
Vai um conto do André Giusti.

A CASA DO MORTO RECENTE

André Giusti

Meia hora ou quarenta minutos depois que chegou,
conseguiu ficar sozinho na parte de trás do apartamento.
Descansou uma das mãos no peitoril da janela
da área de serviço. Disse por dizer, em voz baixa,
frases incompletas sobre a luz fraca do ambiente, a
terra da planta ressecada no canto. Era como se trocasse
impressões com o vento do fim da noite que assaltava
a esquadria de alumínio.
Ouvia as conversas nos quartos da frente e sabia
que seu isolamento não passaria de cinco minutos.
Logo dariam por sua falta e sairiam à sua busca perguntando
sobre novidades que ele nunca trazia. Então,
queria o máximo daquela solidão fugaz só para
sentir o cheiro antigo da casa, mistura de desodorante,
sabonete e desinfetante, e que nos últimos anos incoporava
cada vez mais o cheiro das pessoas à medida
que elas ficavam velhas e cada vez com menos possibilidades
de saírem dali. Sempre que ele voltava, era
pouco depois de chegar que sentia para valer o cheiro
da casa, quase como se este fosse já uma pessoa, um
velho que para nada levanta da cadeira de balanço e a
quem só vai se dar mais atenção depois de se desvencilhar
dos outros.
O vento começou a soprar mais forte; de tranquilo
e fresco, passou a incômodo e frio. Ele recuou
meio passo da janela e observou os azulejos que foram
moda nos anos 70. Do rejunte enegrecido, saltava o
aspecto condenatório da decadência. Era como se o
cheiro antigo da casa emanasse dali, daquelas frinchas
encardidas. Seria ele o odor do próprio tempo, caso
este o possuísse. Lembrou de uma noite bem distante
nos calendários, em que chegou embriagado e sem
esperança na vida; e de uma outra, que de tão perdida
era sem data. Foi ali que ficou, naquela mesma janela
escancarada, vendo com uns olhos felizes nascer a
madrugada na cidade, uns olhos apaziguados por alguma
emoção furtiva e inesperada, cujo motivo ele
não mais enxergava na sala escura da memória.
Ainda alguns segundos de lembranças passaram,
até que alguém o chamou lá de dentro, mas ele não
respondeu. É que não teve certeza se a voz era mesmo
de algum dos que estavam lá pelos quartos ou
sala. Foi quando o vento aumentou e diminuiu quase
que no mesmo instante, como se explicasse que aquela
voz vinha se tornando nos últimos tempos o próprio silêncio da casa.

SILVIANO PREMIADO

O crítico, ficcionista e poeta Silviano Santiago ganhou recentemente o prêmio de romance da Academia Brasileira de Letras, com “Heranças” (Editora Rocco, 2008). Em palestra feita no Sesc de Copacabana, a convite de Luciana Hidalgo, Silviano falou sobre a criação literária e outros romances seus.
A foto dele é de Cláudio Nadalin.
MEDITAÇÃO SOBRE O OFÍCIO DE CRIAR
Silviano Santiago
Nos dois últimos livros de ficção que publiquei - O falso mentiroso (2004) e Histórias mal contadas (2005) -, tentei dar corpo textual a quatro questões constitutivas do que tem sido para mim o exercício da literatura do eu – as questões da experiência, da memória, da sinceridade e da verdade poética. Se eu aceitei o convite para lhes falar hoje, não foi com a intenção de trazer ao palco o autor dos livros e, com ele, o objetivo de oferecer-lhes uma leitura explicativa daqueles dois e de outros textos autoficcionais meus. Pelo contrário. Só ao leitor compete a tarefa da leitura. Aliás, não sou escritor que busca minimizar o trabalho do leitor; em geral, complico-o. Subscrevo dois versos de Nietzsche/Zaratustra, que dizem: “odeio todos os preguiçosos que lêem. / Alguém que conhece o leitor, nada fará pelo leitor”. Perguntado sobre se encenava peças para seu público, Antonin Artaud respondeu: “O público, é preciso em primeiro lugar que o teatro seja”. Em nossas palavras: O leitor, é preciso em primeiro lugar que a literatura seja.
. O objetivo primordial desta fala é o de lhes apresentar e, na medida do possível, discutir algumas questões abstratas que preocuparam e preocupam o escritor enquanto personalidade que reflete sobre o estatuto disso a que hoje se chama – e ele próprio passou a chamar - de autoficção. Se pedisse ajuda a João Cabral de Melo Neto, estas palavras trariam como título e intenção “Meditação sobre o ofício de criar”. A ele peço de novo ajuda para acrescentar que a meditação “nada têm de pregação e sequer da sugestão de receitas possíveis”.
No meu caso, cheguei à autoficção através de um longo processo de diferenciação, preferência e contaminação. Falo primeiro da diferenciação e da preferência. Parti da distinção entre discurso autobiográfico e discurso confessional. Os dados autobiográficos percorrem todos meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando por terra a expressão meramente confessional. Os dados autobiográficos servem de alicerce na hora de idealizar e compor meus escritos e, eventualmente, podem servir ao leitor para explicá-los. Traduz o contato reflexivo da subjetividade criadora com os fatos da realidade que me condicionam e os da existência que me conformam. Do ponto de vista da forma e do conteúdo, o discurso autobiográfico per se – na sua pureza - é tão proteiforme quanto camaleão e tão escorregadio quanto mercúrio, embora carregue um tremendo legado na literatura brasileira e na ocidental.
Já o discurso propriamente confessional está ausente de meus escritos. Nestes não está em jogo a expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole romântica ou neo-romântica. Não nos iludamos, a distinção entre os dois discursos tem, portanto, o efeito de marcar minha familiaridade criativa com o autobiográfico e o conseqüente rebaixamento do confessional ao grau zero da escrita. Em que pese seu legado insuspeito para as culturas nacionais, o discurso autobiográfico jamais transpareceu per se em meus escritos, ou seja, não me apropriei dele em sua pureza subjetiva e intolerância sentimental. Não escrevi minha autobiografia. Uma pergunta se impõe: Então, como tenho valido do discurso autobiográfico nos escritos? Para respondê-la, passemos ao terceiro movimento, o da contaminação.
Ao reconhecer e adotar o discurso autobiográfico como força motora da criação, coube-me levá-lo a se deixar contaminar pelo conhecimento direto - atento, concentrado e imaginativo - do discurso ficcional da tradição ocidental, de Miguel de Cervantes a James Joyce, para ficar com extremos. Não foi por casualidade que, na juventude, o crítico de cinema se matriculou na Faculdade de Letras e se tornou, na maturidade, professor de literatura. Se minha vida é a que me toca viver, minha formação foi e é estofada pela leitura dos ficcionistas canônicos e dos contemporâneos – independente de nacionalidade. Com a exclusão da matéria que constitui o meramente confessional, o texto híbrido, constituído pela contaminação da autobiografia pela ficção – e da ficção pela autobiografia -, marca a inserção do tosco e requintado material subjetivo meu na tradição literária ocidental e indicia a relativização por esta de seu anárquico potencial criativo.
Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa.
A força criadora do eu – o que Michel Foucault chama de ressemantização do sujeito pelo sujeito - tropeça na pedra no meio do caminho que é a tradição literária ocidental. Tropeça na pedra, leva tombo, levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima e se afirma como também produtora no embate com o poder esmagador da tradição ficcional. Dessa forma é que a ressemantização do sujeito pelo sujeito ganha tutano para questionar, pela produção textual, o estatuto contemporâneo tanto da técnica/artesanato da ficção (the craft of fiction, em inglês) quanto do cânone ficcional. Com o correr dos anos, o movimento de vai-vem do questionamento duplo abriu-me uma brecha de intervenção dramática e textual, onde tenho trabalhado as principais características – experiência, memória, sinceridade e verdade poética - da moderna literatura do eu.
A fim de evitar mal entendidos, afirmo que em nenhum momento do passado remoto usei a categoria autoficção para classificar os textos híbridos por mim escritos e publicados. Quando pude, evitei a palavra romance. No caso de Em liberdade (1981), um diário íntimo falso “de” Graciliano Ramos, classifiquei o livro de “uma ficção de”, para o desagrado dos editores que preferem o ramerrão do gênero. Já a professora Ana Maria Bulhões de Carvalho o classificou de alterbiografia, um neologismo que já aponta para o caráter híbrido da proposta. Não tive pejo em usar “memórias” para O falso mentiroso. Memórias tem boa tradição ficcional entre nós.[1] Finalmente, acrescento que fiquei alegremente surpreso quando deparei com a informação de que Serge Doubrovsky, crítico francês radicado nos Estados Unidos, tinha cunhado, em 1977, o neologismo autoficção e que, em 2004, Vincent Colonna, um jovem crítico e historiador da literatura, tenha valido do neologismo para escrever o desde já indispensável Autofiction & autres mythomanies littéraires (Paris, Tristram). Em suma, passei a usar como minha a categoria posterior e alheia de autoficção.
Meu percurso certamente difere do percurso de Serge Doubrovsky e de Vincent Colonna, e é por isso que aceitei o convite que me foi feito por Luciana Hidalgo para participar deste encontro. Aliás, Colonna é bastante generoso na sua configuração do gênero híbrido - a autoficção, que motivou seu estudo, optando por classificar o conjunto das narrativas afins como “uma nebulosa de práticas aparentadas”. Escreve ele que é imensa a lista dos escritores que vêm emoldurando sua identidade numa montagem textual, acrescentando: “Desiguais em sua riqueza, as obras deles são também diferentes pela forma e pela amplidão dos processos de hibridização, mas todas elas marcam uma época, um momento da história literária, em que a ficção do eu [la fiction de soi] ocupa os mais diferentes escritores, para constituir não tanto um gênero, mas talvez uma nebulosa de práticas aparentadas”.
Como a autoficção não é forma simples nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais recente, eis-me à vontade para relatar-lhes meu caminho pessoal. Retorno à distinção inicial entre discurso autobiográfico e confessional.
Não esbocei intencionalmente a distinção e muito menos a arquitetei por artes da inteligência ou da razão. Tampouco a constitui de maneira fria e pragmática como lugar original de minha prática literária. A distinção entre autobiográfico e confessional ganhou corpo textual no momento em que comecei a conjugar minha própria experiência infantil de vida com o auxílio dos verbos de minha memória. Ou seja, desde a mais tenra infância, a distinção entre autobiografia e confissão foi feita e existiu em mim e, desde sempre, existe como força a alavancar a imaginação criadora.
A preferência pelo discurso autobiográfico e a conseqüente contaminação dele pelo discurso ficcional se tornou prática textual, ou seja, elas configuraram um produto híbrido, no momento em que o menino/sujeito teve a imperiosa necessidade de jogar para escanteio - ou para o inconsciente - o confessional e aliar a fala de sua experiência de vida à invenção ficcional. A contaminação se tornou prática propriamente literária no momento em que o adolescente/sujeito – um memorioso estudioso de Letras - revisitava as práticas textuais híbridas da infância para torná-las do domínio público. Ao revisitá-las pelo exercício da memória, tenta apreendê-las com o fim de equacionar o desejo de criar narrativas literárias que signifiquem no universo cultural brasileiro. Muita pretensão? Talvez sim, talvez não. Mas nenhum escritor se realiza sem uma “ambição justa”, para retomar a expressão de Autran Dourado.
Portanto, a preferência pelos dados autobiográficos e a contaminação do discurso autobiográfico pelo ficcional existiram desde sempre lá na infância e estarão para sempre em meus escritos. Não tirei distinção, preferência e contaminação do nada, não as inventei recentemente e é por isso que vale a pena pagar uma visita ao menino antigo.
Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe - não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Nisso talvez possa me oferecer como paradigmas a infância de Gustave Flaubert e, principalmente, a maturidade de Fernando Pessoa. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição.
Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, co-existiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo. Os fatos autobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional.
O sujeito ressemantizava o sujeito pelo discurso híbrido.
Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso ficcional.. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com este exemplo.
Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico (para as conotações, veja-se o período histórico), no escurinho protegido pelas grades do pseudo-anonimato (morava numa cidade do interior), tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar e confessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranóia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis. Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala.
Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto de vivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe - e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional - verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso. Faço minhas as palavras contundentes de Michel Foucault em A arqueologia do saber: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”.
Na infância, já era multiplicadoramente confessional e sincero, era autoficcionalmente confessional e sincero. O discurso confessional – que nunca existiu no domínio público – se articulava e se articulou desde sempre pela multiplicação explosiva dos discursos autobiográficos que faziam pacto com o ficcional. O discurso confessional – que na verdade não o era, era apenas um lugar vazio, desesperador, preenchido por discursos híbridos - só poderia estar plena e virtualmente num feixe discursivo, numa soma em aberto de discursos autoficcionais, cujo peso e valor final seriam de responsabilidade do padre-confessor – e, hoje, de meu leitor. Ao padre-confessor e ao leitor passava algumas histórias mal contadas.
A boa literatura é uma verdade bem contada... pelo leitor... que delega a si – pelo ato de leitura - a incumbência de decifrar uma história mal contada pelo narrador. Competiu aos ouvidos do padre-confessor - e compete hoje aos olhos do leitor - preencher os brancos e os vazios de que é também feito um texto literário, aliás, não tenhamos dúvida, qualquer texto, que o diga o psicanalista. Compete ao leitor empinar (como a uma pipa) e endireitar (como a algo sinuoso) um objeto em palavras que lhe é dado de maneira corriqueira e aparentemente em desordem. Um exemplo? Pois não. Dom Casmurro é uma história mal contada pelo narrador Bentinho sobre o adultério de sua esposa, Capitu, com Ezequiel, o melhor amigo do casal. Caso narrada da perspectiva do leitor, a estória em primeira pessoa sobre o adultério de Capitu se transforma numa bem contada história sobre o ciúme doentio do personagem Bentinho.
As histórias – todas elas, eu diria num acesso de generalização – são mal contadas porque o narrador, independentemente do seu desejo consciente de se expressar dentro dos parâmetros da verdade, acaba por se surpreender a si pelo modo traiçoeiro como conta sua história (ao trair a si, trai a letra da história que deveria estar contando). A verdade não está explícita numa narrativa ficcional, está sempre implícita, recoberta pela capa da mentira, da ficção. No entanto, é a mentira, ou a ficção, que narra poeticamente a verdade ao leitor.
Um dos grandes temas que dramatizo em meus escritos, com o gosto e o prazer da obsessão, é o da verdade poética. Ou seja, o tema da verdade na ficção, da experiência vital humana metamorfoseada pela mentira que é a ficção. Trata-se de óbvio paradoxo, cuja raiz está entre os gregos antigos. Recentemente, encontrei a forma moderna do paradoxo num desenho de Jean Cocteau, da série grega. Está datado de novembro de 1936. No desenho vemos um perfil nitidamente grego, o do poeta e músico Orfeu. De sua boca, como numa história em quadrinho, sai uma bolha onde está escrito: “Je suis un mensonge qui dit toujours la vérité” (Sou uma mentira, que diz sempre a verdade). Esse jogo entre o narrador da ficção que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade poética, esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional, é que possibilitou que eu pudesse levar até as últimas conseqüências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos, emoções, modo de encarar as coisas e as pessoas, etc.), do outro, adequá-la à tradição canônica da ficção ocidental.
Toda narrativa ficcional em que a verdade poética está transparente – aquilo que se chama de romance de tese – é um saco. A verdade ficcional é algo de palpitante, pulsante, que requer sismógrafos, estetoscópios, e todos os muitos aparelhos científicos ou cirúrgicos que levam o leitor a detectar tudo o que vibra, pulsa e trepida no quadro da aparente tranqüilidade da narrativa literária, ou seja, no mal contado pela linguagem. Nesse sentido, e exclusivamente nesse sentido, o bem contado é a forma superficial de toda grande narrativa ficcional que é, por definição e no seu abismo, mal contada.
Para terminar, leio parte dum fragmento de “Sem aviso”, texto assinado por Clarice Lispector: “Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser precavida, e depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso – já atordoada eu sentia – era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta”. Permitam-me a glosa. O sujeito em primeira pessoa começou a mentir por prudência e cautela e, como a realidade ambiente o incitava a ser prudente e cauteloso, continuou a mentir descaradamente. E tanto mentia, que já mentia sobre as mentiras que tinha inventado. E a tal ponto mente, que a mentira se torna o meu modo mais radical de ser escritor, de dizer a verdade que lhe é própria, de dizer a verdade poética.
[1] Memórias de um sargento de milícias, Memórias póstumas de Brás Cubas e Memórias sentimentais de João Miramar.