A chamada Geração 80 das artes plásticas brasileiras, que reabilitou a pintura e o gosto das cores, depois de muitos anos de “ascetismo visual”, na expressão do crítico Frederico Morais, está completando 30 anos de atuação. Seus integrantes começaram a aparecer, ainda como alunos, no final dos anos 70. Mas eles se tornaram de fato visíveis com uma imensa exposição, realizada em 1984, reunindo mais de cem expositores, e intitulada “Como vai você, Geração 80”. Os curadores foram Marcos Lontra e Paulo Roberto Leal e tudo aconteceu no Parque Lage, no pátio da grande mansão onde já funcionava a Escola de Artes Visuais.
A revista “Módulo”, que fez um exemplar especial tratando dessa mostra, traz um texto de Frederico Morais, um crítico que desde a primeira hora acolheu bem o novo movimento. Algumas frases de Frederico, sobre a nova pintura que surgia: “Dizem que é bad painting, eu a vejo linda. Dizem que é feia, ultrajante – eu a sinto sensualíssima. Tem seis dedos, um olho só e manca de uma perna. I love her.”
Frederico continua: “Alegres, limpos, bem vestidos, bem paginados, os jovens da geração 80, mesmo depois de vinte anos de ditadura, não estão com a cuca fundida, não resistem, querem viver, acontecer, pintar.” Era o “retorno do artista a si mesmo, à sua subjetividade”, naquele momento eufórico da abertura política brasileira, o momento das “diretas-já.”
ESPÍRITO DA ÉPOCA
Achille Bonito Oliva
Neo-informalismo? Neo-figurativismo?
As tendências conviviam, não havia um “estilo” único, mas havia, sem dúvida, um “espírito de época,” presente na produção artística de vários cantos do mundo.
Na Itália, a Transvanguarda, cujo porta-voz, o crítico de arte Achille Bonito Oliva, fez várias visitas ao Brasil. Na Alemanha, os neo-expressionistas. Na França, a “Figuration libre”.
No Brasil, prevalecia entre os novos artistas, por cima das diferenças, uma alegria de pintar que Luiz Áquila, expressou na frase curta: “A maior desgraça é não pintar.”
FREDERICO MORAIS
A volta da arte ao emocional
Converso com o crítico Frederico Morais na bela casa dele, em Santa Teresa, com uma vista deslumbrante da varanda, abarcando Corcovado e Pão de Açúcar. Peço que Frederico (ele está ótimo e com uma memória incrível) defina, em linhas gerais, a arte dos anos 80. Diz ele:
- A arte voltou ao emocional, gestual, físico, o corpo estava presente, quase que o suor estava presente. E foi também uma volta à figura. Uma volta à figura, uma volta à cor. Claro que, internacionalmente, havia as referências do expressionismo alemão, da Transvanguarda italiana, da nova imagem norte-americana.
E quem foram os pioneiros da Geração 80? Quais foram as figuras mais importantes do início do “movimento”? Responde Frederico:
- Na exposição que organizei no MAM do Rio, em 1982, e chamei de “A mancha e a figura”, apareceram justamente os pioneiros da Geração 80. Não mostrei nenhum dos artistas novos, o que fiz foi tentar mostrar alguns antecedentes da nova tendência no Brasil. Sempre tive a preocupação de mostrar que temos um desenvolvimento independente do que acontece lá fora, apesar da globalização inevitável. Então peguei, por exemplo, um Iberê Camargo, na fase em que ele passou pela abstração, peguei o Ivan Serpa da fase negra, peguei o Ernesto de Fiori, pouco estudado, mas um artista excelente. A exposição que ocupou todo o segundo andar do MAM, na época um espaço novo. Eram quadros gigantescos de 3, 4, 5 metros. Peguei, por exemplo, um Espíndola, de Mato Grosso que, partindo de uma temática que é a do boi, foi abstraindo até reduzir aquilo a manchas. E aí vou me aproximando dos artistas mais próximos de hoje, como, por exemplo, o Áquila, chamado de pai da geração 80.
- A arte voltou ao emocional, gestual, físico, o corpo estava presente, quase que o suor estava presente. E foi também uma volta à figura. Uma volta à figura, uma volta à cor. Claro que, internacionalmente, havia as referências do expressionismo alemão, da Transvanguarda italiana, da nova imagem norte-americana.
E quem foram os pioneiros da Geração 80? Quais foram as figuras mais importantes do início do “movimento”? Responde Frederico:
- Na exposição que organizei no MAM do Rio, em 1982, e chamei de “A mancha e a figura”, apareceram justamente os pioneiros da Geração 80. Não mostrei nenhum dos artistas novos, o que fiz foi tentar mostrar alguns antecedentes da nova tendência no Brasil. Sempre tive a preocupação de mostrar que temos um desenvolvimento independente do que acontece lá fora, apesar da globalização inevitável. Então peguei, por exemplo, um Iberê Camargo, na fase em que ele passou pela abstração, peguei o Ivan Serpa da fase negra, peguei o Ernesto de Fiori, pouco estudado, mas um artista excelente. A exposição que ocupou todo o segundo andar do MAM, na época um espaço novo. Eram quadros gigantescos de 3, 4, 5 metros. Peguei, por exemplo, um Espíndola, de Mato Grosso que, partindo de uma temática que é a do boi, foi abstraindo até reduzir aquilo a manchas. E aí vou me aproximando dos artistas mais próximos de hoje, como, por exemplo, o Áquila, chamado de pai da geração 80.
Frederico destaca a importância de Jorge Guinle:
- Outro pioneiro da Geração 80 acho que foi o Jorge Guinle. Tanto que ele entra como apresentador, não apenas como artista. O Guinle, naquela época, não era o mais velho, mas era um dos mais velhos do grupo. Ele começou a pintar muito jovem. A primeira exposição de arte abstrata aqui aconteceu em 1953, em Petrópolis, no Quitandinha. Juscelino inaugurou essa exposição. Havia um livro de presenças, que reproduzi, e nele havia piadas arrasando a exposição. Diziam que aquilo era loucura, que qualquer criança fazia aquela arte. Enfim, esses argumentos furados. Mas ficou também, dessa exposição, uma foto do Guinle pai com o Jorge Guinle, naquele tempo com três ou quatro anos de idade, os dois de mãos dadas vendo os quadros. Quer dizer, parece que o filho estava destinado, desde criança, a ser um pintor. Depois ele foi para os Estados Unidos, porque sua mãe era americana, depois foi para a França. Ele era um cara que aparentemente não teve infância. A infância dele foi dentro de um museu. Ele morava numa rua no final do Leblon. Mas seu ateliê era na pracinha do Bairro Peixoto. Quem foi no ateliê dele, que ficava no final de um corredor, sabe que era uma experiência fantástica. O Jorge era um cara noturno, pintava principalmente à noite, e o ateliê dele era só tinta. O chão era uma camada de tinta onde a pessoa patinhava. E ele, já num certo momento, pintava com as mãos. E era tão grande a quantidade de tinta que os quadros dele, muito grandes, tinham uma retórica assim de pintura, faustosa, gordurosa, suntuosa. Era gozado, porque ele saía todo coberto de tinta. Ele tinha uma espécie de tapete de chão de borracha, todo manchado, que ia até o final do corredor, e o dele era o último apartamento. Num dia em que eu fui lá, eu o levei até o seu apartamento e o meu carro ficou todo sujo de tinta, por causa da roupa dele. Tanto que uma das minhas fantasias era expor não a pintura de Jorge Guinle, mas o ateliê dele, os sapatos dele, a roupa dele, etc e tal. O Guinle é um exemplo da visceralidade da pintura. Era uma coisa patética, dramática mas, ao mesmo tempo, havia muita cabeça naquilo, porque ele era inteligente, tinha muita leitura e, sobretudo, um olho bem treinado. Era capaz de falar durante duas ou três horas sobre um quadro dele.
Como Frederico descreve o surgimento da Geração 80?
- A Escola de Artes Visuais do Parque Lage, num certo momento, transformou-se num ateliê de pintura. Havia professores como Cláudio Kuperman, Luiz Áquila, Charles Watson, que também pintava, naquele tempo. Charles chegou ao Brasil muito jovem. Apresentei aquele menino na primeira exposição que ele fez aqui, que foi no IBEU. Ele era figurativo. Uma figuração um pouco seca e muito marcada pelo desenho. Mas o Watson era principalmente um professor.
Frederico destaca outro nome que ele acha importante, nos inícios da Geração 80:
- Outro nome interessante é o Victor Arruda. Ele era dono da galeria Saramenha. Victor participou da exposição “Como vai você, Geração 80,” mas ele vinha de um pouco antes, já fazia um tipo de figuração que até se aproximava um pouco da Transvanguarda italiana. Tanto que talvez ele tenha sido o primeiro artista brasileiro, carioca, no caso, que teve a atenção do Bonito Oliva. Oliva tinha um ego imenso, era um ególatra. Mas ficou muito amigo do Victor Arruda. Inclusive porque o Victor tinha a galeria e acabou expondo alguns artistas que eram da preferência de Oliva, quando ele já estava abandonando a Transvanguarda e entrando em outra coisa. O Victor se interessava por arte marginal.
Será que o que se chama de Geração 80 foi um movimento fundamentalmente carioca? Frederico responde:
- Os paulistas se sentiam meio alijados e tinham um pouco de razão. Na verdade, foi quase uma manifestação apenas carioca. Havia em São Paulo, por exemplo, um pintor como Ivald Granato, que fazia muito sucesso na época. Ele é do Rio, de Campos, mas vivia em São Paulo. Naquele período, tinha um Ibope fantástico. E ele tinha muito essa coisa do pintor dos anos 80, a mise-en-scène, pintava de gravata borboleta, com uma velocidade muito grande, ia atrás da publicidade. Mas acho que ele nem entrou na exposição da Geração 80.
Como foi que a crítica de arte, de forma geral, tratou os artistas da geração 80? Diz FM:
- Interessante é que a geração 80 exigiu um texto crítico diferente. Entrou em cena uma crítica mais verborrágica e mais psicanalítica. Era um tipo de crítica menos teórica, menos certinha. De certa maneira, o crítico se punha também dentro do texto, era uma crítica bem derramada. Era uma crítica com um texto totalmente diferente dos textos, por exemplo, da Aracy Amaral, do Marcio Doctors. E principalmente, eram textos que iam contra os do grupo todo do Ronaldo Brito, que escrevia de forma muito asséptica, muito limpinha.
CHICO CUNHA
Memórias da festa Sentado a uma das mesas da cantina da Escola de Artes Visuais, o pintor e arquiteto Chico Cunha, atualmente professor de pintura da EAV e que foi um dos participantes da exposição “Como vai você, Geração 80”, lembra a mostra, ocorrida neste mesmo cenário.
Chico se refere ao cenário como “romântico”, por causa da história algo mirabolante do antigos proprietários da casa, a cantora de ópera italiana Gabriela Besanzoni e seu marido, o milionário brasileiro Henrique Lage. E lembra:
- A volta à pintura já havia começado no final dos anos 70. Foi em 77, 78, que entrou no meio artístico carioca a idéia da pintura associada com o “prazer.” Uma espécie de alegria matisseana de pintar.
Dentro desse clima aconteceu a grande exposição. Com o comparecimento de parentes e amigos dos artistas, e mais “uma galera de praia, do Posto Nove e outra galera de teatro”, Chico calcula que havia uns mil presentes na “Como vai você, Geração 80?” que começou mais ou menos às três da tarde.
Os alunos da EAV, na época, pintaram telões para os cenários da ópera “O Guarani,” lembra ainda Chico. Além disso, na própria mansão foram encenadas peças de grande repercussão na época, como “A tempestade”, de Shakespeare, com Miguel Falabella e Maria Padilha.
Um momento lírico da exposição, conta Chico Cunha, foi quando o já desaparecido artista Carlos Mascarenhas entregou a várias pessoas, no terraço, inúmeras pequenas gaivotas de papel colorido, que foram atiradas de lá e caíram no pátio e na piscina.
Chico lembra um pouco da história da Escola de Artes Visuais, desde o início.
- Primeiro, o que havia aqui era o Instituto de Belas Artes – o IBA – que era acadêmico. Quando Rubens Gerchman veio ser diretor, por volta de 1975, ele mudou tudo. Mandou embora todo o pessoal acadêmico e trouxe professores como Roberto Magalhães, e Gastão Manoel Henrique, que fazia objetos. Durante a barra pesada da ditadura, o clima mental daqui do Parque Lage era bem outro, bem diferente, tínhamos aqui um outro nível de pensamento.
Chico lembra ainda que a gestão de Gerchman acabou em 79 e com sua saída foram embora vários professores. Durante algum tempo, a escola ficou vazia. Depois, vieram outros diretores: Rubem Breitman, Hélio Eichbauer, Luiz Carlos Ripper.
Chico cita professores que marcaram seus alunos, na época:
- Charles Watson, vindo da Inglaterra, John Nicholson, dos Estados Unidos, Astréia, Rosa Magalhães, que depois se tornou carnavalesca mas, nos anos 80, dava aula de cor, aqui na EAV.
Entre os alunos, além do próprio Chico, estavam nomes como Beatriz Milhares, Luiz Pizarro, Cristina Canale, Daniel Senise. E, já em 80, ainda muito jovem, Luiz Ernesto passou de aluno a professor.
- A gente trabalhava aqui dentro mesmo, como se isto fosse um grande ateliê. O número de alunos era muito menor do que é hoje.
Em 82, diz Chico, começaram as exposições de pintura. Uma delas foi “Entre a mancha e a figura.”
- Duas presenças marcantes, nessa mostra, foram Luiz Áquila e Jorge Guinle, este expondo pela primeira vez. De início, havia certo preconceito contra ele, por causa do meio social de onde vinha, mas depois ele começou a ter apoio crítico.
Chico prossegue lembrando outra grande exposição da época, realizada em São Paulo, com curadoria de Aracy Amaral e que reuniu nomes como Leda Catunda, Sérgio Romagnolo e Leonilson (um dos grandes desaparecidos da Geração 80, junto com o próprio Guinle e Ana Horta, uma pintora mineira que morreu aos 29 anos num acidente).
- E em 83, o Salão Nacional, no MAM, atraiu muita gente, inclusive de São Paulo, e havia muita pintura. Marcos Lontra e Paulo Roberto Leal, os curadores da exposição “Como vai você, Geração 80”, estavam no júri. No mesmo ano, 83, desse salão, houve uma troca na direção da EAV e quem veio foi Marcos Lontra.
Chico diz que o fato de os artistas trabalharem juntos no Parque Lage trazia um clima de afinidade, mas não existia entre eles uma unidade teórica.
Também, segundo ele, não havia exatamente um clima de euforia – os novos artistas, naquele meio reduzido de 80, 81, 82, eram uma “margem.”
- Quem decidia ser artista estava optando por uma ameaça de pobreza, a pessoa podia ficar esquecida, não tinha mídia.
A idéia inicial da exposição “Como vai você, Geração 80” veio de Marcos Lontra, conta Chico, e era a de reunir vinte artistas que haviam participado do Salão Nacional de 83.
- Cada um deveria apresentar um trabalho ligado à arquitetura da mansão do Parque Lage e os trabalhos não seriam obrigatoriamente pintura.
Marcos Lontra, na época, era o editor da Revista Módulo, de arte, e se tornou um crítico.
- Depois – diz Chico – Lontra resolveu transformar a exposição numa grande festa e foi convidando outras pessoas, até chegar a mais de cem, entre artistas e estudantes. A repercussão foi muito maior do que se imaginava. Houve muita cobertura de imprensa. Lembro que, da “Veja,” ligou para mim o Casimiro Xavier de Mendonça, querendo saber tudo sobre a exposição. Estava nela a crista da onda dos jovens artistas da época. E os galeristas abriram o olho, entre eles o conceituado Thomas Cohn.
BEATRIZ MILHAZES
A diva, na visão de Herkenhoff
Com telas de Beatriz e texto de Paulo Herkenhoff, o livro “Beatriz Milhazes” é lindo, pelas reproduções das telas dela, e seríssimo, com o erudito texto de Paulo Herkenhoff. (Editora Francisco Alves, R$ 180).
As inúmeras referências de Herkenhoff ajudam a aguçar o olhar para a obra de Beatriz Milhazes: Volpi, Guignard, crochê, pedras preciosas, rendas, Bridget Riley, festa junina, chitão, igrejas barrocas, bolo de milho, Matisse, Carmem Miranda, Oiticica, procissão, Salvador, Parati, Tarsila, alegorias de carnaval, entre outras.
Sobre o carnaval, a própria Milhazes diz, no texto: “Eu acho que a coisa mais incrível que existe no mundo é o carnaval. Há coisas que morrem com o tempo. A coisa mais estimulante é o carnaval. Está sempre mudando.”
Herkenhoff aprofunda: “Cedo, Milhazes opta pelos contrastes estridentes da cor calcados na cultura popular... Uma obra de 1982 denota o gosto pela padronagem e pelo ornamental... O suporte de um tríptico deste ano surge da costura das faixas diagonais de tecido estampado... O chitão era cortado em pedaços unidos para constituir equações matemáticas... Ela articula uma relação antitética entre racionalismo e espontaneidade... Entre a noção de estrutura e a de experimentalismo visual, entre o rigor estrutural do neoplasticismo e a exuberância sensorial do carnaval...”
Por cima de tudo isso, há na obra da Milhazes um toque do Barroco brasileiro, segundo Paulo Herkenhoff: “Beatriz Milhazes percebe que o Barroco oferecia formas exuberantes, sistemas de cores, ritmos visuais dinâmicos, suntuosidade, exuberância e política da forma.”
Quanto à técnica muito pessoal que a artista utiliza em seus quadros, e que também é importante para entender os resultados que ela alcança, explica Beatriz, no livro: “A técnica que eu utilizo se apóia no princípio da colagem. Pinto motivos sobre uma folha de plástico e colo esta imagem terminada sobre a tela. Em seguida, retiro o plástico, como uma decalcomania.”
Como é que ela conseguiu sua atual posição de destaque internacional, e preços surpreendentes para suas telas? Herkenhoff pensa que foi importante para sua evolução como artista a presença de um professor diferente e altamente qualificado: Charles Watson.
Diz Paulo Herkenhoff:
“No contexto de uma formação brasileira, Beatriz Milhazes recebeu inesperados aportes sob certa perspectiva inglesa de ensino no Rio de Janeiro. Estudou na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio, de 1980 a 1982. Depois do incêndio do Museu de Arte Moderna, em 1978, essa escola livre se tornara o principal centro de formação de artistas no Rio de Janeiro. Charles Watson, um pintor escocês formado pela Bath Academy of Art (1970-1974) na Inglaterra, chega ao Brasil em 1979, quando passa a ensinar no Parque Lage e traz para a pintura uma disciplina didática contemporânea que não encontrava paralelo no Rio de Janeiro. Milhazes estudou pintura com Waton, a quem credita sua sólida formação.”
Conta ainda Herkenhoff:
“Watson monta na EAV, nesse período, um ateliê coletivo com outros professores para demonstrar aos alunos a realização da pintura... Num momento dominado pelo conhecimento superficial das novas correntes européias e norte-americanas de pintura, o ensino de Watson, baseado na disciplina e no estímulo à invenção, faz uma diferença. Contra reivindicações de hedonismo pictórico, Watson exigia rigor.”
Paulo Herkenhoff se refere à cena brasileira e internacional, na ocasião em que Beatriz Milhazes e seus companheiros de geração 80 iniciam sua trajetória – depois do acento conceitual dos anos 70, era a cena marcada pelo retorno à pintura, a partir dos “modelos do neo-expressionismo alemão, da transvanguarda, do graffiti ou da bad painting.”
E lembra Herkenhoff: “A mostra ‘Como vai você, Geração 80?’ fez um balanço da arte emergente no país. Milhazes dela participou com uma pintura com figura de anjo e céu. No ano seguinte, a seção ‘A Grande Tela,’ da 18ª. Bienal de São Paulo, resumiu a prática da pintura na cena internacional, ao reunir artistas diversificados, como os brasileiros Daniel Senise, Leda Catunda, Nuno Ramos e Cláudio Fonseca ao lado de Paula Rego, Enzo Cucchi, Helmut Middendorf, Marlene Dumas e Guillermo Kuitca, entre outros.”
- Outro pioneiro da Geração 80 acho que foi o Jorge Guinle. Tanto que ele entra como apresentador, não apenas como artista. O Guinle, naquela época, não era o mais velho, mas era um dos mais velhos do grupo. Ele começou a pintar muito jovem. A primeira exposição de arte abstrata aqui aconteceu em 1953, em Petrópolis, no Quitandinha. Juscelino inaugurou essa exposição. Havia um livro de presenças, que reproduzi, e nele havia piadas arrasando a exposição. Diziam que aquilo era loucura, que qualquer criança fazia aquela arte. Enfim, esses argumentos furados. Mas ficou também, dessa exposição, uma foto do Guinle pai com o Jorge Guinle, naquele tempo com três ou quatro anos de idade, os dois de mãos dadas vendo os quadros. Quer dizer, parece que o filho estava destinado, desde criança, a ser um pintor. Depois ele foi para os Estados Unidos, porque sua mãe era americana, depois foi para a França. Ele era um cara que aparentemente não teve infância. A infância dele foi dentro de um museu. Ele morava numa rua no final do Leblon. Mas seu ateliê era na pracinha do Bairro Peixoto. Quem foi no ateliê dele, que ficava no final de um corredor, sabe que era uma experiência fantástica. O Jorge era um cara noturno, pintava principalmente à noite, e o ateliê dele era só tinta. O chão era uma camada de tinta onde a pessoa patinhava. E ele, já num certo momento, pintava com as mãos. E era tão grande a quantidade de tinta que os quadros dele, muito grandes, tinham uma retórica assim de pintura, faustosa, gordurosa, suntuosa. Era gozado, porque ele saía todo coberto de tinta. Ele tinha uma espécie de tapete de chão de borracha, todo manchado, que ia até o final do corredor, e o dele era o último apartamento. Num dia em que eu fui lá, eu o levei até o seu apartamento e o meu carro ficou todo sujo de tinta, por causa da roupa dele. Tanto que uma das minhas fantasias era expor não a pintura de Jorge Guinle, mas o ateliê dele, os sapatos dele, a roupa dele, etc e tal. O Guinle é um exemplo da visceralidade da pintura. Era uma coisa patética, dramática mas, ao mesmo tempo, havia muita cabeça naquilo, porque ele era inteligente, tinha muita leitura e, sobretudo, um olho bem treinado. Era capaz de falar durante duas ou três horas sobre um quadro dele.
Como Frederico descreve o surgimento da Geração 80?
- A Escola de Artes Visuais do Parque Lage, num certo momento, transformou-se num ateliê de pintura. Havia professores como Cláudio Kuperman, Luiz Áquila, Charles Watson, que também pintava, naquele tempo. Charles chegou ao Brasil muito jovem. Apresentei aquele menino na primeira exposição que ele fez aqui, que foi no IBEU. Ele era figurativo. Uma figuração um pouco seca e muito marcada pelo desenho. Mas o Watson era principalmente um professor.
Frederico destaca outro nome que ele acha importante, nos inícios da Geração 80:
- Outro nome interessante é o Victor Arruda. Ele era dono da galeria Saramenha. Victor participou da exposição “Como vai você, Geração 80,” mas ele vinha de um pouco antes, já fazia um tipo de figuração que até se aproximava um pouco da Transvanguarda italiana. Tanto que talvez ele tenha sido o primeiro artista brasileiro, carioca, no caso, que teve a atenção do Bonito Oliva. Oliva tinha um ego imenso, era um ególatra. Mas ficou muito amigo do Victor Arruda. Inclusive porque o Victor tinha a galeria e acabou expondo alguns artistas que eram da preferência de Oliva, quando ele já estava abandonando a Transvanguarda e entrando em outra coisa. O Victor se interessava por arte marginal.
Será que o que se chama de Geração 80 foi um movimento fundamentalmente carioca? Frederico responde:
- Os paulistas se sentiam meio alijados e tinham um pouco de razão. Na verdade, foi quase uma manifestação apenas carioca. Havia em São Paulo, por exemplo, um pintor como Ivald Granato, que fazia muito sucesso na época. Ele é do Rio, de Campos, mas vivia em São Paulo. Naquele período, tinha um Ibope fantástico. E ele tinha muito essa coisa do pintor dos anos 80, a mise-en-scène, pintava de gravata borboleta, com uma velocidade muito grande, ia atrás da publicidade. Mas acho que ele nem entrou na exposição da Geração 80.
Como foi que a crítica de arte, de forma geral, tratou os artistas da geração 80? Diz FM:
- Interessante é que a geração 80 exigiu um texto crítico diferente. Entrou em cena uma crítica mais verborrágica e mais psicanalítica. Era um tipo de crítica menos teórica, menos certinha. De certa maneira, o crítico se punha também dentro do texto, era uma crítica bem derramada. Era uma crítica com um texto totalmente diferente dos textos, por exemplo, da Aracy Amaral, do Marcio Doctors. E principalmente, eram textos que iam contra os do grupo todo do Ronaldo Brito, que escrevia de forma muito asséptica, muito limpinha.
CHICO CUNHA
Memórias da festa Sentado a uma das mesas da cantina da Escola de Artes Visuais, o pintor e arquiteto Chico Cunha, atualmente professor de pintura da EAV e que foi um dos participantes da exposição “Como vai você, Geração 80”, lembra a mostra, ocorrida neste mesmo cenário.
Chico se refere ao cenário como “romântico”, por causa da história algo mirabolante do antigos proprietários da casa, a cantora de ópera italiana Gabriela Besanzoni e seu marido, o milionário brasileiro Henrique Lage. E lembra:
- A volta à pintura já havia começado no final dos anos 70. Foi em 77, 78, que entrou no meio artístico carioca a idéia da pintura associada com o “prazer.” Uma espécie de alegria matisseana de pintar.
Dentro desse clima aconteceu a grande exposição. Com o comparecimento de parentes e amigos dos artistas, e mais “uma galera de praia, do Posto Nove e outra galera de teatro”, Chico calcula que havia uns mil presentes na “Como vai você, Geração 80?” que começou mais ou menos às três da tarde.
Os alunos da EAV, na época, pintaram telões para os cenários da ópera “O Guarani,” lembra ainda Chico. Além disso, na própria mansão foram encenadas peças de grande repercussão na época, como “A tempestade”, de Shakespeare, com Miguel Falabella e Maria Padilha.
Um momento lírico da exposição, conta Chico Cunha, foi quando o já desaparecido artista Carlos Mascarenhas entregou a várias pessoas, no terraço, inúmeras pequenas gaivotas de papel colorido, que foram atiradas de lá e caíram no pátio e na piscina.
Chico lembra um pouco da história da Escola de Artes Visuais, desde o início.
- Primeiro, o que havia aqui era o Instituto de Belas Artes – o IBA – que era acadêmico. Quando Rubens Gerchman veio ser diretor, por volta de 1975, ele mudou tudo. Mandou embora todo o pessoal acadêmico e trouxe professores como Roberto Magalhães, e Gastão Manoel Henrique, que fazia objetos. Durante a barra pesada da ditadura, o clima mental daqui do Parque Lage era bem outro, bem diferente, tínhamos aqui um outro nível de pensamento.
Chico lembra ainda que a gestão de Gerchman acabou em 79 e com sua saída foram embora vários professores. Durante algum tempo, a escola ficou vazia. Depois, vieram outros diretores: Rubem Breitman, Hélio Eichbauer, Luiz Carlos Ripper.
Chico cita professores que marcaram seus alunos, na época:
- Charles Watson, vindo da Inglaterra, John Nicholson, dos Estados Unidos, Astréia, Rosa Magalhães, que depois se tornou carnavalesca mas, nos anos 80, dava aula de cor, aqui na EAV.
Entre os alunos, além do próprio Chico, estavam nomes como Beatriz Milhares, Luiz Pizarro, Cristina Canale, Daniel Senise. E, já em 80, ainda muito jovem, Luiz Ernesto passou de aluno a professor.
- A gente trabalhava aqui dentro mesmo, como se isto fosse um grande ateliê. O número de alunos era muito menor do que é hoje.
Em 82, diz Chico, começaram as exposições de pintura. Uma delas foi “Entre a mancha e a figura.”
- Duas presenças marcantes, nessa mostra, foram Luiz Áquila e Jorge Guinle, este expondo pela primeira vez. De início, havia certo preconceito contra ele, por causa do meio social de onde vinha, mas depois ele começou a ter apoio crítico.
Chico prossegue lembrando outra grande exposição da época, realizada em São Paulo, com curadoria de Aracy Amaral e que reuniu nomes como Leda Catunda, Sérgio Romagnolo e Leonilson (um dos grandes desaparecidos da Geração 80, junto com o próprio Guinle e Ana Horta, uma pintora mineira que morreu aos 29 anos num acidente).
- E em 83, o Salão Nacional, no MAM, atraiu muita gente, inclusive de São Paulo, e havia muita pintura. Marcos Lontra e Paulo Roberto Leal, os curadores da exposição “Como vai você, Geração 80”, estavam no júri. No mesmo ano, 83, desse salão, houve uma troca na direção da EAV e quem veio foi Marcos Lontra.
Chico diz que o fato de os artistas trabalharem juntos no Parque Lage trazia um clima de afinidade, mas não existia entre eles uma unidade teórica.
Também, segundo ele, não havia exatamente um clima de euforia – os novos artistas, naquele meio reduzido de 80, 81, 82, eram uma “margem.”
- Quem decidia ser artista estava optando por uma ameaça de pobreza, a pessoa podia ficar esquecida, não tinha mídia.
A idéia inicial da exposição “Como vai você, Geração 80” veio de Marcos Lontra, conta Chico, e era a de reunir vinte artistas que haviam participado do Salão Nacional de 83.
- Cada um deveria apresentar um trabalho ligado à arquitetura da mansão do Parque Lage e os trabalhos não seriam obrigatoriamente pintura.
Marcos Lontra, na época, era o editor da Revista Módulo, de arte, e se tornou um crítico.
- Depois – diz Chico – Lontra resolveu transformar a exposição numa grande festa e foi convidando outras pessoas, até chegar a mais de cem, entre artistas e estudantes. A repercussão foi muito maior do que se imaginava. Houve muita cobertura de imprensa. Lembro que, da “Veja,” ligou para mim o Casimiro Xavier de Mendonça, querendo saber tudo sobre a exposição. Estava nela a crista da onda dos jovens artistas da época. E os galeristas abriram o olho, entre eles o conceituado Thomas Cohn.
BEATRIZ MILHAZES
A diva, na visão de Herkenhoff
Com telas de Beatriz e texto de Paulo Herkenhoff, o livro “Beatriz Milhazes” é lindo, pelas reproduções das telas dela, e seríssimo, com o erudito texto de Paulo Herkenhoff. (Editora Francisco Alves, R$ 180).
As inúmeras referências de Herkenhoff ajudam a aguçar o olhar para a obra de Beatriz Milhazes: Volpi, Guignard, crochê, pedras preciosas, rendas, Bridget Riley, festa junina, chitão, igrejas barrocas, bolo de milho, Matisse, Carmem Miranda, Oiticica, procissão, Salvador, Parati, Tarsila, alegorias de carnaval, entre outras.
Sobre o carnaval, a própria Milhazes diz, no texto: “Eu acho que a coisa mais incrível que existe no mundo é o carnaval. Há coisas que morrem com o tempo. A coisa mais estimulante é o carnaval. Está sempre mudando.”
Herkenhoff aprofunda: “Cedo, Milhazes opta pelos contrastes estridentes da cor calcados na cultura popular... Uma obra de 1982 denota o gosto pela padronagem e pelo ornamental... O suporte de um tríptico deste ano surge da costura das faixas diagonais de tecido estampado... O chitão era cortado em pedaços unidos para constituir equações matemáticas... Ela articula uma relação antitética entre racionalismo e espontaneidade... Entre a noção de estrutura e a de experimentalismo visual, entre o rigor estrutural do neoplasticismo e a exuberância sensorial do carnaval...”
Por cima de tudo isso, há na obra da Milhazes um toque do Barroco brasileiro, segundo Paulo Herkenhoff: “Beatriz Milhazes percebe que o Barroco oferecia formas exuberantes, sistemas de cores, ritmos visuais dinâmicos, suntuosidade, exuberância e política da forma.”
Quanto à técnica muito pessoal que a artista utiliza em seus quadros, e que também é importante para entender os resultados que ela alcança, explica Beatriz, no livro: “A técnica que eu utilizo se apóia no princípio da colagem. Pinto motivos sobre uma folha de plástico e colo esta imagem terminada sobre a tela. Em seguida, retiro o plástico, como uma decalcomania.”
Como é que ela conseguiu sua atual posição de destaque internacional, e preços surpreendentes para suas telas? Herkenhoff pensa que foi importante para sua evolução como artista a presença de um professor diferente e altamente qualificado: Charles Watson.
Diz Paulo Herkenhoff:
“No contexto de uma formação brasileira, Beatriz Milhazes recebeu inesperados aportes sob certa perspectiva inglesa de ensino no Rio de Janeiro. Estudou na Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio, de 1980 a 1982. Depois do incêndio do Museu de Arte Moderna, em 1978, essa escola livre se tornara o principal centro de formação de artistas no Rio de Janeiro. Charles Watson, um pintor escocês formado pela Bath Academy of Art (1970-1974) na Inglaterra, chega ao Brasil em 1979, quando passa a ensinar no Parque Lage e traz para a pintura uma disciplina didática contemporânea que não encontrava paralelo no Rio de Janeiro. Milhazes estudou pintura com Waton, a quem credita sua sólida formação.”
Conta ainda Herkenhoff:
“Watson monta na EAV, nesse período, um ateliê coletivo com outros professores para demonstrar aos alunos a realização da pintura... Num momento dominado pelo conhecimento superficial das novas correntes européias e norte-americanas de pintura, o ensino de Watson, baseado na disciplina e no estímulo à invenção, faz uma diferença. Contra reivindicações de hedonismo pictórico, Watson exigia rigor.”
Paulo Herkenhoff se refere à cena brasileira e internacional, na ocasião em que Beatriz Milhazes e seus companheiros de geração 80 iniciam sua trajetória – depois do acento conceitual dos anos 70, era a cena marcada pelo retorno à pintura, a partir dos “modelos do neo-expressionismo alemão, da transvanguarda, do graffiti ou da bad painting.”
E lembra Herkenhoff: “A mostra ‘Como vai você, Geração 80?’ fez um balanço da arte emergente no país. Milhazes dela participou com uma pintura com figura de anjo e céu. No ano seguinte, a seção ‘A Grande Tela,’ da 18ª. Bienal de São Paulo, resumiu a prática da pintura na cena internacional, ao reunir artistas diversificados, como os brasileiros Daniel Senise, Leda Catunda, Nuno Ramos e Cláudio Fonseca ao lado de Paula Rego, Enzo Cucchi, Helmut Middendorf, Marlene Dumas e Guillermo Kuitca, entre outros.”