Sonia Coutinho
Conto de Sonia Coutinho
Sou eu, Simone. Posso entrar? Não, obrigada, eu me sento aqui mesmo, nesta cadeira.
O quê? Você também ouviu falar disso?
Mas não é verdade.
Com Marcel Duchamp, nunca! Não aconteceu nada entre nós, pode acreditar.
Marcel esteve no Rio, ano passado, nós nos encontramos algumas vezes.
Um homem incrível, sofisticado. Mas nunca fomos para a cama, juro.
Fui para a cama com um artista, sim, mas aconteceu este ano – e foi com Kasimir Maliévitch.
Ora, procure nos livros, veja as reproduções dos seus trabalhos. Depois, se você quiser, podemos conversar sobre a arte dele.
No momento, prefiro que não, estou vivendo apenas o impacto da paixão que senti por ele. Só quero falar disso.
Minha idade? Ora, 55 anos. Acha que estou velha demais para ter uma experiência amorosa? Isso é preconceito. Para certas coisas, não há idade.
Kasimir Maliévitch me levou de volta aos sentimentos da minha adolescência.
Não, não contei a muita gente, não, só falei por alto com duas ou três amigas, e pedindo discrição.
Sim, não devem ter sido discretas.
Sei que a informação vazou, e aí veio essa onda de boatos, confundindo tudo.
Apareci publicamente com Marcel, tive o encargo de mostrar o Rio a ele. E nunca me viram com Maliévitch, que não teve recepção oficial, é uma relação pessoal minha.
Agora, dizem que fui para a cama com Marcel e que estou inventando essa história com Kasimir.
Sim, faz diferença para mim.
Não gosto que pensem que fui para a cama com Marcel Duchamp, fiquei ressentida com ele. Fui rejeitada, sabe? Mas deixe isso para lá.
O que quero é falar com você sobre Kasimir. Quero contar exatamente o que aconteceu entre nós.
Não, não precisa explicar nada ninguém nem tentar restabelecer nenhuma verdade. Quero apenas que você saiba o que aconteceu e acredite em mim.
Vou contar, agora conto.
Eu já conhecia Kasimir, tinha estado com ele em Vitebsk, mas isso foi mais de duas décadas atrás, incrível como o tempo passa.
Sim, Vitebsk, um importante centro cultural na Rússia. A cidade ficou famosa no mundo da arte porque Marc Chagall nasceu lá.
Maliévitch e Chagall fundaram em Vitebsk um Museu de Arte Moderna importante.
Ora, fica na Bielorrússia, na região dos lagos glaciares, perto de três grandes rios. Dá para sacar alguma coisa?
Mas minha aproximação com Kasimir, naquele tempo, foi superficial, embora houvesse, da minha parte algo além de uma mera simpatia.
Ele era professor, quando estive lá. E nossas conversas foram quase sempre em torno das suas atividades de ensino e do grupo que ele fundou: o Unovis (Defensores da Nova Arte).
O que fui fazer em Vitebsk? Participar de um programa para músicos, com duração de um semestre. Você sabe, toco harpa.
Eu era uma jovem harpista brasileira na Rússia.
Não, depois que voltei ao Brasil, nunca mais vi Kasimir Maliévitch nem tive notícias suas.
E então, vinte e tantos anos depois, no final do ano passado, começam a chegar e-mails dele, vindos de São Petersburgo.
Houve também um telefonema... Não, não foi em russo, quando estive em Vitebsk aprendi um pouco de russo, mas esqueci quase tudo.
Nós nos comunicamos em francês. Kasimir dizia que estava a caminho do Brasil, que viria ao Rio.
Então, nós nos reveríamos! Fiquei encantada e assustada, ao mesmo tempo.
Por um lado, tive uma certeza irracional de que Kasimir me traria de volta a minha juventude e o tempo feliz em Vitebsk.
Por outro lado, morri de medo: o que acharia ele da minha aparência, agora?
Sendo mais jovem do que eu e a crueldade do tempo bem maior com as mulheres? Quando nos conhecemos, eu tinha 30 e tantos anos; ele, três ou quatro a menos.
Avisei pelo telefone, com um riso-quase-choro: estou gordíssima, Kasimir.
E enviei pela internet uma foto recente minha, para que ele me reconhecesse no encontro que marcamos, para alguns dias depois, na porta de um shopping na Zona Sul do Rio.
O combinado foi que almoçaríamos num restaurante de saladas e, em seguida, tomaríamos um café numa livraria, no agradavelmente pouco movimentado terceiro piso do shopping.
Tudo bem simples. E cada um pagaria seus gastos, como convém a pessoas como nós, artistas, poetas, músicos.
Kasimir comentou, pelo telefone: “On reste des artistes, Simone.”
Na hora combinada, vi à minha frente seu rosto largo, sólido e belo.
Os olhos eram sonhadores, fixos em algum ponto distante, muito além do que estava em torno; os lábios, estreitos, algo tristes.
Kasimir Malevich em pessoa, na Cidade Que Amo, a Mais Linda do Mundo, o Rio de Janeiro. Uma combinação irresistível.
Não podia deixar de acontecer. Foi uma paixão fulminante, um coup de foudre.
Nosso encontro anterior, entendi, tinha sido apenas um prelúdio para Aquele Momento que o Destino nos Reservava, os dois ali em pé, tantos anos depois, diante de um shopping no Rio.
Eu usava uns óculos escuros redondos e imensos, que tinha comprado especialmente para cobrir meu rosto e impedir que Kasimir visse as inevitáveis marcas do tempo.
O almoço foi um pouco confuso, ele não acertou a se servir no bufê a quilo, e não entendeu que só precisaria pagar a conta na saída.
E meu francês, não tão desembaraçado, não me permitia explicar detalhes.
Depois do almoço, já estávamos mais calmos e acertados. Quando entramos na livraria e nos sentamos para tomar café, tudo se encaixou.
“C’est civilisé ici, Simone”, disse Kasimir, declaração que talvez não fosse inteiramente cortês, porque insinuava uma opinião menos favorável sobre outros lugares. Mas, de qualquer forma, gostei da sua aprovação.
Havia pouca gente no café, ninguém nos incomodaria e poderíamos conversar à vontade.
Lembramos nosso período em Vitebsk, e lamentei não termos aprofundado a relação. Era o momento de compensar isso, disse Kasimir.
Então, pedi que me falasse da sua vida e da sua arte. E, em frases breves, ele foi recapitulando tudo, desde seu nascimento perto de Kiev, na Ucrânia.
Os pais de Kasimir, os Malewicz, eram poloneses e ele foi batizado na igreja católica romana. O pai, supervisor nas refinarias de açúcar, viajava muito.
Kasimir gostava do campo – completou, mais tarde, os cinco anos da Escola de Agricultura.
Aprendeu por si mesmo, ele disse, a pintar as paisagens e os camponeses que o rodeavam. E foi admitido na Academia de Belas Artes de Kiev.
Depois da morte do seu pai, mudou-se para Moscou e estudou na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura, e no estúdio de um artista.
Nesse período foi que ele descobriu, em coleções particulares de quadros franceses, as obras dos impressionistas, cubistas, fauvistas.
Em seguida, veio para ele uma grande movimentação artística, com várias exposições suas no eixo Moscou-São Petersburgo.
Pedimos um segundo café e ele lembrou momentos marcantes da sua evolução.
Contatos com os poetas Kruchenykh e Khebnikov. Os cenários e trajes que fez para a ópera futurista “Vitória sobre o sol”.
Uma exposição junto com Vladimir Tatlin. A amizade com os pintores Natalia Gontcharova e Mikhail Larionov.
Finalmente, Kasimir falou, com alguma emoção, da escola que criou, o “Suprematismo.”
Mas então se interrompeu e disse que poderíamos ver algumas obras suas, quando saíssemos do café – estavam expostas num casarão no Centro do Rio.
Entusiasmada, eu já fazia um sinal para a garçonete trazer a conta, mas Kasimir me deteve.
- Antes de sairmos, vamos falar de você, Simone.
Mas eu disse pouco. Que continuo morando na Gávea, num pequeno apartamento com vista bonita. Que continuo sozinha. Que minha carreira sofreu contratempos, mas ainda toco harpa.
- Vamos embora – rematei, apressadamente. – Agora quero ver suas telas.
E assim pagamos nossas contas separadas, e assim nos levantamos.
Foi quando, inesperadamente, Kasimir estendeu a mão e a colocou atrás do meu pescoço.
Senti por ele uma atração que era ao mesmo tempo espiritual e muito física, digo mesmo, sem pudor, que era sexual.
Foi unidos por esse abraço que ele, depois de uma corrida de táxi até o Centro, me levou através das salas onde estavam penduradas suas telas.
A emoção diante das obras de Maliévitch era tanta que fiquei reduzida aos lugares comuns.
Ah, meu Deus, pensei, que maravilha a mente humana, o espírito humano. Como o ser humano é inventivo. Que grande e inexplicável sonho, a criação artística.
Paramos diante do “Quadrado negro,” do “Círculo negro”, e da “Cruz negra, ” telas próximas umas das outras, enfileiradas numa parede exclusiva.
E de repente captei o sentido sagrado dessas telas, que eu nunca percebera. Em sua pureza absoluta, suas figuras elementares eram símbolos do universo. Pensei: “A geometria pode ser mística. Estou diante disso.”
Olhei para o rosto de Maliévitch e a compreensão se completou: ele é um místico. Seu Suprematismo é uma “religião da arte.”
Geometria, bah! Não me venha com Mondrian! Era o que eu dizia a um professor de História da Arte cujo curso eu freqüentava.
Agora, entendia as figuras que, na verdade, surgem desde o início da história da humanidade.
O círculo de pedras de Stonehenge! A geometria das pirâmides! O “Quadrado negro” de Maliévitch!
Queria ficar ali para sempre, penetrada por essa revelação, vivendo-a em todas as suas implicações.
Mas Kasimir me puxou para adiante e fomos até a sala onde estavam outras telas suas, aquelas com figuras humanas.
Camponeses em sua solitária e monumental simplicidade, contra um fundo de terras lavradas.
Kasimir Maliévitch contou que apoiara a Revolução de 1917 e fora aceito por seus realizadores. Mas, depois de um período, venceram a burocracia e a repressão.
Sua arte foi considerada elitista e incompreensível para as massas. Veio a imposição oficial do Realismo Socialista.
Isolado, quase esquecido, Kasimir, como ele me contou, passou a viver outra fase, em seu trabalho.
Estava pintando figuras detalhadas, como as que vimos a seguir. Um auto-retrato. Um retrato da sua mulher (desviei a vista).
Os dois com gestos sacralizados e uma postura reta, lembrando ícones, enquanto as roupas, a composição dos quadros, evocam o Renascimento.
Uma nostalgia da visão “clássica?” Mas eu, na verdade, não queria mais explicações.
Kasimir ainda falava da sua vida e da sua arte, mas eu já não ouvia.
Aproximei meu corpo do seu, entreguei-me plenamente ao seu abraço.
Kasimir tinha um cheiro simples de capim do campo, o cheiro de um homem que trabalhava com a terra, um camponês.
Continuamos a caminhar, abraçados. Quando passamos por uma janela do casarão, percebi que havia neve, lá fora.
Não estávamos mais no Rio e sim na Rússia.
Kasimir abriu uma porta e saímos, por entre muita neblina, por sobre a interminável neve russa, voamos sobre Moscou, passamos pela Praça Vermelha, nos detivemos por alguns instantes em cima da fantástica catedral de São Basílio, continuamos voando em direção a São Petersburgo...
O tempo inteiro, ele falava.
Os Romanov, a última família imperial russa... o fraco tzar Nicolau II, dominado pela mulher, a Alexandra.. Os mágicos e ocultistas que os cercavam... Rasputin, o único que detinha os sangramentos do filho hemofílico do casal...
E naquele momento chegamos a São Petersburgo e descemos diante de uma casa, uma hospedaria. Subimos uma escada, entramos num quarto. Ele e eu tiramos a roupa, nos enfiamos debaixo dos cobertores...
Nada mais importava.
Fizemos amor, longamente.
Claro, Kasimir Maliévitch voltou para a Rússia, provavelmente nunca mais o verei.
Admito que, ano passado, tive vontade de me deitar com Duchamp, um homem fascinante.
Aliás, mais interessante como pessoa, pelas atitudes que tomou, do que por sua obra.
Claro que adorei ver Marcel jogando xadrez. Mas não aconteceu nada entre nós.
Não, não tentei de verdade seduzir Duchamp, mas lhe revelei meus sentimentos. E deparei com sua absoluta frieza. Ele deixou claro que queria apenas conversar.
Depois da sua partida, uma pessoa confiável me contou o que pouca gente sabia: Duchamp, naquele momento, estava perdidamente apaixonado por Henri-Pierre Roché.
Sim, Roché, o escritor, o autor do romance “Jules et Jim”, que Truffaut adaptou para o cinema.
Não, você não precisa explicar nada a ninguém. Fica entre nós. Se, depois do que lhe contei, você acredita em mim, se tem certeza de que estou dizendo a verdade, para mim basta.