segunda-feira, 27 de julho de 2009

SANTE SCALDAFERRI E A BELEZA QUE VEM DA FEIÚRA

Sante Scaldaferri

O pintor, gravador, ator e cenógrafo Sante Scaldaferri, um constante pesquisador das novas técnicas artísticas, é atualmente o grande veterano das artes visuais na Bahia. Ele participou três vezes da Bienal de São Paulo, expôs obras na Argentina, Cuenca, Cuba etc. Fui conversar com Sante na casa dele, em Itapuã, vizinha da casa onde morava o saudoso grande/pequeno Calasans Neto.
Sante, como Calasans, é um dos integrantes da famosa Geração Mapa, que se reuniu em torno da revista com o mesmo nome, no final dos anos 50 e entrando pelos anos 60, um pessoal que marcou uma virada na cultura baiana.
Além de Sante e Calá, havia Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, Carlos Anísio Melhor, todos estes já desaparecidos, restando os atuantes Fernando da Rocha Peres e Florisvaldo Mattos, entre outros.
Para mim, foi uma emoção grande chegar na bonita casa de Sante, com quadros cobrindo todas as paredes e uma piscina azul-esverdeada no jardim. Toda essa época da cultura baiana estava refletida ali e, de repente, fui tomada por muitas lembranças.
Em seus 81 anos, Sante, que continua sempre brincalhão e surpreende pela contínua renovação do seu trabalho. De uns anos para cá, ele vem usando o computador para criar obras muito originais, numa mistura de raiz popular com high-tech.

O amigo do homem, óleo sobre tela

A obra de Sante Scaldaferri já teve várias fases. A mais marcante é, provavelmente, a que se iniciou no final dos anos 70, coincidindo com o surgimento do neo-expressionismo alemão, tal como floresceu nos anos 80, com um bom número de pintores do “feio”, como Georg Baselitz e Sigmar Polke. Outras influências podem ter sido a Transvanguarda italiana, a Figuration Libre fancesa e a bad painting americana. Sante, sempre pesquisando, não resta dúvida de que teve contato com tudo isso. Um grande amigo seu nesse período, e que apreciava sua obra, era o crítico Frederico Morais.
Os movimentos citados caracterizaram-se por uma nova valorização da pintura, depois de uma longa fase de “desmaterialização” da obra arte, e também por uma acentuada presença do “feio”, contraposta aos cânones convencionais do “belo.”
Mas as possíveis influências, em Sante, não minimizam sua colocação de um universo muito pessoal, com um toque de “comicidade popular,” através das deformações irônicas das suas figuras e do aparecimento constante das figuras transformadas de ex-votos.
A visceral ligação dele com o entorno baiano está presente também numa religiosidade barroca que aparece marcadamente nas inúmeras e originais imagens de Cristo que ele tem produzido. (Sante me deu uma gravura com um Cristo “scorso”. Eu não sabia o que quer dizer isso, mas Sante garantiu que só sabe quem cursou a Escola de Belas Artes...)
Curiosamente, com seus elementos de feiúra e grotesco, e seu repúdio ao convencional, a arte de Sante Scaldaferri dos anos mais recentes surpreende pela “juventude”. São obras que não têm nada a ver com o “bonitinho para enfeitar a sala,” mesmo que isso tenha, como ele disse, prejudicado as vendas para um público menos informado.
Recentemente, saiu um livro sobre a obra de Sante Scaldaferri, de autoria do professor Aldo Tripodi. O título é sugestivo: “Uma poética do feio.”
Na apresentação do livro, vem um sumário das atividades do artista: participou do movimento cultural que originou a Revista Mapa; colaborou com o Cinema Novo, como cenógrafo e ator; foi asssitente da arquiteta Lina Bo Bardi na implantação do Museu de Arte Moderna da Bahia, no Solar do Unhão; no Pelourinho, deu cursos de técnicas artesanais para jovens e crianças carentes. Adiante, o professor Aldo Tripodi relaciona a arte de Sante Scaldaferri à vertente expressionista.
Então, vai aí um pouquinho da conversa altamente informal que tive com Sante Scaldaferri.


Os prisioneiros do pecado

SC: Sante, quero saber quando e como foi que você começou a pintar.
SS: Diversas pessoas ficam espantadas quando digo, mas é um dom do Espírito Santo. O Espírito Santo dá a cada pessoa um dom que é chamado de “carisma.” Então, o meu carisma foi ser artista. Desde pequeno. Eu tinha todos os meus desenhos, até os que fiz durante o curso primário. Guardei tudo: os coelhinhos, as paisagens, a paisagem com a chaminezinha, a marinha com os barquinhos, etc. Quando me mudei aqui para Itapuã, a umidade fez tudo deteriorar. Fiquei tão chateado... Mas a minha família nunca me apoiou em nada, nesse caminho da arte. Meus pais queriam que eu fosse dentista ou médico e aí me botaram num curso de matemática, para fazer o vestibular de engenharia. Quando cheguei na porta, do lugar onde davam o curso, disse para mim mesmo: “Não vou entrar aí coisa nenhuma!” e me mandei. Sabia que perderia o vestibular. Com isso, fiquei vadiando um ano inteiro. Um dia, vi no jornal: “Estão abertas as inscrições para desenho.” Cursei desenho, fiz o vestibular para Belas Artes e passei. Mas só porque a Escola estava precisando de alunos, tinha apenas oito...


A escalada

SC: Fale dos seus contatos com a Geração Mapa.
SS: Em 1957, mais ou menos, na época em que eu ia me formar em Belas Artes, eu estava caminhando pela Rua Chile... Todo dia eu ia para a Rua Chile. Dava uma voltinha por ali, e via os “intelectuais” sempre reunidos na porta da Livraria Civilização Brasileira. Mas então, um dia, vi um cara olhando para mim e pensei “Pô, esse cara é veado. Ele vem atrás de mim”. E senti uma mão em minhas costas. A pessoa disse: “Você vai trabalhar em meu filme”. Começou nossa amizade.
SC: Mas, quem era esse cara?
SS: Glauber Rocha. Era o início do cinema baiano. Foi feito o “Barravento.” Mais tarde, Glauber me chamou para trabalhar em “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”. Fiz estandartes para o filme e também fiz nele o papel de um guia de cego. Me realizei como o guia do cego. Não dizia uma só palavra...
SC: Estou lembrando outra figura central do grupo Mapa, o poeta Paulo Gil Soares.
SS: Uma semana antes de Paulo Gil morrer, ele me telefonou. Eu disse :”Ó rapaz, como vai?” E ele respondeu: “Reze por mim”. Eu perguntei: “Mas o que há?” E ele disse: “Nada, mas reze por mim”. Uma semana depois, morreu. Tomando banho, com o chuveiro ligado...o filho é que achou ele lá.
SC: Eu gostava muito do Paulo Gil. Houve período, aliás, em que ele se dizia apaixonada por mim... Paulo era muito doido. Parece que uma vez ele pintou os cabelos de verde e saiu por aí assim.
SS: Em ele fazia essas coisas e tinha essas paixões mesmo... Estou lembrando outra coisa, uma história com Paulo Gil. Uma vez, em Cachoeira, fomos até a Ordem Terceira, que ainda não estava restaurada. O chão estava todo podre. Paulo viu alguma coisa e disse: “Ali tem um santo e é meu.” Ele foi e pegou a coisa que, na verdade, era um morcego. Paulo Gil soltou um grande grito. Naquele tempo, nós encontrávamos em Cachoeira vários santos assim, abandonados. Mesmo antigo, quando o santo ficava estragado o pessoal o colocava atrás dos altares. Então, a gente ia espiar atrás dos altares e encontrava uma porção de santos assim.
Depois, Paulo Gil foi embora para o Rio, foi embora para o mundo.
SC: Acho que o trabalho dele lá no Rio absorveu demais o Paulo Gil. Tirou Paulo da poesia.
SS: Glauber foi contra ele trabalhar na Globo. Mas, na verdade, Paulo fez muita coisa em sua vida. Você já viu na Internet, no Google, o que há sobre Paulo Gil? Ele tem uma filmografia incrível. Fez “Satanás na Terra do Leva e Trás” que é uma jóia de filme. Escreveu um livro sobre Corisco. E fez um documentário em que entrevista Dadá. Ela, naquele tempo, dava porrada na gente. Era preciso filmar escondido. Depois, Dadá começou a ganhar dinheiro dando entrevista sobre o Corisco e já não se zangava mais de ser entrevistada. Paulo também escreveu um livro sobre o cangaço. Ele fez muita coisa. Estou lembrando, agora, de uma ocasião em que fui ao Rio, fiz uma exposição na Galeria Ana Maria Niemayer e fiquei hospedado na casa dele.
SC: Sua galeria no Rio ainda é a Ana Maria Niemayer, não? E, aqui na Bahia, é a Paulo Darzé, não é isso?
SS: É, é a Darzé. Mas a situação está horrível. Ninguém está vendendo coisa nenhuma. Parou tudo, mudou tudo. Está muito ruim. Eu vendia muito para o exterior e até isso parou. Eu tinha uma marchand em Paris, mas ela se queixou de que havia muitos impostos e fechou a galeria. Ainda vendo, de vez em quando. Mas como antigamente, não. Meus quadros ficam mais difíceis de vender porque o pessoal aqui acha que são feios... Eu não procurei atender ao mercado, não me corrompi.
SC: Vi, não faz muito tempo, uma excelente exposição sua na galeria Paulo Darzé. Você não vendeu aqueles quadros?
SS: Vendi só quatro quadros. E todos para fregueses meus, amigos meus.
SC: Aqueles seus primeiros quadros, que você me mostrou na parede, quando entrei, do tempo em que você ainda estava na Escola de Belas Artes, ou tinha acabado de sair dela, tinham uma orientação digamos “moderna,” mas eram bem comportados. Quando foi que você deu essa virada para uma “arte do feio”? Quando começou a incluir o toque grotesco em seus quadros? O que o levou para isso?
SS: É difícil explicar certas coisas que vêm de dentro. Mas digo, agora, que sempre me fascinaram os ex-votos, aquelas cabeças toscas de madeira. Então, de alguma forma, passei dos ex-votos com cara de gente para gente com cara de ex-votos... Então, para mim o ex-voto assumiu a condição humana para expressar dor, amor, paixão, ódio. Minha maior preocupação é o homem, minha arte tem uma característica eu diria que antropomórfica. Fiz a minha arte sem me corromper e, mesmo não vendendo tanto quanto outros, vivi sempre bem, viajei, fui para a Europa, fui para os Estados Unidos, fiz exposições em uma porção de lugares, viajei a passeio, fui para Buenos Aires e entrei na primeira Bienal de Arte Contemporânea de Buenos Aires, tudo isso sem me corromper; vendendo para gente inteligente, principalmente estrangeiros.
SC: Você está com algum projeto, agora? Uma exposição, algo assim?
SS: Não estou projetando nada. Estou é trabalhando. Na verdade, é chato fazer exposição.
SC: Você continua trabalhando todos os dias?
SS: Sim, todos os dias. Este aqui (mostra uma tela), estou restaurando, estava mofado. Este é uma releitura de uma fotografia do século XIX. Eu fiz a mesma pessoa, mas é diferente.
SC: Você fez quase que uma colagem de duas coisas totalmente diferentes. Eu gosto muito disso. E acho muito bonita essa textura aí.


Os caras de pau



Um comentário:

  1. EU SEMPRE DIGO QUE SANTE É ÚNICO! ESTA FIELDADE DELE COM A ARTE IMPRESSIONA MUITO. ELE NÃO SE CORROMPE, ELE CONSEGUE MANTER ESTA ARTE DE ONTEM CAMINHANDO COM O HOJE; NÃO SEI SE CONSEGUI EXPRESSAR DIREITO ESTA MINHA FALA, MÁS REALMENTE ELE É ÚNICO.

    ZENE FERREIRA

    ResponderExcluir