sexta-feira, 21 de outubro de 2011

TODA A VERDADE SOBRE A TIA DE LÚCIA



Vocês estão convidados para o lançamento do meu novo livro de contos, "Toda a verdade sobre a tia de Lúcia", que acabei de receber - e achei lindo...Estou aqui "lambendo a cria"...
"Toda a verdade" será lançado no dia 25 deste mês de outubro, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, a partir das 19 horas, num evento coletivo da 7 Letras em que também será lançado o número dois da revista Lado7 e alguns outros livros de autores da editora. Aí está o convite.



Está na orelha do livro:

"Embora guardem características que configuram o já conhecido e apreciado universo ficcional da autora, os contos deste livro trazem uma Sonia Coutinho diferente e renovada.
Uma das novidades é a constante presença, como personagens, de figuras das artes e da literatura, que exercem o seu fascínio. Em cena, Joseph Beuys, Van Gogh e Kasimir Maliévitch; ou Clarice Lispector e Vladimir Maiakóvski, entre outros.
Já a extensão dos contos ganha aqui flexibilidade. Há alguns longos mas, entre eles, surgem os que se estendem por apenas duas ou três linhas. Muito curtos, mas poderosos, com seu mistério inquietante.
É a nova microficção de Sonia Coutinho, às vezes escrita diretamente nas redes sociais da internet, e que ela publica pela primeira vez.
Experimental, mas de leitura fácil e atraente, “Toda a verdade sobre a tia de Lúcia” é um convite irresistível, para quem gosta de literatura. Vale a pena conferir."


Desculpem, gente... Fica pouco modesto eu colocar isso em meu blog... Mas, se não gostarmos de nós mesmos, quem vai gostar? Era o que dizia sempre meu analista... Então, vai a propaganda... O livro está legal mesmo, não posso mentir...

KARINA RABINOVITZ

COM KARINA, A POESIA
TOMA AS RUAS DE SALVADOR
Entrevista de Karina Rabinovitz a Sonia Coutinho

Karina

As intervenções urbanas da artista e poeta Karina Rabinovitz andam mexendo com a cabeça dos baianos ainda pouco familiarizados com os procedimentos da arte contemporânea. Karina é jovem, mas já são longos os caminhos que percorreu, nas trilhas que levam da arte à poesia, ou vice-versa.
Sua publicação mais recente de poesia impressa na folha é o “livro do quase invisível”, que saiu em 2010 na coleção Cartas Bahianas, da editora P55.
Ela já havia publicado, em 2005, outro volume de poemas, “de tardinha meio azul”, pela editora infinito publicações (selo criado pela própria autora).
Mas, além dos livros tradicionais de poesia, Karina vem fazendo intervenções poéticas, videopoemas, intervenções urbanas, tudo em parceria com a artista visual Silvana Rezende. Seu trabalho pode ser acompanhado através do blog que ela edita, o sussurros, (www.karinarabinovitz.blogspot.com)
No momento, Karina está finalizando o projeto “um livro de água”, composto de poemas e videoarte. Ela dá oficinas da palavra e de vídeo na Oi Kabum – Escola de Arte e Tecnologia. E já recebeu vários prêmios.

SONIA - Descreva sua trajetória como artista-poeta.
KARINA - Não sei se há um ponto de partida, não saberia dizer qual o começo. É uma trajetória de muitos flashes de perplexidade com a palavra e certamente de um amor que já estava, antes de eu saber com a consciência.
A partir da consciência e da organização, poderia datar o ano de 2004. Comecei a me reunir com mais 3 amigos (Marlon Marcos, Paula Janaína e Silvana Rezende) com a idéia de criar uma editora nossa independente, para produzir e lançar nossas idéias artesanalmente, a infinito publicações. Fizemos 3 encontros – os primeiros passos pro infinito... Daí minha parceria com Silvana Rezende, que é artista visual, se consolidou e nós seguimos trabalhando juntas para a criação do meu primeiro livro “de tardinha meio azul”, que são poemas meus com ilustrações de Silvana e foi lançado em 2005, em Salvador. Nós começamos a trabalhar também com videopoesia a partir de poemas do livro. E o livro nos levou a participar de eventos (OffFlip – Festa Literária Internacional de Paraty, Bienal do Livro da Bahia, Poesia na Boca da Noite), nos quais começamos a inserir videoinstalações e intervenções poéticas.
A partir deste nosso trabalho em parceria, passamos a criar e realizar juntas, ações de intervenção urbana. Desde 2005 até hoje são diversas ações diferenciadas para deslocar a poesia do seu espaço habitual e fazê-la transitar pela rua. Colagem de fragmentos de poemas nos muros da cidade; caixinha de acrílico com bilhetes poéticos em pontos de ônibus; confetes de poesia e parangolé-poesia no carnaval; poemas bordados em vestidos ou em compotas de doces, em exposições de artes visuais; babadinhos de poesia, nos murais de cartazes de universidades, restaurantes e espaços culturais; lambe-lambe poesia, uma videoinstalação para praças públicas; entre outros.
Em fevereiro de 2009 criei meu blog (www.karinarabinovitz.blogspot.com) que é um inventário de minha poesia: as ações, poemas e outras coisas mais como canções e vídeos a partir dos poemas. Uma janela sempre aberta. Em 2010 lancei meu 2º livro de poemas “livro do quase invisível”, pelo selo Cartas Bahianas, da Editora P55, a convite de Claudius Portugal, editor do selo. O livro foi lançado em Salvador, pela editora, e em São Paulo e Rio de Janeiro, de maneira independente. Também em 2010 recebei o Prêmio Roquette Pinto (patrocínio da Petrobrás e apoio do Ministério da Cultura, através da Lei de Incentivo à Cultura), para a realização do projeto "poesia eletrônica" (www.myspace.com/karinarabinovitz). Foram 72 programas de rádio-arte, nos quais trabalhei a poesia oralizada e sonorizada.


SONIA - Para chegar a esta fusão de gêneros, você partiu, digamos, de onde? Que artistas ou escritores a influenciaram?
KARINA - É que eu aprendi primeiro a ler poesia (antes mesmo de eu saber ler), nas coisas do mundo, nas coisas dos dias. Minha mãe me ensinou esta leitura. Ela me levava pra assistir o sol, ler os caminhos, contemplar belezas. Depois eu comecei a ver muita poesia na música, na dança, no cinema, no teatro. E fui passear por diversas linguagens artísticas, atuando e trabalhando.
A partir do momento que a palavra se tornou meu objeto predileto, o que me move é um desejo grande de ver e sentir a poesia no dia a dia, misturada com as coisas mais comuns da vida. Naturalmente trabalho com a idéia de escrever neste mundo contemporâneo, que quase “exige” mais agilidade na escrita e formatos diversos para se mostrar um poema. É este mundo contemporâneo que me estimula diariamente à fusão de gêneros na poesia.
Sobre as influências, a primeira delas é de meu irmão mais velho. Ele foi o primeiro poeta que conheci e foi vendo ele, que entendi que existia a possibilidade de ser artista, ser poeta.... Tenho muita influência dos poetas da música – Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Zé Miguel Wisnik. As letras das músicas foram os primeiros poemas que tive acesso. E depois vieram Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Mario Quintana, Guimarães Rosa, Manoel de Barros. Hoje em dia ando visitando Paulo Leminski, Angélica Freitas, Carlito Azevedo, Narlan Mattos, Ricardo Domeneck, Alice Ruiz, Kátia Borges.
Outra grande influência no meu processo de construção pessoal foi a de Rogério Duarte. Tive o prazer de ser sua aluna, no meu último semestre na Ufba (Faculdade de Comunicação) e só em ir para as aulas dele e o ouvir falar sobre arte, sem dúvida transformou coisas em mim, que não daria pra explicar aqui com palavras e espaço restrito.
Especialmente em relação à fusão, minhas referências são Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, Waly Salomão. Queria fazer as loucuras que Waly fazia! Mas como não sou tão explosiva assim, tento levar esta vibração para minhas intervenções poéticas, que são quase o avesso das ações de Waly, porque elas são mínimas e sutis, mas há uma mesma célula lá dentro, de desejo de sonho e um não-conformismo...

SONIA - O que você está produzindo, no momento?
KARINA - Em 2010, ganhei o edital de Apoio à Criação Literária da Fundação Pedro Calmon/Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e estou escrevendo “um livro de água”, em parceria com Silvana Rezende. Eu escrevo as palavras e ela escreve as imagens. É um livro que deverá ter uma versão impressa e outra digital. Ainda estamos na fase de criação (devemos entregá-lo em setembro/2011), mas pretendemos que ele seja muito vivo em seu formato. “um livro de água” vai falar de um universo específico: ilha. Trabalhar metáforas que envolvem uma ilha e as questões de solidão, alcance do outro. Não por acaso trabalhar com esta metáfora de ilha ao escrever nestes tempos atuais, que cultivam a solidão, mesmo dizendo que não...
Além deste livro novo, estou trabalhando numa nova série de intervenções poéticas: o “poesia atravessada” (poemas em faixa de pedestres) e o móbile_poemas de rua.


SONIA - Você dá dedicação exclusiva à sua arte, ou trabalha em alguma outra coisa?
KARINA - Infelizmente não ganho o suficiente com a poesia... Trabalho atualmente como arte-educadora na Oi Kabum – escola de Arte e Tecnologia, ministrando Oficina da Palavra e tratando de questões sociais na Oficina de Vídeo.

SONIA - Quais são os seus planos e/ou projetos, agora?
KARINA - Meu plano mais próximo é editar e publicar “um livro de água”, quando ele ficar pronto.
Na lista dos planos também está: distribuir CDs com o meu “poesia eletrônica” para alguns institutos de cegos do país. E continuar brincando com as palavras até o (sem) fim.

UM CONTO DE MIRIAM MAMBRINI

Miriam Mambrini

MENINO

O menino entra na sala descalço, vestido num pijama de malha desbotado. As luzes estão apagadas, mas, na luminosidade difusa que vem do corredor, consegue distinguir a mulher diante da janela, olhando para fora. A mãe. Sua mãe. Ela dá um longo suspiro e esfrega o nariz com o dorso da mão.
- Você tá chorando, mamãe?,
Ela se assusta ao ouvir a voz do filho. Sem se voltar, responde:
- Não. É o resfriado.
- Tá frio aqui – diz o menino, se aconchegando a ela, buscando o calor do seu corpo.
A mulher fecha a janela, mas continua olhando através da vidraça. Ao lado, na ponta dos pés, o filho olha também.
- Papai tá demorando, não é? – pergunta depois de algum tempo.
- Ta – diz ela num tom duro.
- Ele deve ter ido tomar um chope com os amigos. Às vezes ele vai, não é?
Ela olha o relógio, que antes já consultou dezenas de vezes, e percebe que os ponteiros estão prestes a se juntar.
- Meia-noite! Que é que você tá fazendo acordado a esta hora? Vai pra cama, menino!
- Estou com insônia.
Ela dá um risinho sem alegria.
- E você lá sabe o que é insônia?
- Sei. É ficar na cama sem dormir. Desde que você me mandou pra cama eu estou lá sem dormir.
- Então deita no sofá. Quando o sono vier, você vai pra cama.
- Você fica comigo?
Vão os dois para o sofá. A mãe põe no colo a cabeça do filho e brinca distraída com seu cabelo cacheado, até que a respiração tranqüila e regular a convence de que ele dormiu. Então, desliza o corpo com cuidado, levanta-se, coloca uma almofada sob a cabeça do menino e volta a olhar pela janela.
- Não tou dormindo – diz ele de repente, abrindo os olhos – Você conta uma história?
- Agora não.
- Conta!
- Não insiste, menino!
Ele ainda está encolhido no sofá, de olhos postos na mãe.
- Não fica preocupada, não aconteceu nada com o papai. Ele já chega.
Ela se irrita:
- E quem disse que eu estou preocupada? Se tiver acontecido alguma coisa, pior pra ele!
O menino se senta no sofá e balança as pernas, batendo-as de encontro ao estofado.
- Mamãe... você vai se separar do papai? – pergunta hesitante.
- De onde é que você tirou essa idéia, Lucas?
- Foi você que disse. Eu ouvi. Foi num outro dia que eu tive insônia. Quando o papai chegou, você disse pra ele que, se continuasse assim, o jeito era vocês se separarem.
A mãe se senta perto do menino e fala num tom tranquilizador:
- Aquilo não foi pra valer.
- Então quer dizer que vocês não vão se separar?
- Não.
- Se vocês se separassem, eu me matava – diz ele, dramático.
Ela abraça o filho e o aperta com força contra o peito.
- Nunca mais diga uma bobagem dessas. Onde já se viu?
Tem vontade de acender a luz para dissipar todas as trevas, mas desiste, pensando que a luz acesa vai despertar o filho de todo.
– Vocês não vão se separar, não é? – insiste ele.
– Não. Mas se um dia por acaso nós nos separarmos, nada vai mudar pra você. Você vai continuar indo ao colégio, à praia, à pracinha ...
O filho a interrompe:
- Quem vai me levar na praia, você ou papai?
- Quem é que você prefere?
- Prefiro o papai. Você tá sempre com medo. Não deixa eu entrar na água direito.
Faz uma pausa e olha interrogativamente para a mãe
– Eu vou continuar morando com você aqui em casa?
- Claro.
- E o papai, aonde é que ele vai morar?
- Ô Lucas, acaba com essa história. Eu não vou me separar do seu pai.
- Você jura?
- Jurar, eu não posso porque não depende só de mim.
- Ah, você não jurou, quer dizer que vocês podem se separar.
Por entre as sombras da sala, a mãe entrevê o rosto concentrado do menino. Aos pouco, ele se descontrai.
– Se vocês se separarem, vou fazer feito a Fernanda, que mora com a mãe e sai com o pai no sábado. Ela disse que é maneiro, o pai leva ela onde ela quer, até no parque de diversões. Ela já foi na montanha-russa.
- Tá vendo? Não é tão ruim assim.
- A Fernanda agora tá chateada porque a mãe vai casar de novo e ela vai ter que morar com o namorado da mãe. Olha, vou te avisando – continua, mudando de tom – se você arrumar um namorado, eu não vou mais querer morar com você. Vou pra casa da minha avó!
- Assim já é demais! Até namorado você resolveu me arranjar!
– Você promete que não arranja namorado?
– Prometo. Agora vai pra cama.
- Deixa eu ficar só um pouquinho mais? Deixa?
- Tá bem. Só mais um pouquinho.
Ele estende os braços, se pendura no pescoço da mãe e dá um beijo molhado no seu rosto.
- Não fica triste, mamãe. Daqui a pouco o papai vai chegar.
Deita-se no sofá, e põe a cabeça no colo da mãe. Os olhos começam a se fechar, mas lembra-se de alguma coisa e os abre de novo.
- Sabe uma coisa engraçada? Outro dia perguntei ao papai se ele ia se separar de você.
A mãe se espanta:
- Perguntou pra ele também?
- É. E ele respondeu parecido com você. Disse que não gostaria que isso acontecesse, mas não dependia só dele – Faz uma pausa, as pálpebras descendo pesadas de sono – Isso é bom, não é?
Já está dormindo quando a mãe responde que é muito bom.

Formada em Letras pela PUC do Rio, Miriam Mambrini é autora de O baile das feias (contos, Obra Aberta, 1994), Grandes peixes vorazes (contos, 7Letras, 1997), A outra metade (romance, 7letras, 2000), As pedras não morrem (novela, Bom Texto, 2004), O crime mais cruel (romance, Bom Texto, 2006), Maria Quitéria 32 (crônicas, Bom Texto, 2008), Vícios Ocultos (contos, Bom Texto, 2009, em livro e audiolivro). Participou de várias antologias de contos e ganhou, entre outros prêmios, o Stanislaw Ponte Preta (1991). Participa do grupo de criação literária Estilingues.

JANAÍNA AMADO E JACINTA PASSOS

JACINTA PASSOS, UMA NOVANTIGA POETA

JANAÍNA AMADO


Janaína Amado tem transitado entre a história e a literatura, com publicações nas duas áreas. Aposentou-se como professora titular do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). É autora ou co-autora de 20 livros na área de história, alguns destinados a escolas, outros ao público adulto. Publicou também livros de ficção, como o romance Dandara (São Paulo, Maltese, 1995) e três volumes infanto-juvenis. Organizou Jacinta Passos, Coração militante (Salvador, EDUFBA/Corrupio, 2010) contendo a obra e a biografia da poeta e jornalista baiana Jacinta Passos, sua mãe. Seu pai é o escritor e tradutor James Amado, irmão de Jorge Amado. Eis o depoimento de Janaína sobre Jacinta:

"Ela vivenciou a Bahia do início do século XX, imersa na experiência longa e recente da escravidão: senhores e senhoras, os brancos baianos, alicerçados em terras, religião, racismo e alianças políticas, mandavam, enquanto o povo humilde, analfabeto, negro ou mulato obedecia sem remuneração, ao som de suas danças afro-brasileiras e suas revoltas.

Ela vivenciou a Salvador dos anos 1930 e início dos 40, quando a pequena e provinciana cidade da Bahia despertava para os debates literários que rompiam com a tradição parnasiana, para o movimento das esquerdas e das agitações estudantis, as passeatas exigindo nas ruas o fim da Segunda Guerra e das ditaduras, na Europa e no Brasil.

Ela vivenciou a pequena porém agitada São Paulo de meados dos anos 40, quando os intelectuais se uniram para fundar a Associação Brasileira de Escritores e contribuíram para a restauração da democracia no país, quando o Partido Comunista do Brasil foi pela primeira vez legalizado, elegendo Luiz Carlos Prestes e outros para comporem a Assembléia Nacional Constituinte, na democracia.
Ela vivenciou a fervilhante capital da República do inicio dos anos 50, o Rio de Janeiro onde tudo acontecia, da vida noturna trepidante ao vigor dos debates intelectuais e das decisões políticas fundamentais, o centro da vida do país.

Ela vivenciou paixões intensas, por homens que a amaram e alguns a abandonaram. Vivenciou a maternidade, gerando uma filha da qual foi afastada. Vivenciou durante três décadas a experiência ilegal, clandestina e estigmatizadora de militante do Partido Comunista, tendo sido presa. E, a partir de 1951, vivenciou a violência extrema dos diversos internamentos em sanatórios, tratada a eletrochoques, injeções de insulina e isolamento severo, vindo a morrer quando internada.

Todas essas vivências, ela expressou no jornalismo — foi uma das mais ativas jornalistas da Bahia na década de 1940 — e, sobretudo, na poesia. Rabiscando poemas desde muito jovem, publicou em vida quatro livros de poesia elogiados pelos maiores críticos e intelectuais da época (Aníbal Machado, Gabriela Mistral, Oswald de Andrade, José Paulo Paes, José Mindlin, Antonio Cândido...), e escreveu literatura, em poesia e prosa, durante toda a vida, inclusive quando interna, até a véspera de sua morte.

Estamos falando de Jacinta Passos (1914-1973), poeta, escritora, intelectual e jornalista nascida de família rural abastada em Cruz das Almas, Recôncavo da Bahia, católica fervorosa que se transformou em comunista ardorosa, mulher de hábitos livres num Brasil machista, casada em 1944 com o jornalista e escritor James Amado (irmão de Jorge Amado) e, a partir de 1951, diagnosticada como esquizofrênica paranóide, separada e sozinha, vindo a falecer como louca em um sanatório de Aracaju.

As trajetórias literária e humana de Jacinta Passos ficaram esquecidas nas décadas seguintes à sua morte, pois as pequenas tiragens de seus livros estavam esgotadas, pouco se sabendo sobre sua existência atribulada. Recentemente, a poeta voltou a ser alvo de interesse, com a publicação de uma primeira biografia (Dalila Machado, A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador, 2000), de um livro de ensaios (Gilfrancisco, Jacinta Passos: a Busca da Poesia. Aracaju, 2007), de uma monografia de Especialização (Danielle Fuad, Passagem de Jacinta Passos pelo Jornal “O Imparcial” (1943). Salvador, 2008), e de Jacinta Passos, coração militante (Salvador, Edufba/Corrupio, 2010), volume organizado por sua filha Janaína Amado, que reúne toda a poesia e a prosa, inclusive a inédita, de Jacinta, uma nova biografia, sua fortuna crítica, diversas fotografias — que revelam uma belíssima mulher — , além de ensaios de escritores e críticos produzidos especialmente para a edição. Foi criado ainda o site http://jacintapassos.com.br.

Jacinta Passos com Janaína em criança


A poesia de Jacinta Passos, que apenas começa a ser desvendada, é lírica e política, as duas vertentes muitas vezes se mesclando. Seu primeiro livro, Momentos de poesia, de 1942, revela a profunda experiência mística da autora: Senhor,/eu quis fazer de minha vida/meu mais belo poema em teu louvor. Ou:Ouço vozes estranhas/[...]São vozes de sofrimento, de amarguras,/vozes de todas as criaturas/que falam por minha voz./Todas as criaturas que sofreram/ esta ânsia indefinida/ – angústia milenária como a vida –/ de querer atingir o inatingível (O Mar).

A experiência avassaladora do amor está presente desde o primeiro livro: Existimos fundidos num ser único/ que ignora a sucessão no tempo, [...] como um astro sem memória perdido no espaço sem princípio e sem fim (O Momento eterno). Nos segundo e terceiro livros, Canção da partida, de 1945, e Poemas políticos, de 1951, o amor desabrocha em erotismo: Agora teu corpo é fruto./Peixe e pássaro, cabelos de fogo e cobre./ Madeira e água deslizante, fuga/ ai rija/ cintura de potro bravo (Canção do amor livre).

Dois outros temas são caros à poesia de Jacinta Passos: a política e a situação da mulher, o segundo contido no primeiro. Seu último livro, A Coluna, de 1958, é um longo poema épico sobre a Coluna Prestes. Mas raramente Jacinta foi panfletária. Seus versos transformaram política em boa poesia, como em “1935”, sobre a fracassada revolta comunista deste ano, que assim começa: Tenso como rede de nervos/pressentindo ah! Novembro/ de esperança e precipício./Fruto peco. É sobretudo a mulher pobre, duplamente oprimida, a protagonista de vários versos de Jacinta: Nós somos gente marcada/– ferro em brasa em boi zebu –/ninguém precisa dizer:/ Bernadete, quem és tu? (Canção da partida). E: [...] Mulher virgem, condição/para homem dar – nobre gesto –/ resto duma divisão/ se a divisão deixou resto./[...] A flor caída no rio/que a leva para onde quer,/sabia disso e caiu,/seu destino é ser mulher (Canção simples).

Mas talvez seja a evocação da infância “o princípio organizador da obra de Jacinta Passos”, como concluiu o poeta Fernando Paixão. Em seus poemas líricos que evocam a cultura popular de sua Cruz das Almas natal, Jacinta “se apropriou do espírito narrativo do povo e o devolveu crescido e com roupagem nova”, explicou o escritor e crítico Ildásio Tavares. E Jacinta sai cantando: Boi da cara preta não não meu boizinho,/ não pegue neném, não, ele é meu filhinho (Cantiga de ninar). Ou: Camilo, você é pobre/e nunca foi senador,/mas por que é igualzinho/ao retrato de vovô? Ou ainda: Tanta laranja madura/ai tanta!/que aroma vem do quintal./A maré já deu passagem/cresce meu canavial/minha vara de condão/cavaleiro, teu punhal./ Jasmim da noite floriu./ Jasmim./Acabou-se o bem e o mal./Já tirei os meus sapatos,/Vesti meu manto real (Chamado de amor). "

UM CONTO DE KATIA GERLACH


PELETERIA

Darlene desenterra o dia das ruas e as mãos dos bolsos que é para acudir os cabelos. A cabeleira crespa alisada para trás; os fios brilhosos, afixou-os com dedadas de gel e, entrementes, tombam sobre o semblante; o arco não é auréola, Santa Darlene-creio-em-deus-pai. Passos ligeiros e baforadas curtas, os de trás respiram o ar convulsivo da Darlene e basta cravar o olhar nela para recuarem. Há pouco saíra da tourada. Tequila on the rocks: noite toda, a unha postiça do indicador girando o gelo na circunferência do copo servido pelo bartender com quem dividia as comissões. Ah, Darlene, em cujos cartões postais para a família, você conta ser dançarina de sapateado na Broadway, se a fosforescência do mundo acabar, onde você vai estar? As amigas não lhe vão servir para nada, a Edileuza, a Creuza, a Marlene e todas as outras, astoria queens, simulam lealdade, enquanto se arrepiam de invídia verdejante, colocam no palco a tragédia grega de Gotham.

A voz entubada da Edileuza passa despercebida pelos espectadores ébrios e ela prolonga os intervalos para esconder a tosse de cachorro, à medida que pede mais cigarros à Darlene porque cantar paga menos do que dançar, as gorjetas variam e a Edileuza não enxerga justiça nisso, afinal a Darlene não vai além de um strip parcial por ser católica praticante. A Creuza e a Marlene acompanham no coro de fundo e depois da apresentação, o quarteto se arma em muralha caso algum valentão resolva tostar guimbas nas pernas grossas de uma delas, sentadas a mesa. Desequilibram-se nas cadeiras quebradiças do barril noturno s.a., o rapaz do bar teima em piscar maliciosamente para aquelas damas alçadas pelos anos, via-se logo a malaise do Francisco, bezerro carente de mãe, uma delas bem que serviria para acolhê-lo nos seios enganosamente maternais.

Darlene abotoa e desabotoa a camisa de tachinhas prateadas ao seguir pela calçada que se manifesta. O estômago mareado, ondas ondulantes duvidosas, o barco em jornada sem bússola, o que a roupa justa não contém é a carne morena que esbanja e de que Waldecy gostava até o domingo quando vomitou palavrão e deu um casaco de chinchilas para a Edileuza. Puro despeito de um homem de mãos tenras, dedos de veludo, uns mimos e umas manias que a Darlene aguentara por causa da linhagem dele. Raro um daqueles dando sopa nas margens cinzentas do East River, cordão de ouro com crucifixo, família de nível, educado em escola particular, cheiroso de perfume francês, superando as ilusões de asfalto da Darlene. No fundinho da anima, a Darlene desconfiava que o Waldecy a visse como criada de cama e mesa, sem que esta ciência inibisse o esforço dela para agradá-lo. Trocava roupas de cama e toalhas de banho dia sim, dia não, passava lençóis a ferro, cuidava das roupas íntimas do Waldecy para que não encardissem, quarar inviável no porão sem área de serviço, mas ela aprendera a moderar na amônia para obter a alvura ideal e não rasgar o tecido. A mãe a educara para evitar o encardimento das roupas do marido. O Waldecy não era marido, todavia, entretanto, não obstante, ainda assim.

Sob os vinhedos enrijecidos pela poluição, as crianças do barrio atiravam jatos de água em todas as direções, contentavam-se com os arco-íris empalidecidos, o céu prometia manter-se azul até nove da noite, um ar úmido embolorava o peito. Darlene volta sempre do trabalho. Sim, está sempre voltando do trabalho e esconde o ódio fervente do tapa levado pelo Waldecy no fim de semana, homem que dava tapa na bunda como na cara, humilhando-a sem reconhecimento. Ela garantia que ele agora brincava com o pequeno anel de ouro, o brasão da família e alisava os dentes da boca pequena com a língua da maneira que gesticulava ao assisti-la azeitar a salada e o frango grelhado. Creuza, Edileuza e Marlene não se cansavam de bajular o Waldecy pela educação de cavalheiro, o humor, o jeito sóbrio, tão distinto dos frequentadores do barril. Quem naquelas bandas se dava ao trabalho de abrir a porta do carro para uma mulher? Ou se levantava para ajudar uma dama a sentar-se? A Darlene enxergava os olhos relampejantes das amigas quando o Waldecy comprava uma rosa do camelô florista, torcia o caule espinhoso e encaixava-a na orelha pingada da Darlene, mulher de rosto bonito malgrado a pelugem. Ela não contava a ninguém sobre a intimidade com o sujeito, fazia segredo das inúmeras vezes em que o Waldecy transformara o carro em jaula no estacionamento do supermercado, abandonando-a ao léu com uma fresta minúscula da janela aberta para não asfixiar antes de despelar.

Desde que amigara o Waldecy, Darlene fecha as pálpebras roxas, quase negras, e não dorme. As chinchilas, pequenas almas balbuciantes viajadoras de uma ponta da américa a outra eram alminhas maléficas que mordiam-na corpo inteiro, para acordá-la aos berros e de cara com a porta de vidro fumê do minibar onde o Waldecy guardava o Tesouro. As peles penduradas, as fisionomias do último sofrimento recheando as feições debilitadas: Darlene enfastiava-se do abatedouro. Waldecy chutava-a de súbito nas pernas para que o deixasse dormir. Ela transpirava, indecisa quanto à necessidade do edredom, seguia à cozinha para um copo d’água, o líquido engolido aos goles qual o convívio com o Waldecy, quem, divorciado três vezes, dissera-lhe num daqueles momentos de tapa na cara que se ele encontrasse uma mulher que facilitasse a regularização dos papéis, encheria as malas e a Darlene que olvidasse o Waldecy. Podiam esbarrar na rua que ele não a reconheceria, de propósito, língua no canto do céu bucal e uma risada irônica nascendo de dentes tão miúdos quanto os dos animaizinhos, retratos de natureza morta por detrás da opacidade insuficiente do minibar.

A mãe do Waldecy, a quem Darlene se apresentara por via telefônica, criava as chinchilas, investia na ração enviada e se responsabilizava pelo despacho climatizado das criaturas. A temperatura da quitinete no porão da casa de tijolos descascados e escadas rangentes deveria ser mantida no nível do ambiente natural das chinchilas, de modo que Darlene e Waldecy não dispensavam os agasalhos entre as paredes de gesso branco que o proprietário, o seu Giuseppe, embriagado de grappa no café da manhã e aliciador de garotinhas no barril, se negava a forrar de papel e exigia que a Darlene preparasse cafezinho para ele cada vez que cobrava o aluguel às vésperas do dia do vencimento.

Manhã noturna, as luminárias acesas no porão, Darlene amarra o cinto do roupão de pelúcia, caminha para a cozinha sem não antes enxergar os bibelôs umidecidos, as pessoas e as coisas quase levam susto ao acordar menos o Waldecy dormindo que nem água de poço. Waldecy vislumbrava nos restos precários dos animais a sua fortuna, os sonhos, as nuvens azulinhas. Quer preparar um catálogo fotográfico, convida Darlene e as amigas para o ensaio na Times Square mas, à Edileuza, ele pede que vista um vestido longo, negro para a foto de luxo. Recomenda à Darlene e as outras uma boa maquiagem e jeans, e, Darlene, querida, faça-me o obséquio de um batom discreto e não aquele rosa fúcsia borrado que você tem mania de usar no trabalho, o meu catálogo é direcionado para gente fina, Alexander McQueen coisa e tal. A idéia é aterrissar na Times Square antes que o dia tome forma, evitar o tumulto dos pedestres, pegar os primeiros raios de sol alaranjado que o canal do tempo previu. O Waldecy de fronte ao espelho dá tapinhas na cara com a loção pós-barba old spice, passa o pente no cabelo ralo, não costuma banhar-se na manhã, exala uma mistura de talco e colônia, a pia salpicada de fios atômicos, pasta de dente destampada, toalha largada, Waldecy não perde o hábito como deixa perder os fios de cabelo no chão do lavatório.

Quem diria, ela, Darlene, fotografada no triângulo da Times Square. O Waldecy insistia para que ela parecesse menos rabugenta, ô Darlene, olha para as tuas amigas, sorridentes, abre a boca num sorriso, vai? O Waldecy não dava sossego embora eles levassem a vida fifty-fifty, aluguel, comida, roupas, passeios, tudo dividido pela metade, ela ralava no barril e ainda complementava o dinheiro com serviços de limpeza apesar de odiar faxinar. Isto sem contar a sina do Pedro Augusto, o filho dela internado no hospital da capital, ninguém descobria a doença do menino, a família não cessava de lhe telefonar, Darlene, o menino não cresce, o menino não engorda, o menino não come, aliás, parece sim que está sendo comido por dentro e, ela, o que sabia do Pedro Augusto? Gestara a criança por nove meses, parto normal, bebê normal, amamentado por um ano e daí? Daí que ela precisava ganhar dólar, já completava oito anos, o Pedro Augusto nas fotos, nas telas de computador, as mãozinhas encostadas no vidro para tocá-la, ele a chamava de mãe e senhora, com respeito, aprendera a pedir roupas e tênis, o Pedro Augusto, o menino melhor vestido na cidade pobre à beira do rio das cinzas podre e barrento como na maioria das cidades brasileiras que não se fotografam. O Pedro Augusto tem que estar bem e na próxima semana preciso pinçar as sombrancelhas que entortam a minha testa.

O domingo correu, sessão de fotos, café da manhã no pão nosso, o copo de café com leite cheio de aleluias, a missa das onze, estavam de folga e à toa. Vieram todos para a casa, o Waldecy liderando, prometeu preparar um risoto de carne seca e abóbora que sabia cozinhar melhor do que ninguém, nunca ia para o fogão, porém, quando resolvia vestir o avental era para arrasar com um prato elegante, nada de arroz e feijão, bife, galinha assada. A comida vinha de um jeito na travessa que a Darlene deslembrava os modos de segurar garfo e faca. Acabou que substituiu a carne seca por camarão porque você Darlene não tirou o sal da carne seca, portanto estragando parte dos planos para um almoço magnífico. As meninas o admiravam, Darlene este Waldecy é o teu bilhete lotérico, aposta cheia. Às tantas, o Waldecy zonzo de vinho abre a geladeira das chinchilas, tira um casaco e presenteia a Edileuza. Toma, Edileuza, é teu, em agradecimento pelas fotos de hoje. Nem a Darlene tem casaco de chinchila, ele ousa dizer, olhando-a de esguelha. A Edileuza estala os lábios, muito no cinismo de quem canta para arrancar gorjetas dos homens. Ela acaricia a pele com as mãos, veste o casaco fora de estação, você tem certeza, Waldecy?

Amanhece, amanhece, não pára de amanhecer nesta cidade que aperta as noites como os sapatos espremem os pés e a Darlene desce a avenida estreita da broadway no queens, os dias de inverno se aproximam, a vida fifty-fifty com o Waldecy continua a mesma bosta, o Pedro Augusto não cura, pede a ela que volte e ela não quer ver o menino que nunca viu, não quer largar o marido que não tem, não quer partir de onde não pertence, Tequila on the rocks, a unha comprida do indicador faz o gelo contornar a circunferência do copo, tomava bebida de homem, one shot, many shots, tiro certeiro, vários tiros. Noutro domingo, estivera no confessionário, tocou na perna do padre com o dedo lambuzado de Tequila e podia jurar que girara a circunferência do mundo a seu favor.

Kátia Bandeira de Mello-Gerlach, natural do Rio de Janeiro, é escritora radicada em Nova York e colaboradora do jornal literário português www.pnetliteratura.pt. Seu primeiro livro de contos "Forrageiras de Jade" foi lançado pelo Projeto Dulcinéia Catadora em 2009.


Foto de Ricardo Esteves


"Ricardo Esteves est séduit par les détails, les entrelignes parlent en secret puisque c’est dans l’expiration que chacun s’expose… beaucoup plus que ce qui reste gravé dans la rétine, il reste ce qui chante dans l’âme. Dans la fraction de sa vision, il montre l’envers de l’univers si familier à tout être humain avec la délicatesse culturelle de chacun.Ricardo Esteves nasceu no Rio de janeiro e atualmente mora na França onde trabalha como fotografo de publicidade e de arte."

MÁRCIA CAVENDISH WANDERLEY

AS TERRAS PROIBIDAS DE LUIZA LOBO


Um “Casa grande & senzala” do Vale do Paraíba do Sul, é o que se pode dizer deste romance portentoso de Luiza Lobo, escrito em tom rememorativo, às vezes proustiano, de quem se lembra de um passado não vivido nem testemunhado, mas a respeito do qual reuniu documentação confiável e verídica, tornando-se histórica e antropologicamente sustentável. O que não seria novidade, dada a quantidade de cientistas políticos e sociais, antropólogos, historiadores, juristas etc a utilizarem, no passado e no presente, a literatura como fonte secundária para suas investigações.

Este romance é bastante confiável inclusive porque sua autora (a qual apresentei com honras no meu livro Mulheres: prosa de ficção no Brasil 1964/2010, recentemente lançado) é um dos últimos ramos da família Teixeira Leite e assim teve acesso a todas as informações que constituem a argamassa da narrativa, utilizando fontes primárias, em conversas com os e mais antigos parentes e aderentes remanescentes da sua e de outras famílias que viveram a saga das fazendas do café do vale do Paraíba do Sul, na então província e depois Estado do Rio de Janeiro. Isso para não falar de documentos secretos por tantos anos guardados em baús e ainda em poder da família, que a autora pôde manusear.


Um resgate que acompanha quase três séculos de história de família e da história do ouro negro, que deslocou o eixo da economia brasileira, inicialmente centrado no núcleo canavieiro do Nordeste, depois na região central das Minas de ouro e pedras preciosas e finalmente no Sudeste e Sul cafeeiros, completando o período agroexportador da economia brasileira. Mas enquanto durou este último ciclo no Sudeste, o do café, a produção e comercialização foram tão bem sucedidas que os barões agrários, responsáveis por esta produção, ficaram suficientemente ricos para alimentar os luxos e o fausto do Imperador e sua corte, e a própria cidade do Rio de Janeiro foi transformada e tornou-se mais bela e fascinante com o capital gerado no Vale do Paraíba do Sul. Foi por isto mesmo que tantos proprietários rurais se tornaram barões, pois os títulos eram doados pela monarquia à guisa de recompensas.


No final desse processo a monarquia, já bastante abalada pelos protestos contra a pútrida escravidão e pelos ecos dos gritos republicanos, irá ruir diante dos questionamentos e ditames da República, definitivamente instalada a partir de 1889. Tudo isso está contado em forma romanesca por Luiza, que desloca também o foco narrativo do protagonista básico da história, a elite cafeeira rural, para a voz dos escravos e negros, representados principalmente por Manuel Congo – uma verdadeira força moral que determinará o destino de sua família pelo vaticínio mortal proferido na hora de seu enforcamento em praça pública, em Vassouras.


Esse sortilégio teria determinado a decadência e as agruras sofridas não só por uma, mas por todas as famílias daquela região. É uma estória triste e longa de decadência e mortes que nos convence como verdadeira, porque a prosa de ficção é eficiente neste papel de “suspension of disbelief”, embora saibamos que não foi diferente o destino das famílias da elite canavieira dos engenhos, quando as empresas usineiras tomaram conta da produção do açúcar e multiplicaram essa produção muitas vezes.


José Lins do Rêgo é um dos escritores que desenha esse quadro com sensibilidade e graça em Menino de engenho, Usina e outros livros que contam a estória daquelas famílias. No Sudeste, a abolição da escravatura e a imigração promovida desde o Império com vistas a uma industrialização que somente floresceria na República, serão a sentença de morte da economia cafeeira. Aqueles escravos, tanto no Nordeste quanto no Sudeste, tiveram muitas vezes tratamento desumano – e Luiza relata os casos das atrocidades e barbaridades que alguns proprietários de fazendas, como os Wernecks, por exemplo, faziam com seus escravos, que às vezes eram até enforcados, como no caso de Manuel Congo.


Entretanto, a partir de uma certa data, na região Sudeste, esse comportamento bárbaro tornou-se mais suave e os escravos passaram a auferir mais direitos e benesses de seus proprietários. É àqueles homens e mulheres, os 147 escravos da fazenda Cachoeira Grande, pertencente ao barão de Vassouras, seu ancestral Francisco Jose Teixeira Leite, que Luiza dedica seu livro, corroborando a intenção acima mencionada de realizar o descentramento das vozes dos poderosos para abrir espaço a outras, sempre subjugadas e inaudíveis.


O mesmo acontece em relação às mulheres. Conquanto Luiza advirta no inicio do terceiro capítulo da primeira parte: “Das mulheres não falo porque não são importantes”, é delas que mais falará, e não apenas através das chamadas “baronesas loucas”, e nem tão loucas, mas enlouquecidas pelo patriarcalismo castrador, mas também através da voz de uma personagem como Elisa, aparição fulgurante e iluminada como um relâmpago rápido em noite escura, em toda sua leveza, inteligência, paixão e revolta femininas vivas contra o status quo de mulheres emudecidas e apagadas que fizeram o cenário das fazendas do Vale do Paraíba e das casas grandes – ali, onde “nenhuma delas foi feliz”.


Dessas e de outras vozes submersas e emudecidas no decorrer da história fala a autora, que não deixou de lado as peripécias da Maçonaria em suas lutas pela libertação dos escravos e pela República; das idas e vindas de sua própria família em direção à ruína inapelável, que, como as outras, tão aprisionadas estavam em suas próprias redes por sistemas de parentesco que garantiam a limpeza da raça branca que pouco lhes sobrou em termos materiais. Contudo, restou o que ficou do talento manifestado em alguns membros daquelas antigas gerações.


Eliza é um destes membros que, conquanto tenha vivido um curto espaço de tempo no mundo, manifestou possuir a inteligência, a vivacidade e outras qualidades intelectuais e sensíveis que surpreendemos agora neste excelente romance com fôlego para contar a história que envolveu a saga dos Teixeira Leite e outras famílias. Eles fizeram, apesar da nódoa escravista, a grandeza e o brilho da Monarquia e de uma época de ouro da província e hoje Estado do Rio de Janeiro. Parabéns Luiza.


Márcia Wanderley


Marcia Cavendish Wanderley é pernambucana, professora de sociologia da literatura da UFF, e autora dos livros A voz embargada (São Paulo, Edusp, 1996), Do jeito delas: vozes femininas da língua inglesa (Rio de Janeiro, 7Letras / Faperj, 2008) e Mulheres: prosa de ficção no Brasil no Brasil – 1964/2010 (Rio de Janeiro, Ibis libris / Faperj, 2011). Publicou um livro de poemas: O terceiro jardim (Rio de Janeiro, Editora da Palavra, 2006).