sexta-feira, 20 de maio de 2011

A FESTA DO LADO 7

Entrevista de Jorge Viveiros de Castro a Sonia Coutinho

A editora 7 Letras, casa de pequeno porte que ganhou nome entre as melhores do país, prepara grandes transformações em sua atuação, a fim de acompanhar as mudanças no mercado livreiro. Afinal, estamos diante da chegada forte da tecnologia digital na área do livro, prometendo trazer maciçamente um dispositivo eletrônico como veículo alternativo para a leitura. Marcando a virada, no próximo dia 31 haverá o lançamento de uma nova revista, a Lado7, com duplo formato impresso e digital, na Livraria Travessa do Shopping Leblon. Jorge Viveiros de Castro, o editor – meu editor - começou a editar livros quase menino.

SC - Jorge, você já está com a editora 7 Letras há bastante tempo, não? Há quanto tempo, mesmo? Que idade tinha, quando se tornou editor?
JVC - Comecei a trabalhar como livreiro em 1988, aos 21 anos. Fundei a Editora Diadorim em 1993, e logo em 1994 passei para a 7Letras – portanto posso dizer que sou editor desde os 26 anos, e hoje a editora está quase chegando à maioridade, com 17 anos de estrada.
SC - Fale um pouco desse percurso, lembre alguns episódios que marcaram você.
JVC - Posso dividir a trajetória da 7Letras em 3 fases. No início a editora funcionava dentro de uma pequena livraria, e comecei a trabalhar com livros em pequena tiragem, especialmente de poesia, que lançávamos na própria livraria. Nessa época fazia tudo praticamente sozinho, com a ajuda de uma estagiária.
Alguns anos depois a editora se separou da livraria e passou a publicar um número maior de títulos acadêmicos, principalmente na área das ciências sociais. Desde então o catálogo da editora foi crescendo em número de títulos e em variedade de gêneros, também com muitas coedições. Durante essa etapa a editora se profissionalizou como empresa, e passei a atuar mais no setor administrativo – ainda que sem perder o foco na questão editorial, bem como tentando não deixar de lado a paixão pela leitura.
A terceira fase teve início quando nos mudamos para a sede atual, em Botafogo, e montamos um estúdio de gravação para ampliar as experiências de criação editorial já tendo em vista a chegada das novas ferramentas e dispositivos de leitura em formato digital, que permitirão o trabalho com áudio e vídeo como complemento da leitura. De certa forma, esta fase marca também uma volta às origens, pois estamos novamente trabalhando com poesia em pequenas tiragens, agora agregando aos livros gravações em áudio dos poetas para veiculação online em formato digital.
Posso lembrar de vários episódios marcantes, como o dia em que o depósito da editora (que ficava no subsolo da livraria) inundou numa daquelas enchentes de verão e tivemos que fazer uma verdadeira “operação de guerra” para salvar os livros – contando inclusive com a inestimável ajuda do poeta Carlito Azevedo, editor da revista Inimigo Rumor e um dos principais autores do catálogo da 7Letras até hoje.

SC - A 7 Letras lançou vários dos melhores autores da nova geração brasileira. Como você se sente, com relação a isso?
JVC - Tenho orgulho da trajetória da 7Letras, e de ver reconhecido o trabalho de muitos autores em quem apostamos desde o primeiro instante, ainda quando eram inéditos.

SC - Tem alguma coisa a dizer sobre a literatura no Brasil, agora? Acha que está saudável, ou é doente terminal, como dizem alguns?
JVC - Acho que está muito saudável. Há muitos jovens escrevendo, muito mais do que na minha geração; o acesso à informação e até mesmo à leitura vem sendo ampliado com as novas tecnologias desde o surgimento do computador e da internet, e vejo com bons olhos o surgimento de escritores jovens – tanto poetas quanto contistas e romancistas – que falam (e escrevem, ou traduzem) a língua de seu tempo, com talento e criatividade. O mais difícil é a boa literatura chegar a um número expressivo de leitores, em meio a um mar de obras estrangeiras e dos gêneros de consumo rápido tipo autoajuda e similares. Mas ela existe, como sempre, e também está sendo produzida justo agora por uma nova geração que praticamente já nasceu na era da informática. Sem falar nos autores já estabelecidos e ainda atuantes. SC - Que tal essa atividade de editor? É exaustiva? É gratificante? Qual é o saldo de tudo isso, neste momento?
JVC - Ufa, confesso que tenho de parar pra pensar. É exautiva sim. É gratificante também. De certa forma parece que não saí do lugar: estou com uns três arquivos abertos aqui no fundo dessa mesma tela nesse exato momento, cada um com um livro inédito em processo de edição, como parece que passei cada dia desses quase 20 anos de atividade editorial. Posso dizer que é difícil trabalhar com livros, mas fico feliz de ter conseguido construir minha própria editora como uma casa aberta aos autores brasileiros, e vê-la hoje tão cheia de gente talentosa.

SC - Além de editor, você é escritor. Foi um precursor do chamado miniconto entre nós. Acha que conseguirá levar as duas coisas? Temos outros exemplos de editores que são também escritores.
JVC – Atualmente, o tempo da escrita parece cada vez mais raro, especialmente nessa fase de implementação dos livros em formato digital, que exige novos saberes, investigações e investimentos. Procuro não deixar de lado a leitura dos autores mais diversos – além da literatura, gosto de obras científicas, especialmente nos campos da matemática, biologia e história – para que as ideias continuem fluindo. Um dia a coisa explode e algum dos projetos literários toma forma. Ou não. Espero que sim, tenho muito material bruto espalhado em arquivos e cadernos, algumas ideias recorrentes e alguns projetos em andamento. Pelo menos não tenho dificuldade para encontrar uma editora!

SC - A 7 Letras está lançando uma revista importante, a Lado 7. Antes, você tinha a Ficções. Diga alguma coisa sobre o projeto da nova revista.
JVC - A revista Lado7 marca a entrada da editora no mundo dos formatos digitais. Além de contos, poemas e ensaios, a revista pretende ampliar o diálogo e a interação entre os diversos gêneros, convidando artistas plásticos e quadrinistas e também utilizando os recursos de sons e imagens que estão se aprimorando com as novas mídias. O mais importante é criar e expandir um campo de experimentação, aberto a descobertas – tanto de novos autores e obras quanto de novos processos editoriais.
SC - Como é que a 7 Letras se posiciona diante da chegada do livro digital? O que você pretende fazer, com sua editora, com relação a isso?
JVC - Estamos ainda engatinhando, como a própria indústria do livro. A intenção da editora é seguir com as ideias plantadas no projeto “Lado7” (e resumidas no conceito da revista), e utilizar de maneira criativa todo o repertório de recursos que ajudem a multiplicar as experiências da leitura para o maior número possível de leitores. Vejo o livro digital como um suporte a mais, um complemento para a experiência (insubstituível) da leitura em papel, e que precisa ser explorado como um terreno ainda desconhecido, com muita coisa ainda a ser descoberta e aprimorada.

CONTOS DE LUCI COLLIN

IMAGENS DESABRIGADAS

às quatro. encontrar-me-ei com ela às quatro, conforme me disse. conforme eu disse a mim mesmo. conforme mentiu. às oito estarei ainda lá esperando? e qual relógio poderá afirmar: são quatro? meu relógio é de ouro e tem até aquela corrente mas esqueço de dar corda, me esqueço da sequência das horas. quantos minutos são necessários para que cada coisa se faça? na verdade um dos ponteiros caiu há muito, muito mesmo. ficou solto ali dentro daquele visor encardido. sim, é um relógio antigo e guarda o tempo passado. todas as horas são um punhado de grãos indistinguíveis. mas sei que quando o coronel sai e bate a porta daquele jeito são três em ponto. encontrar-me-ei com ela às quatro.


conforme disse, o lugar deve ser este. conforme combinamos. mas advertiu que mentia. mas não acreditei que mentia. mas não acreditei que fosse capaz de mentir. por isso vim. por isso estou aqui. e são talvez já oito horas. não neste meu relógio indolente. nos outros relógios do mundo são oito. serão nove, quem sabe? neste relógio que observo, tendo há muito esquecido qual dos ponteiros se perdeu, o tempo é sempre um caminho impossível. conforme menti a mim mesmo ela estaria aqui, conforme eu quis acreditar que jamais mentiria. são oito. punhado de intraduzíveis. não, ela não veio. e já que sempre me esqueço a sequência das horas, não importa se está atrasada – não significa que não vem. num relógio como o meu, de ouro e com aquela corrente, quatro pode ser imediatamente depois de oito. e isso quer dizer que encontrar-me-ei com ela daqui a pouco.


na verdade ela jamais disse que estaria aqui na hora combinada. eu é que inventei um horário. ela nem tem relógio! nem relógio ela tem! como poderia combinar um encontro comigo ou com qualquer outro alguém!? dei a ela um pequenino relógio com uma delicada pulseira. ela recusou. anos atrás. jamais quis aceitar presentes. e eu sempre a insistir, reconheço! lembro-me que tive que devolver à loja aquela gaiola com o casal de canários. anos atrás. punhado de impermanências. não quis o relógio e não quis os canários e nem o chapéu lilás que ofereci e nem as luvas e nem o pequeno lenço de seda e nem o livro de sonetos e nem o terço de madrepérolas e nem aquele abajur estampado com motivos orientais e nem o jarro de porcelana pintado à mão e nem a caixinha adamascada e nem o exótico vidro de perfume e nem a estatueta de jade e nem os chás importados e nem o colar de coral. e não tendo aceito o relógio jamais poderia estar aqui na hora combinada. se chegasse, eu poderia suspeitar que um dia aceitou um relógio, delicado ou não, de algum estranho. mas não de mim.


às cinco não aguentei e descasquei uma das laranjas que iria oferecer. às seis aquele gato esquisito sentou-se aqui ao meu lado. às sete três moças passaram apressadas para apanhar o bonde e eu soltei as flores que segurava. às oito uma folha de jornal perdida foi sendo arrastada pelo vento e eu acompanhei seus movimentos sem sentido. às nove minha cabeça começou a doer e os meus pés começaram a latejar. às dez uma sirene soou e não consegui distinguir de onde vinha aquele som. às onze garrafas foram quebradas no beco. à meia-noite uma criança pequena começou um choro monótono e depois o pai da criança começou a berrar. à uma hora eu olhei para o céu. às duas não aguentei e descasquei uma das flores que iria oferecer. às três aquela folha de jornal sentou-se aqui ao meu lado. às oito cinco moças saídas de um baile passaram apressadas em direção ao vento. às nove eu soltei as laranjas que segurava e acompanhei seus movimentos sem sentido. às dez um gato começou seu choro monótono e depois minha cabeça começou a latejar. às onze não consegui distinguir aquele som que veio do beco e olhei para os meus pés. ao meio-dia o pai da criança passou apressado para apanhar as garrafas. à uma o céu monótono será quebrado mas o som será confundido com aquele da sirene. às duas meus pés pararão de berrar. às duas e trinta a criança terá virado um homem esquisito que passa em direção à folha de jornal. às três em ponto o coronel sai, meus pés, então, conseguirão partir. às quatro, conforme me disse, mentirá.
outra vez.
conforme me disse.
conforme eu disse a mim mesmo. meu relógio é de ouro e tem até aquela corrente. esqueço de dar corda. esqueço a sequência das horas. um dos ponteiros caiu. sai e bate a porta daquele jeito. o lugar deve ser esse. nos outros relógios do mundo. encontrar-me-ei.
um relógio afirmou:
às quatro.
UM PONTO SOBRE O OUTRO

Não, nenhuma palavra que dissesse ajudaria: Reva é mesmo um mistério, logo vi, quando Florine me disse: cuidado, ou melhor, quando disse: jamais compreendi Reva Frankton, eu pensei puxa, estou mesmo me sentindo diferente mesmo estou mesmo me sentindo desta vez mesmo é assim que estou mesmo me sentindo: um amontoado de dúvidas: Reva é com certeza um mistério e só existiram duas pessoas com este perfil na minha vida: Kade e Lebrec só esses dois elementos essas duas outras oportunidades me causaram tal sensação de estranhamento aquele desconforto com as cenas: mistério, mas não pelo mesmo motivo: Kade é um apanhado de silêncios, de incomunicáveis e Lebrec, bem a história de Lebrec se resume no seguinte: ausência, ausência foi a palavra dita por Herlinda para definir aquele momento em que olhamos para uma pessoa que compôs uma sequência de dias das nossas vidas (e não só sequência: também fatias quero dizer) e percebemos finalmente: nada existiu ou melhor: nada existe e então você pode me acusar de estar sob influência de Lindy (Herlinda) mas isto não é verdade eu posso lhe provar: Koci me conhece e sempre sustentou que eu tenho entendimento de montanhas, de cremes, de brancos, de não, de lentes, de sempre, de um qualquer descuidado, de qualquer pausa, de qualquer pequeno vento insistindo sobre o tecido enfim Koci com certeza diria: tem sim ou, se Koci não usasse palavras assim tão objetivas, tão diretas, tenho certeza que se faria entender mesmo que as sentenças caracteristicamente fossem indistintas e embaralhadas uma vez que Koci é o próprio embaralhamento, convenhamos, mas não é mistério, mistério está aqui: Reva, Reva Frankton é: mistério absoluto: Florine disse e isto não é novidade para mim: eu já vivi algo parecido com Kade e ainda isso: eu já vivi algo parecido com Lebrec (quando revelou seu verdadeiro nome: Liebross) todos esses fatos devem ser meticulosamente considerados eu quero, em outras palavras, esclarecer: toda vez que alguém entra na sua vida pode acontecer isto mas temos que apontar que o contrário: o contrário também acontece: o mistério pode estar no momento em que alguém sai, quero dizer: sai da sua vida, sai levando um pedaço, foi o que disse Hal: sai levando um pedaço que não se conhecia: Leb fez isso, Kade fez, e Reva está fazendo porque Reva é só isso: um mistério e no fim parece ser apenas e portanto isto: um pão que manifesta um envelhecimento, que está condenado a ser esquecido já que o dia está quente, está terrivelmente quente e neste mercado de bairro os pequenos pontos verdes podem ser vistos, os pequeníssimos pontos de bolor já se instalaram ali no pão e este pequeno exemplo ilustrativo é exatamente como: Reva e não adiantará Ryther me telefonar dizendo: esqueça, que você bem sabe que Ryther Stroy está se tornando especialista em dizer: esqueça isto, pelo menos foi o que me disse quando Hal desapareceu, quando Tamra desapareceu, quando Yem perdeu-se no mapa, quando Herlinda deu tanta corda no relógio que aquele objeto recusou-se e finalmente quando toquei no assunto: Reva é um sofisticado mistério uma vez que a virtude dos pêssegos é serem imediatos e as únicas palavras que neste momento poderiam me ajudar a compreender este tipo de pilha de cartas de baralho viradas sobre a mesa que é o meu peito agora são as seguintes:

KOZMIC BLUES

Ouvir vozes quando é um solo de guitarra é solidão. Esperar que a porta se abra. Suspirar é solidão. Não falar em corpo. Repetir o mesmo gesto. Repetir. Não saber dizer se repetiu o mesmo gesto é solidão. A paisagem igual a umidade por dentro o fogo o frio. As cores que se abandonam. As mãos que envelhecem, os toques melhores que aguardarão para sempre. A folha tombar no outono é solidão.
Microfonia.
Alguém tossindo na platéia. Ruídos num pianíssimo. Uma poltrona que range. Desafinar na noite de estréia. Sob as luzes. Desafinar em todas as noites subseqüentes. Atrasar um tempo. Comer um compasso. Estar circundado de não pode ser é solidão. Chorar no escuro.
Plagiar.
Quebrar um copo e não precisar varrer os cacos. Uma corda que arrebenta no meio da melodia perfeita. Cair de joelhos sem ter nada a dizer. Ouvir a série harmônica. Não ouvir a série harmônica. Janela de quarto de hotel. Dicionário onde se espera encontrar como se diz “eu gostaria” naquela língua remota. Varal vazio. Ritmo da colher no prato de sopa. Ouvir a própria voz compondo finais de frases medíocres. Tudo isto.
A mecânica da representação.
Seguir atentamente as coordenadas até a próxima estação e descer no lugar errado. Descer carregando peso é solidão. Escrever a própria história com mistérios. Ver ondas indo embora e esquecer que sempre cumprem voltar. Resumir as coisas da vida em uma página e meia. Pensar nas horas em que o coração existiu sendo alegria. É com certeza.
Na água que evapora, o lentamente é solidão.
O silêncio que soterra os objetos. Mantos imensos de vidro. Magma. Força da lava veloz que só se pode aceitar. O transparente que existe por si também é. Estar longe do porto de onde se parte de onde se chega de um onde. Enxergar tanta água. Catar por entre os escombros da noite o vago ainda de um sorriso. Desconsiderar que se nasce do fruto é solidão.
Cisco no olho.
Ter um medo palpável do tempo que perpetua estragos por dentro. Ter medo da resposta e da pergunta. Planta sem água. Água sem sede. Relógio sem corda. Ferida exposta. Mosca contra o vidro. Vidro de veneno. Asa quebrada é solidão. Fogo na floresta. Chave sem fechadura. Estrada que virou um labirinto é solidão.
Suor é a maior solidão.
A fome ensurdecedora não dimensionável é. Detalhes vinte cento e oitenta vezes a mesma cena. O diamante que aguarda na caixinha escura escura e o macio daquele escondido também é. O nome da coisa sem porquê é solidão. Querer aplacar as pretensões de infinito. Os restos da festa as garrafas vazias o canto da sala as sobras as flores e os copos em silêncio. As paredes impregnadas de apelos monódicos. O respirar solene um ar cansado. A pedra sobre o estar é solidão.
O maestro baixou a batuta. Pensar em como será o longe nos olhos miúdos dos pássaros. O baixista disse “três”.
Sou um lugar onde eu nunca fui.

CADERNO DE POESIA

DINU FLAMAND
TRADUÇÃO SONIA COUTINHO ANIMA MAL NATA

o vento levanta de repente um redemoinho enfumaçado
um gato caminha a passos lentos sobre o muro
pensando que talvez os pardais não saibam mais voar

leio sobre os infelizes
que herdam a anima mal nata
um sinal de nascença - mas na alma

e enquanto a confusão persiste – o fundo
da minha interioridade explodindo para fora –
prossigo com a mesma tristeza carnívora

enfrentando todos os obstáculos sem saber porquê
quando ficaria satisfeito com a sombra clara da tua axila
e o migratório triângulo em teu ventre...

PRESO

Ela chega com um cheiro de pele quente
da cama de outro
tira do cabelo um sol cheio de grama
e estende a mão
entre seus dedos a água toma a forma de um copo
enquanto ela envia para as profundezas a emoção de um beijo esquecido.

Uma felicidade amuralhada a protege do sono
como uma fortaleza
ela está impregnada de uma densa fosforescência
intangível
enquanto pulsa em minha direção
de uma distância insuportavelmente
próxima
onde me afogo em anos luz de encargos.

Eu abriria já o meu peito para recebê-la
bem dentro do meu silêncio
ruidoso
nos verdes cumes de Abril
mas nenhuma das minhas palavras a atinge
e fico à espera
preso no latido do eco vazio
que me repete.

O poeta e tradutor premiado Dinu Flamand faz jornalismo em Bucarest



NARLAN MATOS TEIXEIRA ELEGIA AO NOVO MUNDO

Tu me perguntas meu amigo
Onde eu estive durante meu longo silêncio

.........Estive na açucena das canas e na amargura dos canaviais
......................onde as folhas tremiam de medo dos homens

.........Os canaviais me sussuraram em gritos horrendos
.......................o sangue amargo que lhe adocicou a boca
.........As mãos ásperas que lhe enxugaram a face
.........O canavial que morria de fome antes de completer 27 anos de idade
.........Das vozes sem estrela que embalavam ao longe línguas estranhas
.........Ó canavial verde, de que cor é meu sangue vermelho ?
.........Meu sangue tem medo da morte do açoite da noite
.........Meu sangue tem medo de mim

Tu me perguntas meu amigo
Onde eu estive durante meu longo silêncio

.........Eu estive nos navios negreiros mercantes
.......................que mercaram meu destino até a América até agora
.........beberam minhas lendas como se bebe um barril de rum podre
........ mercaram cada estrela do céu e do mar infinito
.........cada pássaro cada pluma de meu cocar
.........e desenharam mapas com meu sangue
.........e ergueram totens sobre minha tribo
.........e atearam fogo nos campos sagrados do meu povo
.........e suas lanças me repartiram as veias em continentes distantes diferentes

Tu me perguntas meu amigo
Onde eu estive durante meu longo silêncio

..........Estive pelas escumas dos mares nunca d’antes
..........Por onde vieram a pólvora a baioneta o espelho a tuberculose a siflis
..........Por onde vieram a espada e o elmo



....................................As nuvens jamais se esquecerão disso!


No atlântico negro
Nos tombadilhos de velhos navios piratas
Nos calabouços da crueldade humana
Nas prisões da Serra Leoa – que ainda doem em alguma dobra do meu corpo
Em Angola
Na Guiné-Bissau
No Senegal
No Benin
Estive no reino da Guatemala
E na provincia de Yucatán
E na provincia de Cartagena de las Indias
E nos grandes reinos e grande provincia do Peru
E no novo reino de Granada
E nas ilhas de Cuba e Trinidad
E nos reino dos Aztecas
Onde espadas de brutalidade fenderam meu corpo nu
Onde os cães de caça dos barões das índias se alimentavam dos braços e das pernas de crianças indefesas

Tu me perguntas onde eu estive meu amigo
E somente agora posso quebrar meu silêncio:
Eu estive comigo.



O baiano Narlan Matos Teixeira é professor nos Estados Unidos, em Urbana-Champaign



HENRIQUE WAGNER AUTO-RETRATO

Entre uma cidade
e outra, os bois
comem capim.
Os homens de baixa estatura
jogam tênis de mesa
e suas esposas fazem
uma sempre cheirosa
torta de maçã.
Não é que seja importante
o tipo de recheio ou a massa
usada na torta.
Há, no entanto, no tênis de mesa,
aqueles que ganham e aqueles
que perdem. Os homens
de alta estatura vivem
pendurados feito suas gravatas,
o rosto brilhando de suor.
Entre uma cidade
e outra, o cheiro é de
silêncio mastigado
e estrume de boi. E de vaca.

PARA AMARRAR O CADARÇO
a Sarah Kane

Basta escolher mãos
pequenas e ágeis
e ler o Tesouro da Juventude
ao pé da letra.
É preferível usar
tênis vermelhos
a brancos, sempre.
Há que tirar manga
do pé e participar
das gincanas do colégio,
ainda que as mocinhas
finjam desprezo ou insatisfação.
Jamais esquecer que a mãe
faz a nossa vitamina
de banana, quando ainda
estamos bêbados de sono,
e no entanto, evitar
agradecimentos óbvios.
Encher o caderno
de dez matérias
com desenhos de monstros
nervosos e nojentos.
Fazer tudo o que possa
ser feito como se
não estivesse
usando óculos.
Deixar as calças rotas
de tanto cair no chão,
na hora da pelada,
e de vez em quando
ser chamado ao S.O.E.
Amar, distintamente, a namorada,
quando não for mais
possível amá-la
de verdade.
Porque o segredo mesmo
está na qualidade
do cadarço.



Henrique Wagner faz jornalismo cultural em Salvador

CARLITO AZEVEDO


Apresentação do livro “Mil olhos de uma rosa”

“Mil olhos de uma rosa” constitui-se, já por sua depuração verbal, já por sua recusa a qualquer tentativa de dar um sentido ao sem-sentido de nossos dias, num dos mais indispensáveis livros de contos de nossa moderna literatura. E esses dois elementos, depuração e recusa ao ilusionismo, estão no cerne de cada escolha assumida e desenvolvida por Sonia Coutinho.
A começar pelo perfil das personagens, pessoas solitárias, sem entender bem como chegaram aí (há um “Inimigo Oculto” conspirando?), sem vislumbrar como possam sair disso. Mas se a solidão é uma, muitas são suas formas (mil olhos tem essa rosa doente e contemporânea, para lembrar o poema de William Blake): ela pode nascer da exacerbação do amor, l’amour fou, capaz de levar à loucura ou ao crime; mas também surge de seu extremo oposto, a diluição do amor em amizade erótica, irresponsável, desenergizada, l’amitié amoureuse de que se fala em “Camarão no jantar”.
No conto “Joie de vivre” insinua-se que a arte, eu mundo de cores e harmonias, em especial quando se trata, como é o caso, da arte de Henri Matisse, pode ser uma fuga. Mas, em outro conto, a presença aterradora de um Joseph Beuys, encarando um coiote que é a própria América, mostra que a arte apenas aparentemente é fuga: arte é risco. E a solidão tem a espessura da pintura metafísica de um De Chirico, outra presença sutil e incontornável do livro.
Apesar da exuberância da natureza no primeiro conto, que dá título ao volume, também a onda ecológica não constitui solução. Se no conto e abertura a “narrativa vegetal” parece sobrepujar a “narrativa policial” que se esboça, já no último conto, em sutil espelhamento com aquele, nenhuma “verdade” se acende, romanticamente, da presença da natureza.
Uma última e mais radical saída seria a morte, nossa única questão filosófica, segundo Camus. Não à toa são lembradas aqui a morte de Stefan Zweig, George Eliot e, mais sutilmente, através da citação de uma casa funerária chamada “Estrela da Manhã”, a “indesejada das gentes” de Manuel Bandeira, ou à morte a las cinco en punto de la tarde, do terrível refrão de Lorca.
Mas essa solução, talvez por ser a mais fácil, também não interessa.
Talvez não haja solução, ou melhor, um dos méritos da autora é saber que não cabe à arte oferecer soluções. O que há é a beleza, a coragem para a travessia.
Estranho paradoxo da arte: com sua força corrosiva, este novo livro de contos de Sonia Coutinho nos estimula para a vida.

FUAD ATALA

Lima Barreto, persona non grata na imprensa

A vida literária no Brasil sempre manteve estreitas ligações com o jornalismo. Um exemplo marcante foi o Correio da Manhã, jornal de oposição, fundado em 1901 pelo gaúcho Edmundo Bittencourt. Perseguido pela ditadura, o jornal deixou de circular em 1974. Aberto a todas as tendências, por suas páginas passaram os grandes nomes das nossas letras. De sua redação sairam inúmeros imortais para a Academia de Letras. Foi pioneiro em muitas iniciativas, criou suplementos e lançou concursos literários.
Seu surgimento, num momento de transformações tecnológicas no mundo, foi a grande novidade da imprensa na virada do século XX. Ao contrário dos demais órgãos, quase todos praticando a chamada “imprensa de balcão”, alugada ao governo, apresentou-se como jornal independente. Sem vínculos com grupos financeiros, governo ou partidos – não obstante sendo um jornal político – que, em nome da liberdade e da justiça, “para o bem do povo e do país”, viera para combater o poder dominante e todas as formas em que sua força corruptora se manifestasse.
Edmundo era de temperamento arrebatado, que perseguia obsessivamente a liberdade e o que considerava de justiça e de direito, para o bem da nação e do povo, do qual se dizia porta-voz e defensor. Tinha uma ética e seu nome era “ortografia da casa”. Essa ortografia ia muito além da simples representação de normas gramaticais, de fidelidade a regras e princípios. Ela incluía a conduta moral perante seus ideais de purificação do regime corrompido e dos corruptos em geral.
Ficou famoso o seu index, a lista negra cujos nomes não poderiam sob qualquer hipótese ser mencionados no jornal. Em nome dessa postura, Edmundo Bittencourt cultivou muitos desafetos. Pelo grau de virulência de suas críticas, que muitas vezes derivava para a injúria e a ofensa, causaram escândalo na época suas brigas com Carlos de Laet, ex-colaborador de primeira hora do jornal, José do Patrocínio, (o “tigre da abolição”, no dizer de Joaquim Nabuco), Alcindo Guanabara e o senador gaúcho Pinheiro Machado. um de seus maiores desafetos. Tendo se batido com ele num duelo a pistola na ainda remota praia de Ipanema, depois de meses seguidos de pesadas acusações e denúncias, Edmundo, inexperiente em balística, levou a pior, saindo ferido na perna por um tiro possivelmente sem intenção letal do exímio atirador que era Pinheiro Machado.
Um dos casos mais clamorosos foi o que ocorreu com Lima Barreto. Descoberto para a grande literatura brasileira somente depois de morto, o autor de “Clara dos Anjos” teve uma vida miserável, toda feita de frustrações, privações, crises de alcoolismo e internações em hospício. Carregava ainda a amargura de nunca ter tido oportunidade de provar seu talento.
Lima Barreto trabalhou no Correio da Manhã em 1905. Atribui-se a ele a série de artigos sobre descobertas arqueológicas ocorridas durante a abertura da Avenida Central, atual Rio Branco, e a demolição do Morro do Castelo. O escritor conheceu a redação do Correio da Manhã por dentro e provou de perto das manifestações do caráter dominador de seu dono.
Em 1909, depois de enfrentar toda sorte de barreiras, Lima Barreto publicou “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, um romance à clef, com todos os ingredientes de uma vingança contra o meio que o rejeitava.
O “Isaías” é um livro áspero, amargo, escrito no estilo dos antigos romances de chave. Em suas páginas, Lima Barreto destila forte agressividade contra instituições como o Exército, do qual foi funcionário, a imprensa em geral e a sociedade, que ele tanto desprezava. Ali estão estampados também os preconceitos que alimentava, além de extravasar seu ressentimento – sentia-se discriminado por causa da cor - contra as injustiças que sofria do meio em que trabalhava.
O principal personagem do livro é o próprio Correio da Manhã, logo o jornal mais poderoso da época, do qual o escritor faz uma sátira mordaz. O romancista o descreve como “um museu de mediocridades”, a cuja frente estava um “diretor violento, mestre de descomposturas”, que “destruía reputações em nome da moral”. Ali estava o Edmundo Bittencourt que ele sentira bem próximo. Para Lima Barreto, esse diretor não passava de um “êmulo de Tartufo, corrupto e devasso”.
Os personagens foram identificados por vários pesquisadores que desvendaram a chave de “Recordações do escrivão Isaías Caminhas”. Para Gondim da Fonseca, Ricardo Loberant era Edmundo Bittencourt. Os demais personagens são quase todos do jornal.
Como era previsível, o livro foi mal recebido. A imprensa praticamente o ignorou. Quanto ao Correio da Manhã, o mais satirizado, manteve-se em olímpico mutismo, permanecendo a obra e seu autor no temível index por muitos anos. Uma postura típica do “espírito da casa”.
Em seu “Diário íntimo”, o autor acusaria o golpe. Comentando a pequeníssima repercussão na imprensa, Lima Barreto cita O Paiz e A Tribuna como os únicos que se ocuparam da obra. Quanto ao Correio, registrou: “...nenhuma linha... era esperado”.


Este texto faz parte do livro "Correio da Manhã - Réquiem para um leão indomado", em preparo por Fuad Atala, que iniciou sua carreira no jornal. Fuad foi também secretário de redação e editor de "O GLOBO", em duas oportunidades, e teve breves passagens por "Última Hora" e "Jornal do Commercio". No livro, ele traça um perfil do polêmico proprietário do “Correio da Manhã,” Edmundo Bittencourt. Fuad Atala é autor do romance “Os ratos de São Sebastião" e co-autor do livro ecológico "Floresta da Tijuca". Também escreveu monografias sobre o maestro e compositor Alceo Bocchino e as pianistas Magdalena Tagliaferro e Guiomar Novais.

A REBELIÃO DAS TINTAS


Assustado com a explosão de cores, Chico Cunha sai correndo da sua sala de aulas, na Escola de Artes Visuais, no Parque Lage.


Pouco depois, as tintas parecem que se assentaram em toda parte, mas estão calmas. E, perto da piscina, Chico arrisca afinal um meio sorriso.