sexta-feira, 30 de abril de 2010

“ATIRE EM SOFIA”

FESTA NO JARDIM BOTÂNICO






No dia 15 de maio próximo, na Associação de Amigos do Jardim Botânico, haverá uma comemoração pela nova edição do romance “Atire em Sofia,” de Sonia Coutinho, que acaba de sair pela 7 Letras. Na Casa 6 do Jardim, junto ao estacionamento, haverá um coquetel e leitura dramática de trechos do livro, pelo ator Edward Boggiss. Em entrevista ao escritor e jornalista Rubem Mauro Machado, Sonia analisa seu livro.


SoniaC. e Rubem Mauro

RUBEM MAURO: Fale um pouco do “Atire em Sofia”.

SONIA C. –O romance, antes de mais nada, fala de um verão em que uma cidade misteriosa se torna palco de aparições, assombrações. E há um assassinato cometido a várias mãos...

RUBEM MAURO – Personagens femininas são predominantes em sua literatura. É assim também em “Atire em Sofia”?

SONIA C. – Neste romance há vários personagens, muitos deles masculinos, mas o destaque é o percurso de Sofia. Na verdade, nunca antes coloquei tantos personagens num texto como aqui. Temos, por exemplo, João Paulo, o jornalista que deixa seu emprego para escrever um romance policial... Há Fernando, um advogado acomodado, que tenta preservar seu conforto, acima de tudo. E Matilde, uma mulher desesperada, que dialoga com Maria Callas... Mas, segundo o Dudu Boggiss, que fará a leitura dramática de trechos do livro, o que se pode chamar de “tema central” do “Atire em Sofia” é o preconceito.

RUBEM MAURO: Que tipo de preconceito?

SONIA C. – Há, na cidade que é cenário do romance, o preconceito contra as mulheres sozinhas, que tentam viver livremente dentro de um contexto fechado, ainda patriarcal. Na verdade, um contexto arcaico, que resiste às mudanças trazidas pela passagem do tempo. E há o preconceito contra os negros, que resistem e acabam preservando sua cultura, contraposta à cultura branca.

RUBEM MAURO – Você falou em “aparições, assombrações”. O que queria dizer com isso?

SONIA C. – Há elementos de literatura fantástica nesse livro, como em tudo, ou quase tudo o que eu escrevo. Em “Atire em Sofia,” um verão sobrenatural traz uma mistura de figuras da mitologia grega, da religião afro-brasileira, de personagens míticos da mídia. E também vemos, em recuos no tempo, cenas da invasão holandesa à Bahia e da rebelião dos negros malês.

RUBEM MAURO – Muita gente considera você fundamentalmente uma contista. Como aconteceu de você escrever esse romance, o seu primeiro, salvo engano?

SONIA C. – Na verdade, eu já tinha escrito uma novela ou romance curto, como queiram, que é “O jogo de Ifá”. Mas tinha a ambição de escrever uma narrativa, digamos, de fôlego ainda maior. Para escrever “Atire em Sofia” fiz um pouco o que faz no livro o personagem João Paulo. Saí do Rio, deixei o jornal, passei um ano em Salvador, morando num apartamento quase vazio. Pesquisei muito. A cultura afro-brasileira, a história da Bahia, mitologia grega, biografias.

RUBEM MAURO – Está contente com o resultado?

SONIA C. – Acho “Atire em Sofia” um livro muito louco, mas também muito criativo. Acho que o livro é envolvente, fácil de ler.

RUBEM MAURO – Você o considera um romance policial?

SONIA C. – Não, definitivamente não. Eu diria que, em certa medida, é um “romance de crime”, uma classificação consagrada. Na verdade, pesquisei muito também o romance policial, fiz uma dissertação de mestrado na Escola de Comunicação da UFRF sobre o policial de autoria feminina. “Atire em Sofia” tem uma influência de tudo isso, mas é também, como vimos, uma narrativa com um clima bem fantástico. E há o aspecto psicológico, os personagens refletem muito...


LÁGRIMAS DE IANSÃ




Numa cidade cujo nome jamais é dito, mas tudo indica tratar-se de Salvador. Três tiros ecoam entre os atabaques do candomblé, dezenas de mãos apertam o gatilho. É um verão esquisito; calor febril intercalado por tempestades furiosas como lágrimas de Iansã, na cidade mestiça magnetizada por superstições, paixões, fatalidades.
Uma morte misteriosa fere a cálida estação: a vítima, Sofia do Rosário, retorna para a cidade natal depois de vinte anos no Rio de Janeiro. Ela é uma mulher divorciada e emancipada; uma mulher madura e sensual, que inspira temor e fascínio nos homens. Temor e repulsa na cidade, que não sabe lidar com sua figura desafiadora.
Despida de idealizações, ela enfrenta os percalços de viver a própria liberdade, com toda a solidão que essa escolha implica.
Sofia busca uma trégua na rotina de reportagens sem fim, contas a pagar, noites solitárias no quarto e sala de Copacabana. Na Bahia, as filhas Maura e Milena, que ficaram com o pai, resistem à reaproximação. Lá, ela reencontra João Paulo, que abandona o Rio para escrever um romance policial. Fernando, o amigo de infância que ficou na cidade, ajuda a montar o quebra-cabeça das últimas décadas.
Sonia Coutinho rompe mais uma vez os tabus da “literatura feminina,” retratando uma geração de mulheres que desafiam a lógica dos papéis tradicionais – e se debatem entre a educação repressora e o apelo da liberação. Sua escrita sensível cria um romance de crime e magia com tintas muito brasileiras, intenso e eletrizante como o ritmo do candomblé.

- Texto da orelha do “Atire em Sofia”


A ESFINGE, GATA E PANTERA



Fotomontagem de Jorge de Lima


Ao voltar, ao meio dia em ponto (hora de passagem, ele pensou depois, como a meia-noite), passou de carro pelo Largo do Bonfim, olhou em direção à igreja e viu no adro a mulher-leão alada, sereia terrestre, a Esginge que cantava, propondo seu enigma no dia sombrio, com um céu de nuvens baixas que se movimentavam velozmente, como se fossem impulsionadas por um vento forte,enquanto em terra a brisa parara de soprar e tudo se imobilizara.
Hipnotizado, Fernando desceu do carro e caminhou na direção dela pela rua deserta. Num segundo, a Esfinge se transformou em princesa, fada, ovelha negra, cadela, gata, pantera, em Iemanjá, numa mulher. Que, ávida de sangue sexo, aproximou-se dele e o derrubou, sentando-se em cima do seu corpo.

- Na contracapa do livro

EDWARD BOGGISS

DUDU ENTRE TEATRO CINEMA E TV



Principais Trabalhos em Cinema

Longa - metragem: “ÚLTIMA JUVENTUDE” de Domingos Oliveira, com Paulo José, Aderbal Freira Filho e Domingos Oliveira, personagem: Valdecir; “Pela Passagem de uma Grande Dor” de Felipe Rodrigues, com Juliana Knust, Gisele Lima, Rosina Lobosco, Pitty Webo, Thiare Maia e Isabella Meirelles. Protagonista personagem Lui; “Canta Maria” de Francisco Ramalho Jr, com Marco Ricca, Vanessa Giacomo e José Wilker. Protagonista personagem Coriolano; “CAMINHO DOS SONHOS” de Lucas Amberg, com Elliot Gold, Talia Shire e Tais Araújo. Protagonista personagem Mardo *Indicação ao Kikito de Melhor Ator no Festival de Gramado;
Curta - metragem: “NAMORADA TRISTEZA” de Felipe Rodrigues, com Caio Junqueira e Esperança Motta. personagem João; “S.O.M.” de Nilza Rodrigues, com Fernanda Badaue. personagem Lucas; “O CABEÇA DE COPACABANA” de Rosane Swartman

Principais Trabalhos Televisão - Rede Globo

“O PROFETA” direção Mario Marcio Bandarra, núcleo Roberto Talma, personagem Pelópidas; “COMEÇAR DE NOVO” direção Carlos Araújo, núcleo Marcos Paulo, personagem Anselmo Jovem; “SANDY E JUNIOR” (1ano) direção Paulo Silvestrini, núcleo Carlos Manga, personagem Tony; “LAÇOS DE FAMÍLIA” direção Ricardo Waddington, núcleo Ricardo Waddington, personagem Rafael; “ESPLENDOR” direção Mauricio Farias, núcleo Wolf Maia, personagem Otávio; “SABOR DA PAIXÃO” direção Denise Saraceni, núcleo Denise Saraceni, personagem Mike; “MALHAÇÃO” (1 ano) direção Flávio Colatrello Jr., núcleo Roberto Talma, personagem Caio;
Rede Record - “CHAMAS DA VIDA” direção Edgar Miranda, Roberto Bomtempo e Rudi Lagemann personagem Diego Cunha.

Principais Trabalhos em Teatro

“YOLANDA” de Alexandra Garnier direção Ernesto Piccolo com Teuda Bara, Catarina Abdala e Maria Maia personagem João Paulo; “LENDAS E PARLENDAS” de Rogério Blat, direção Ernesto Piccolo. Monólogo personagem Matuto; “BEIJOS DE VERÃO” de Domingos Oliveira, direção Eduardo Wodzik, personagem Narciso; “TRAINSPOTTING” de Harry Gibson, direção Luis Furlanetto, personagem Tommy; “NOTA 10” direção Ricardo Blat, personagem Tito; “Oficina de Criação de Espetáculo” direção Ernesto Piccolo e textos Rogério Blat (8 anos/10 peças) *13 Prêmios e 19 indicações: “COM O RIO NA BARRIGA” personagem São Sebastião; “O FUTURO ERA HOJE” personagem Sebastian, “DNA BRASIL, o musical” personagem Mauricelio;

Trabalhos como Diretor e Produtor

Cinema- longa-metragem “Pela passagem de uma grande dor” produtor executivo; curta-metragem “ALICE” produtor e diretor
Teatro- “DÁ UM JEITINHO AI!” diretor; “PAGANDO MICO” diretor; “Os Saltimbancos” diretor, supervisão Chico Buarque; “O DINHEIRO É O TERROR!” diretor e produtor; “LENDAS E PARLENDAS” produtor; “Gato de Botas Vermelhas” diretor e produtor *Evento beneficente de natal para 2000 crianças carentes no Teatro João Caetano; “BRASILEIRO NO CAMINHO DA DESESPERANÇA” diretor e produtor;
Shows- “PRELÚDIO 21” 3 concertos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, diretor; “LOUCOS POR MÚSICA 3 – 4 – 5 – 6” produtor e diretor assistente, com Maria Bethânia, Ana Carolina, Alcione, Ivone Lara, Beth Carvalho, Zélia Duncan, Dudu Nobre, as Cantoras de Radio, Sandra de Sá, Luis Melodia, Geraldo Azevedo, Gabriel o pensador, Forroçacana, Preta Gil e Jorge Vercilo; “Pela Palavra” diretor assistente, com Jorge Simas; “TRADIÇÃO” diretor assistente, com Daniel Gonzaga e Bena Lobo;

INVISIBILIDADE

Conto de Sonia Coutinho

Fotomontagem de Sonia Coutinho


A progressiva experiência da invisibilidade.
Que começou para ela certa tarde, durante uma conversa com um velho amigo, com quem costumava beber Martinis.
Enquanto observavam a arrebentação, num bar de praia no Leblon, ela pegou sua bebida, levou-a em direção aos lábios.
Foi quando olhou casualmente para sua mão e percebeu que segurava a taça com um polegar invisível.
Apenas o polegar, verificou, depois de um rápido e aterrorizado exame em todas as partes do seu corpo não cobertas pelas roupas. A outra mão continuava perfeita, assim como os braços.
Também o rosto, que ela espiou no espelhinho do estojo de pó compacto, tirado rapidamente da bolsa. Olhos, boca, nariz, tudo no mesmo lugar e bem visível.
Quanto ao polegar, se não o sentisse, se não visse que cumpria diligentemente sua função de segurar a taça de Martini, ela diria que fora cortado com o cuidado de um cirurgião, sobrando apenas o coto.
Mas não ousou, de imediato, fazer nenhum comentário a respeito com seu amigo, talvez fosse algum tipo de ilusão sua. Ficou à espera de que ele próprio notasse alguma coisa – ou não.
Para sondá-lo, estendeu as duas mãos em cima da mesa, aguardou, mas o amigo lançou para elas apenas um olhar distraído, sem dizer nada. Será que ele estava vendo seu polegar? Será que o dedo era invisível apenas para ela?
Ou o amigo, simplesmente, não notara o sumiço por causa da sua proverbial distração? Ela preferiu não investigar mais nada.
Decidiu esquecer, pelo menos momentaneamente, o vazio no lugar do seu dedo. É apenas um polegar invisível, disse mentalmente a si mesma, tentando consolar-se. Não significava tanto assim.
Apenas um polegar, e continuava cumprindo sua função, repetiu para si mesma, mais tarde, já de volta ao seu apartamento.
Imaginou se procuraria ou não um médico, no dia seguinte. Ou seu psicanalista. Talvez um sacerdote, de que tipo de culto não sabia.
+++
No dia seguinte, quando se levantou da cama e foi ao banheiro, reparou imediatamente que seu seio esquerdo também desaparecera.
Cambaleou até o sofá da sala, onde permaneceu o resto da manhã cogitando.
Não almoçou e, à tarde, quando afinal tomou coragem e se aproximou da parede coberta de espelho da sala, viu que seu olho direito também sumira.
Percebessem os outros ou não, não tinha coragem de sair de casa se sentindo assim, concluiu, num relance.
+++
O desaparecimento completo do que ainda sobrava do seu corpo aconteceu à noite, enquanto dormia.
Na manhã seguinte, quando foi mais uma vez até o grande espelho na parede da sala, viu refletida apenas a camiseta de malha com que dormira, flutuando solta no ar.
Em seu desespero, decidiu fazer um teste – precisava saber se a invisibilidade era um problema só da sua visão, ou não.
Tirou a camiseta e pediu pelo interfone, que subisse ao seu apartamento alguém da portaria, precisava trocar uma lâmpada.
Minutos depois, ouviu a campainha tocar, abriu a porta – e o homem fez uma cara perplexa. Entrou, deu alguns passos, uma olhada geral no apartamento. Depois, bateu cuidadosamente a porta e se foi. Pelo olho-mágico, viu quando ele entrou no elevador.
Alguns minutos depois, o interfone tocou, devia ser o porteiro, ligando de baixo, para saber se havia algo anormal, mas ela não atendeu e ele não insistiu.
Mas então era verdade, tornara-se mesmo invisível.
+++
Sentada outra vez no sofá, meditou tristemente sobre os possíveis motivos da sua invisibilidade. Uma tendência antiga fez com que logo atribuísse a culpa de tudo a si mesma.
Claro que a responsabilidade só podia ser sua. Isolou-se demais, tinha esse gosto incurável de ficar olhando o próprio umbigo.
Ainda mais ultimamente, desempregada, vivendo de algumas economias, sem nada que a obrigasse a sair de casa.
E essas coisas não são vividas assim gratuitamente.
Um dia a pessoa pode acordar e verificar, por exemplo, que seu braço direito se tornou invisível.
Sim, a pessoa continua a sentir o braço, como se estivesse exatamente no lugar, a pessoa é capaz de usar os dedos da mão, pegar qualquer objeto com ela – mas está tudo apagado.
+++
Nos dias seguintes, permaneceu trancada em seu apartamento, sem que ninguém aparecesse para tirá-la dali. Com a família inteira morando em outra cidade, sem namorado, pouquíssimas amigas, ninguém veio procurá-la.
O telefone continuava a tocar, mas não atendeu. Chegaram e-mails, nada urgente, respondeu a alguns.
Tinha um suprimento de comida que duraria pelo menos uma semana, então ficou cozinhando no apartamento mesmo, em vez de sair para comer em restaurantes a quilo, como costumava fazer.
+++
Na terça-feira, quando a faxineira tocou a campainha, ela continuou imóvel no sofá. Ouviu-a tocar repetidas vezes, até que, afinal, desistiu.
De baixo, o porteiro chamou pelo interfone – e depois, silêncio.
+++
O tempo passava, longas horas lembrando seu cotidiano nos tempos em que podia ser chamada de uma mulher normal. Sim, humilde e alegremente, uma mulher solitária, sem nenhuma importância, mas visível.
E agora, assim invisível, estaria morta? Será que a invisibilidade era a morte? Teria entrado em estado de fantasma?
Lembrou as pessoas que conhecia e morreram; mas, na verdade, de uma forma ou de outra sempre evitara aprofundar-se no assunto.
Com a típica má fé humana que costumamos empregar para continuar a nos divertir um pouquinho nesta vida, ela conseguia sempre ausentar-se.
Pouco antes de morrer de câncer, houve um dia em que ela chorou diante da família inteira. Mas ela, menina ainda, virou o rosto e logo seus pais a levaram de volta para casa.
E quando morreu a velha empregada que a criara, e que tinha trabalhado para sua família de uma geração a outra, ah, ela estava em outra cidade, o máximo que aconteceu foi ter uma rápida explosão de choro e acabou esquecendo ou quase.
Então o problema era que, agora, nem sabia direito como era estar morta.
Mas logo concluiu que invisível, sim; morta, não. Claro que ela continuava viva e tinha até tanto apetite, comia incansavelmente o que restava na geladeira, e ia ao banheiro fazer suas necessidades, continuava capaz de falar. Morta, não.
+++
No entanto eu já fui visível, no entanto eu era até bonita, pensou, desesperada, em seu quinto dia de invisibilidade. No entanto, houve homens que me disseram que eu era linda, a única mulher que amaram em suas vidas.
Num súbito impulso, foi ao telefone, ligou para o escritório de um daqueles homens e disse de um só jato que aquela sua antiga oferta de amor fora maravilhosa, lástima não ter podido aceitar.
Desligou deixando-o ainda mudo de espanto e foi até a varandinha da sala, pensando se não seria melhor atirar-se lá embaixo e acabar com aquilo.
Mas logo se conteve e fechou a porta de vidro.
+++
Tirou toda a roupa e se deitou no chão da sala.
Viu, de repente, dezenas de gatos que saíam da porta da cozinha e se aproximavam dela.
Eram de várias raças, algumas requintadas – gatos persas, angorás – mas também havia simples gatos vira-latas, embora bem alimentados e com o pêlo brilhante e limpo.
Vinham miando baixinho, cada qual num tom diferente, os olhos arregalados. Chegavam até seu corpo invisível, esbarravam nele e começavam a miar mais alto, lamentosamente.
Batiam as patinhas contra seu corpo, sondando o obstáculo invisível, que acabavam por lamber, com suas linguinhas ásperas.
E mais gatos entravam pela porta da cozinha, atropelando-se. Deviam ser centenas, calculou, ali estirada no chão, vendo a sala através do reflexo na parede de espelhos.
Os gatos acabavam por contornar seu corpo espichado e nu, iam aglomerar-se embaixo da mesa envernizada de verde, subiam no sofá, ou ficavam agitando as persianas verticais. Depois, seguiam pelo corredor, invadiam o resto do apartamento.
E agora, de repente, como se atendessem a um silencioso aviso, todos os gatos voltaram correndo para a cozinha, comprimindo-se uns contra os outros, e desapareceram.
+++
Levantou-se, caminhou pelo apartamento vazio, foi até sua escrivaninha, pegou um cigarro e o acendeu, tentando reencontrar sua identidade quase perdida, depois de tantos dias sem rosto. (Um CD, no aparelho de som, trazia uma sinfonia de Mahler.)
+++
Depois de uma semana de reclusão, num abafado domingo de sol, ela ficou um longo tempo espiando, da sua varanda, a nuvem amarela de calor que cobria quase inteiramente a Pedra da Gávea, ao longe, deixando porém a descoberto o estranho cume em forma de martelo.
E então virou-se para a sala – e reviu na parede de espelho, com um susto de redescoberta, seu magro corpo nu e um rosto pálido e envelhecido, um rosto afivelado em cima de muitos outros, como a penúltima máscara. Um rosto já feio, talvez, mas era o seu, então o recebeu de volta, com uma gratidão triste.
Seu velho rosto visível, portanto foi até o banheiro, pintou os lábios de um vermelho vivo, pôs os brincos de pingente, penteou o cabelo e se sentou por alguns instantes à mesa da cozinha, para fumar mais um cigarro, antes de sair, afinal, para dar uma volta, depois daquelas férias trancada em casa.
Pegou o elevador, desceu até a garagem do prédio, entrou em seu carro e seguiu para tomar um Martini no Leblon, onde a praia estava cheia como nunca, naquele tedioso domingo de visibilidade, como tantos outros.

CADERNO DE POESIA

RUY ESPINHEIRA FILHO



CINCO POEMAS DE SOB O CÉU DE SAMARCANDA

(Bertrand Brasil, 2009)


CANÇÃO DO EFÊMERO
COM PASSARINHO E BRISA


É tudo mesmo bem pouco,
pois só há pouco me vi
chegando aqui e encontrando
o que nunca compreendi
— tanto que, perplexo, tanto
duvidei de estar aqui.
E nunca acreditaria
se não fosse um passarinho
afirmando: bem-te-vi!

Ainda escuto o seu trinado
garantindo-me o existir.
Mas precária garantia,
como aprendi com a brisa
de que se compõe o dia:
se o tempo passar um pouco,
nada mais que um pouco, logo
não estarei mais aqui.


EPIFANIA

Alguns anos não consigo
deixar nas águas do Lete:
os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete.
Muitas coisas se afogaram,
e rostos, e pensamentos,
e sonhos, e até paixões
que eram imortais...
Porém,
os meus magros dezessete
e os teus catorze morenos
não entram nem em reflexo
nesse Rio do Esquecimento.

Que magia nos levou
a um espaço e a um momento
para que de nós soubéssemos:
tu, meus magros dezessete;
eu, teus catorze morenos?
Que astúcia do Imponderável
nos abriu aqueles dias
que permanecem tão claros
como quando nos surgiram?
Eu não sei. Mas sei que a vida
nunca mais me foi vazia.

Como não foi fácil, nunca,
por tanto me visitarem
os Arcanjos da Agonia.
Pois, se fui iluminado
por estarmos lado a lado
— os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete —,
seria fatal que também
viesse a sentir a alma
em chagas multiplicadas
por setenta vezes sete.

Ah, os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete!...
Quanto sofrimento fundo
— mas quanto sonho profundo
e alto!
Que belo mundo
foi-me então descortinado,
porquanto me era dado
o privilégio preclaro
de penar de amor no claro,
no escuro, em todas as cores,
em todos os tons da vida,
dia e noite, noite e dia,
varrido ao vento das asas
dos Arcanjos da Agonia
(que eram, por algum prodígio,
os mesmos da Alegria!...).

Ah, que por mim chorem flautas,
pianos, violoncelos,
as cachoeiras, os céus
comovidos dos invernos...
Chorem, chorem, que mereço
essas lágrimas, porque
tudo sofri no mais pleno
de paraísos e infernos.
Que chorem...
Mas eu, eu mesmo,
não choro... Como chorar,
se mereci essa dádiva
de um amor doer na vida
por setenta vezes sete
mais que qualquer outra dor,
mais que qualquer outro amor?
Só me cabe agradecer,
pois a vida perderia
(e, o que ainda é mais cruel,
sem nem saber que a perdia...)
se não provasse os enredos,
insônias, febres, venenos
que em meus magros dezessete
acendeu a epifania
dos teus catorze morenos!


OS HERDEIROS

Os de antes do asteróide
(ou do cometa, talvez)
deixaram seus grandes ossos
como uma vasta memória.

Nós, não deixaremos nada.

Porque a vida que vier
(como a que remanescer)
não terá arqueologias,
paleontologias e afins.
Como não tem a barata
como não tem o lagarto,
como não tem a lacraia,
nem o grilo, o gato, o rato,
a minhoca, o percevejo,
o ornitorrinco e o pato,
ainda menos a ameba,
entre outros mansos de espírito
que herdarão toda a Terra.

Assim, nada falará
desses milhares de anos
de agitações tão insanas
— inúteis, cruéis, humanas.
E tudo será apenas
vida a viver-se sem Tempo,
sem deuses, sem alma, sem
leste, oeste, norte, sul
— na esfera que vai girando,
girando... Ainda mais azul.



SONETO DO NOME


A noite vem do mar cheirando a cravo.

Sosígenes Costa


A noite vem do mar e traz teu nome,
que há muito tempo já não pronuncio.
Sonoro, ele revoa no vazio
de mim, sobre meus lábios. O teu nome

vem do mar nesta noite e me consome
mais uma vez. Reinventa, em chama e frio,
uma cidade em que nada é vazio,
pois em tudo há o perfume do teu nome.

E agora a lua vem beijar-me o rosto,
e é também teu perfume, que consome
a treva em minhas velas de sol-posto.

Sob esta luz o mundo inteiro some:
só há o luar compondo em mim teu rosto,
e o mar, que arde no aroma do teu nome.



SONETO DO SINO E DO TEMPO

Ouvir um sino é como abrir o tempo.
O tempo nítido de uma cidade
ornada de andorinhas e silêncio.
Um tempo que se estende desde o alto

das casuarinas às vagas colinas
em que morre o horizonte e onde um tesouro
de esperanças oferta-se em caminhos
vastos de amores, glórias, ilhas de ouro.

Respirar esse tempo é azul e calma
sobre quintais, varandas, cães, meninos
e meninas serenas e de tranças,

e sonhos de distâncias e destinos
em nós adormecidos e acordados
por esse dia aberto à luz de um sino.


KÁTIA BORGES



Cantiga

Minha avó era cega. Dela, herdei a capacidade
de ver sem usar os olhos. E a paixão por uns sambas antigos.
Minha avó era alta. Os cabelos muito lisos e compridos envolviam a cintura. Eram penteados com cuidado, todas as tardes,
e presos em um coque. Os vestidos, de tecido barato, quase cobriam os pés.
Minha avó contava histórias de assombrar, ensinava a amar certas canções e fazia predições todo final de ano. Eu fugia com medo do futuro, e me escondia no quarto. O presente me bastava com seus fantasmas e as notícias do mundo no Fantástico.
Minha avó gostava de beber aperitivos, de mascar fumo e de me ouvir cantar uma música de um português chamado Hermes Aquino.
Poucos se lembram dele. Poucos se lembram dela. Poucos se lembrarão de mim.
Minha avó era cega. Dela, herdei a capacidade de ver sem usar os olhos


HENRIQUE WAGNER



A história decalcada

Era branco de medo e tímido sorria,
os olhos desbotavam atrás da vidraça.
Mal começava a noite e era bem-vindo o dia,
como quem espera a vida e por sobre ela passa.

O tempo medicava enquanto o sol gemia,
e as coisas só viviam onde havia praça.
Portanto, minha casa era grande e vazia,
e apenas uma voz crescia, firme: “Faça

isto! Não faça aquilo!”. E eu não fazia nada.
Viver era somente espirrar, quando inverno,
e todos me pediam, alto, que sorrisse.

Coloria meus olhos a história contada
nos livros de aventura. E eu enchia o caderno
com os diversos tamanhos – alados – de Alice.


Volta às aulas

Acabo de voltar a minha casa.
É tudo o que aprendi, é o que mais faço:
voltar e dar mil voltas. E se atrasa
o trânsito a partida, apresso o passo.

E ainda que meu corpo um dia jaza:
no meio do caminho faz-se um paço,
a volta ao mundo vivo, ardente, em brasa,
do corpo despelado e sem cansaço.

Parece que lá fora não sou mais
que um mísero passante que não faz
senão buscar as horas em seu pulso.

Parece que o que faço é andar atrás
do aluno tão correto que jamais
da escola conseguira ser expulso.


De olhos fechados

A escuridão de não poder te ver
parece feita de uma estranha luz:
de muita dor e de irreal prazer,
que à imensidão e a meu papel conduz.

Escrevo tudo o que me faz reler
em cada verso de canções azuis,
a natureza de um real Monet
e a tua ausência, que inda me seduz.

Pois foi por ti que me guiei no escuro,
e se é verdade que inda te procuro
é porque vives, bem no fundo, em mim.

Se nesta febre de viver aceso
eu me encontrar a ti, eterno e preso,
é que cheguei por onde outrora vim.


Tua casa

Primeiro o muro alto,
depois as gelosias.
Então as gárgulas de pedra,
a aldrava,
a porta.
Mísulas queimando a noite
com seus cinábrios vermelhos
a despertar o verde
musgo do vestíbulo.
Até entrar em tua casa,
o sentimento novo
de que se trata de um antigo casarão
que eu supunha conhecer.
Dentro da casa descubro teus seios
e as pedras lavradas em estilo gótico,
com ogivas rosáceas entalhadas.
Respiro na relva
o cheiro de bicho caçado
- e a casa se enche
de interiores.


O baiano Henrique Wagner é poeta e contista, e faz jornalismo cultural, escrevendo sobre atividades várias, como cinema, música erudita, literatura, artes visuais. Publicou os livros de poemas O grande Pássaro (1996) e As horas do Mundo (2001), este pelo Selo Letras da Bahia. Em 2005 lançou o livreto A linguagem como estética do pensamento, ensaio sobre a filosofia da linguagem em Lacan, a partir de Wittgenstein. O livro foi editado pelas Edições Paideuma. Nasceu em Salvador, Bahia, ao dia 16 de maio de 1977. Atualmente assina duas colunas sobre arte no site www.expoart.com.br Autodidata, diz que sua formação tem sido a leitura dos clássicos e a convivência com os anônimos personagens da vida cotidiana.