quinta-feira, 9 de setembro de 2010

SONIA COUTINHO

Tela de Adriana Cangalaya


A PAIXÃO DA MULHER BARBADA

Vou contar, Solange.
Uma história de imensas improbabilidades.
Digamos que alguém viaja para Lhasa e, dentro do Potala, encontra um amigo que não via no Rio há mais de vinte anos.
Nenhum dos dois esperara jamais ir ao Tibete mas, por motivos inteiramente inesperados e casuais, acabaram indo.
Os amigos passam a imaginar que existe algum tipo de elo misterioso unindo suas vidas. Que um golpe inesperado do destino, atingindo ambos, será desferido a qualquer momento.
Então, quando voltam para o Rio, telefonam-se regularmente durante anos, aguardando com temor o Acontecimento Apocalíptico.
a)Até que uma Coisa Incrível acontece.
b) Até que nada acontece, nunca.
É mais ou menos assim, Solange, a história da Mulher Barbada e do Trapezista do Outro Circo.
Talita e Jancsi, assim se chamam.
(Ela me explicou: soa Iante, mas se escreve Jancsi, a família dele é húngara, embora eles morem há muitos anos em Bhagsu, uma vila perto de Dharamsala, onde está refugiado o Dalai Lama.)
Um homem, uma mulher. Uma separação e um reencontro, muitos anos depois.
Sim, a mesma história. A que conto sempre.
Mas cada dia os personagens usam máscaras e fantasias diferentes.
+++
O dia começou com a voz de Adriana Calcanhoto cantando no rádio.
“Com o que será que sonha/ A mulher barbada?/ Será que no sonho ela salta, como a trapezista?/ Será que sonhando se arrisca/ Como um domador?/ Vai ver ela só tira a máscara/Como o palhaço.
O que será que tem/ O que será que hein?/ O que será que tem a perder/ A mulher barbada?”
E, às nove em ponto, Talita tocou a campainha. Abri a porta e viemos para este quartinho onde boto cartas. Ela se sentou onde você está, à minha frente.
E agora faço um jogo, Solange, para me inspirar. Uma a uma, coloco entre nós, em cima da mesa, cinco cartas do meu Tarô formando uma cruz.
A Força. O Enforcado. A Lua. Os amorosos.
A quinta carta, a ser posta no centro da cruz, quando a vejo me assusta: A Roda da Fortuna.
Mas não se preocupe, Solange. Não estou lendo sua sorte, sei que você não gosta.
É apenas uma brincadeira.
Através dessa janela, vi os pombos voarem entre as muralhas de prédios, num ameno céu de setembro, em Copacabana.
E arrumei na mesa as cartas do Tarô, enquanto Talita me contava que se apresentara, durante anos, como mulher barbada de um circo.

Mas nada, em sua aparência naquele momento, deixava adivinhar isso.
Ela era como o resto das minhas clientes: uma mulher de classe média, meia-idade, bem vestida. Nenhuma barba visível. Nem feia nem bonita, talvez um pouco gorda.
+++
Sempre amei o Tarô, Solange, mas nunca imaginei que fosse virar uma fonte de renda indispensável para mim.
Eu era professora, você sabe, mas me aposentei ainda jovem. E, em vez de dar cursos particulares, como minhas amigas sugeriam, virei cartomante.
No começo, jogava cartas de graça, para conhecidos. Hoje, cobro de todo mundo, sem constrangimento, virei profissional.
E fico sabendo da vida de muita gente, principalmente de mulheres.
Como Talita.
Nunca ligo o rádio do meu aparelho de som, mas naquele dia liguei. “Mulher barbada”, cantou Adriana Calcanhoto.
E a música atingiu profundamente alguma coisa dentro de mim. De primeira, registrei mentalmente, cada palavra da letra.
Pouco depois que a Calcanhoto acabou de cantar, fui ociosamente até minha estante, tirei um livro qualquer e o abri ao acaso.
Era um volume das obras completas de Kafka e na página aberta estava um conto que amo, “Um artista do trapézio.”
Pouco depois, quando conversei com Talita e ela me contou que fora mulher barbada e amava um trapezista, senti um calafrio. A música, o conto, de Kafka, eram prenúncios, pensei. Mas do quê?
+++
Talita veio aqui porque queria saber se, algum dia, o Trapezista Jancsi voltaria ao Brasil, como lhe dissera em muitos dos e-mails que lhe mandara.
Ou, pelo menos, queria saber se ele voltaria para Paris, onde ela o conhecera, muitos anos antes.
Estava preocupada porque, na véspera, recebera um e-mail no qual ele contava que se afastara do seu circo e voltara para o vilarejo hindu onde nasceu.
Demitido do circo? Aposentado? Talita não sabia, ele nunca revelava nada com clareza.
E, se ela se permitia sonhar que o reveria em Paris, sabia que ao Himalaia não iria nunca.
Em certo momento, Talita revelou que Jancsi tinha um assunto pendente no Rio. Dinheiro para receber, de apresentações, e não queriam pagar.
Um amigo de Talita, advogado, cuidava disso.
Será que ele mantinha a correspondência com Talita apenas por interesse?, indaguei imediatamente a mim mesma, cética que sou.
Parecia estranho, considerando tudo, o fato de Jancsi ter escrito para ela durante quase dois anos.
Precisaria apenas de uma pessoa para solucionar suas questões profissionais? Estaria vaidoso com a declarada paixão de Talita por ele?
Ou também sentia alguma coisa por ela?
Não sei, Solange. Não saberei nunca. Talita também me disse que nunca saberá.
+++
Quer que eu continue? Então, vamos.
Recapitulo: ainda jovem e barbada, Talita foi a Paris com seu circo, então muito conceituado. E lá conheceu o Trapezista Jancsi, um rapaz alguns anos mais novo do que ela e muito bonito.
Conversavam longamente e Talita se encantou por ele; mas nada aconteceu entre os dois.
O inesperado e casual reencontro deles, 25 anos depois, numa esquina de Copacabana, deflagrou a paixão de Talita.
Em parte, como ela me explicou, por uma crença irracional de que voltaria ao passado através de Jancsi, de que recuperaria sua juventude.
E ela também viu o Dedo do Destino num reencontro tão improvável.
Eles se encontraram algumas vezes, aqui em Copacabana, mas o Trapezista já estava com viagem marcada de volta a Paris e ficou apenas mais três semanas no Rio.
Antes da partida dele, Talita falou dos seus sentimentos: “Não sei que nome dar a isso.”
Mas sabia que tinha poucas chances. Era uma mulher barbada diante de um belo e ainda muito bem apessoado Trapezista.
Depois da partida de Jancsi, Talita mudou de vida. Abandonou o circo, fez um tratamento a laser para tirar os pêlos do rosto e arrumou um emprego de secretária numa grande firma, graças às línguas que aprendera em suas viagens circenses.
Atualmente, como eu, ela mora aqui em Copacabana, no Posto 4.
+++
Explico um pouco mais, Solange.
Na verdade, a barba de Talita nunca foi tão espessa quanto aparentava no circo, ela me disse.
Tinha no rosto apenas fios ralos, que reforçava, para suas apresentações, com a aplicação de chumaços postiços.
Se entendo de circos? Nada, ou quase nada.
De trapezistas, só sei o que aprendi naquele conto de Kafka, tão cheio de uma louca e inexplicável nostalgia.
Também sei pouco sobre a própria Talita. Por que ela, filha de uma família de classe média da Tijuca, moça com alguma cultura, acabou mulher barbada de um circo? Ignoro a resposta.
Aquele primeiro dia, a consulta de Talita foi curta e não lhe disse nada conclusivo, só falei que era preciso tornar a botar o Tarô.
Quando já nos despedíamos, movida por uma intuição repentina, declarei:
- O Trapezista voltará, sim, mas talvez as circunstâncias não sejam como você gostaria.
E fechei a porta.
Tempos depois, Talita veio aqui e confirmou minha profecia. Sim, Jancsi reaparecera, estivera no Rio com um circo indiano.
E, quase 30 anos depois do primeiro encontro, foram afinal para a cama.
Foi quando Talita descobriu que não tinha verdadeira atração física por ele, sua paixão era uma coisa mental, nada a ver com sexo. Ela me revelou: era como acontecera, durante toda sua vida, em seus relacionamentos com os homens.
Perguntei se sentia atração por mulheres e Talita admitiu que sim, mas tudo num plano fantasioso. Nunca acontecera nada de concreto.
E então ela declarou que preferia , àquela altura, a solidão. Não se arriscaria a novos amores, teria apenas amizades, fosse com homens ou mulheres.
Mas não sei se devo acreditar nisso. Naquele dia mesmo apareceu aqui, para se encontrar com Talita, uma moça muito bonita, mas com um buço mais cerrado que o da Frida Kahlo.
+++
Sim, Solange, admito, é mentira.
Claro que não aconteceu nada disso.
Digamos que a história me veio à cabeça quando ouvi Adriana Calcanhoto cantando “Mulher barbada” e o livro se abriu na página do conto “Um artista do trapézio.”
Há uma Talita e um Trapezista, mas o final da história é diferente.
Então agora lhe conto o final verdadeiro.
Talita continuou a se corresponder com Jancsi, até entender que ele nunca mais voltaria ao Brasil, como dissera no início da correspondência dos dois.
Nem ela iria nunca à Índia, sequer a Paris.
E aí ela parou de escrever. E aí ele também parou de escrever. O tempo passou, veio o esquecimento.
Foi só isso.
Não tem muita graça.
Enfeitei a história para divertir você.
+++
Mas você ainda me olha com descrença.
E tem razão, Solange.
Então, parece que chegou o momento de tirar todas as máscaras. Não há nenhuma Talita, a personagem central dessa história sou eu mesma.
Também não há trapezista, mas um professor.
Como sabe, fui professora de literatura. Veio ao Rio um professor estrangeiro que eu conhecera há muitos anos, num congresso em Paris.
Um homem que eu não via há tanto tempo e revi por acaso, numa esquina de Copacabana. Sim, eu o reconheci imediatamente e ele a mim.
Tive a impressão de que era possível trazer de volta o passado, transcender espaço e tempo.
Ele viajou de volta, nós nos correspondemos por e-mail. Mas tudo acabou quando descobri que ele omitia e distorcia muita coisa sobre sua vida.
E fazia promessas que, como fui descobrindo, não se cumpririam nunca. Por exemplo, nunca teve a menor intenção de voltar algum dia ao Brasil.
O que havia por trás das suas frases elípticas era banal, distante dos delírios da minha imaginação. Casado, três filhos, vida rotineira.
Assim, tudo se desfez.
Ele se tornou irreal e remoto, como uma cifra na imensa estatística da população de um país distante, que nunca visitaremos.
Cuidei de alguns interesses dele, no Rio. Não me custou tanto assim. Se era por isso que ele me escrevia todo dia, não sei.
Mas lhe digo, Solange, pelo menos foi um amor que teve um fim indolor. Acabou como a Boa Morte, pela qual tantos rezam.
Acha que amanhã contarei outra vez a mesma história, mudando apenas as máscaras?
Não, nunca mais. Passou.
Agora, guardo meu Tarô e vou descansar.
Volte amanhã, estarei te esperando como Xerazada ao seu príncipe. Garanto que minha nova história não terá mais uma mulher, um estrangeiro e um reencontro improvável, muitos anos depois.
E você, quando tirará sua máscara, Solange?

CARLOS HENRIQUE SCHROEDER


AS CERTEZAS E AS PALAVRAS
Se excluirmos a morte, ao nascermos, duas outras certezas nos acompanharão: a de que seremos filhos frustrados, num determinado momento, e pais inseguros, em outro.
Cássio sabia disso e coçava a cabeça quando essas certezas o afligiam, certeiras, e mesmo com as insistentes reprovações de Sarah, o incerto Cássio coçava e coçava, e por entre seus finos cabelos, se bem perscrutássemos, as feridas existiam. Cássio também tinha a certeza de que não choraria no enterro de seu pai. Não me surpreendo. Nunca o vi chorar nesses quinze anos em que o conheço, nem uma lágrima, sequer um brilho etéreo nos olhos, apenas um campo vasto e esverdeado nas pupilas. Ele se culpa por não nutrir nenhum sentimento, nenhum mesmo, pelo pai, nem amor, nem ódio, eu não entendo e ele não consegue me explicar. Ele acha que não sabe educar os filhos, mas eu lhe digo, e quem sabe? Quando me mostrou sua coleção de tampas de caneta, pensei que nada mais pudesse me surpreender nele, mas Sarah, sua esposa, me confidenciou algo. Cássio tem fixação por uma palavra da qual eu nem sabia o significado, mas descobri: afinal, era o sétimo verbete da terceira coluna da página 2.072 do Dicionário Houaiss. Segundo Sarah, ele se diverte criando historietas com a palavra “opróbrio”. Pelo que eu sabia, Cássio era um ágrafo e suas obras completas poderiam se resumir a suas assinaturas no talão de cheques. Também não me lembro de Cássio ter lido um livro sequer na vida, e fiquei ainda mais surpreso quando certo dia Sarah me entregou uma de suas histórias num guardanapo: "Há na palavra opróbrio algo de indecente, até mesmo de pornográfico, talvez seja a exposição indecorosa das três letras o, sugerindo um casal e o filho assassinado com uma facada nas costas, ou ainda um casal e seu filho punk. Não consigo vislumbrar nada em prol desta palavra, tampouco brio, em duas sílabas espremidas entre vogais, sufocadas, reticentes, impróprias. Dentre as palavras com oito letras, ela é, sem sombra de dúvida, a mais perigosa. Esconde em suas letras a simbologia do assassinato: o p matou o r com a ajuda do o e uma faca aguda, e ainda com a ajuda de b jogaram o corpo no rio. Reparem que este é um momento revelador da língua portuguesa, talvez até o Holanda e o Houassis possam se levantar de seus túmulos; afinal, não é sempre que descobrimos que um substantivo masculino é, na verdade, um substantivo maldito, e que esconde um caso de amor entre duas palavras do mesmo sexo, e vizinhas: p e r".
Disse para Sarah que isso tinha um nome: - Obra-prima?, perguntou. - Esquizofrenia!, disse eu. Não levamos a sério meu diagnóstico. Afinal, ele havia me ensinado uma palavra nova. Nunca cheguei a comentar isso com ele, nem poderia. Mas gostaria, pois estava ficando chateado por, toda vez que conversava com Cássio, ele retomar o assunto das certezas. E eu tinha que engolir em seco minhas duas certezas, que não podiam ser compartilhadas. A primeira, de que ele era um corno; a segunda, de que o terceiro filho dele, de apenas dois anos, era na verdade meu filho. Ele me ensinou uma palavra, mas fui eu quem ensinou a Sarah o último verbete da terceira coluna da página 2.079 do Dicionário Houaiss: orgasmo. A verdade dói mais do que as palavras. Ambas são mortais. E prefiro, muitas vezes, me abster dessas armas, pois se amo o cheiro que emana dentre as pernas de Sarah, amo sobretudo a mim, e também a Cássio, meu primeiro, e talvez único amigo. E se algum dia meu telefone tocar e uma voz gritar inúmeras vezes a palavra opróbrio, só restará aos meus pulsos o beijo frio da lâmina de barbear.


Este conto integra o livro com o mesmo título lançado este ano pela Editora da Casa. Carlos nasceu em Trombudo Central, no interior de Santa Catarina. Estreou na literatura em 1998 com a novela “O publicitário do diabo” (Manjar de Letras), e desde então já lançou quase uma dezena de livros, entre eles os romances “A rosa verde” (Editora da UFSC, 2005), “Ensaio do Vazio” (7 Letras, 2006). Em 2009, foi contemplado pelo Edital Elisabete Anderle, do Governo do Estado de Santa Catarina, com recursos para publicar uma antologia de suas peças de teatro. Ainda em 2009, foi um dos escritores catarinenses selecionados para representar o estado na Feira do Livro de Porto Alegre. Em 2010 ,foi agraciado com a Bolsa Funarte de Criação Literária, do Governo Federal, para pesquisa e conclusão de seu romance “A mulher sem qualidades”. Desde 2007 é cronista fixo (escreve todos os sábados) dos diários “A notícia” e “O correio do povo”. Participa de várias antologias de contos.