segunda-feira, 7 de março de 2011

CONFESSO QUE PINTEI


“Confesso que vivi” é um livro de memórias de Pablo Neruda – que não li. Mas, de repente, me veio esta variante: “Confesso que pintei.”
Pintei mesmo, com telas e tintas. Adorava pintar, E, neste momento, sinto vontade de “confessar” isto. Habitualmente, não falo mais a respeito.
Fui levada a pintar, por um lado, pelo incitamento de uma amiga, que na época frequentava a Escola de Artes Visuais do Parque Lage e, por outro lado, pelo ativo encorajamento do meu ex-psicanalista, que achava que seria uma boa terapia para mim. Eu estava num momento muito difícil.
Então, levada por uma espécie de desespero, em meados dos anos 90 fui para a EAV e comecei a jogar tinta acrílica e água em telas preparadas por mim mesma, sempre pacientemente assistida pelo artista e professor Luiz Ernesto e, num outro momento, pelo pintor e professor Chico Cunha.
Chico me ensinou a fazer figuras, da maneira como aparece em meu conto “Aula de pintura” que, na verdade, deveria ser dedicado a ele.
Acabei parando de pintar, por motivos vários, inclusive um excesso de coisas para fazer. Mas a nostalgia é imensa. Gostaria de recomeçar, se pudesse.
Não que pense em expor, ou algo assim. Nunca pensei. A maioria das minhas telas foi oferecida a amigos. Não sei se apreciaram nem o que fizeram com elas, mas os presentes foram dados com muita alegria.

A tela que dei a Silviano

Um desses amigos, o escritor e professor Silviano Santiago, parece que gostou da minha tela. Até hoje, segundo me consta, ela está pendurada na parede do apartamento dele e já foi até fotografada, como pano de fundo, numa entrevista que Silviano deu.
Todo esse imenso prazer de pintar me inspirou um conto, “Aula de pintura”, que está em meu livro “Ovelha Negra e Amiga Loura.”
O conto tem muito da minha experiência - mas, pelo amor de Deus, não é exatamente autobiográfico.
Sempre misturo minhas experiências, reinventadas, e com a pura invenção, pura ficção mesmo. Isto às vezes, me traz muitos problemas e até agressões...
Espero que nunca mais aconteça.
Seja como for, aí está minha confissão e aí vai o conto, junto com algumas imagens que criei.

AULA DE PINTURA

Conto de Sonia Coutinho

Nesta manhã de céu claro e sol caloroso, mas não demasiado quente, de um estranho inverno no Rio de Janeiro, Dorothy vai para a escola mostrar ao professor sua tela mais recente, à qual dedicou horas incontáveis, mas que ainda está inacabada.
Chegou ao ponto, avalia agora, de acordar no meio da noite e seguir pintando até as 11 horas da manhã do dia seguinte – embora sabendo que nunca será uma boa pintora.
Sim, não é coisa que tenha feito desde menina, não exercitou o olhar como atividade primeira, não treinou a mão. Pegou a pintura no meio do caminho, mas ama tanto pintar!
É sua melhor maneira de enfrentar o desespero, a solidão, o esmagamento... O ESMAGAMENTO.
(Depois, talvez explique melhor a si mesma o que quer dizer com esmagamento. Por enquanto, prefere deixar assim.)
Então, pega a tela que ela mesma tinha preparado e ainda não está no chassis, mas sim enrolada num tubo comprido, pega um rolo de papel “alta alvura” e a bolsa com tintas, esponjas, espátulas, desce até a garagem, entra em seu velho carro e segue até a Escola, nesta maravilhosa manhã do Rio de Janeiro.

A mulher gordinha e de meia idade, Dorothy, já acostumada a ser chamada de “senhora,” chega ao palacete no meio do parque, que foi da cantora italiana de ópera, casada com um milionário, e onde agora funciona a escola de arte com cursos livres para todas as idades. E encontra um grupo de jovens músicos tocando junto da piscina, no pátio interno, para uma platéia de gente descontraída, alguns sentados em esteiras colocadas no chão pelo pessoal do café.
Segurando sua tela enrolada e sua bolsa de pano com o material de pintura, Dorothy segue pela galeria com coluns, em torno do pátio, até chegar à sala onde toma sua aula de pintura.
Como ainda faltam uns 20 minutos para a hora da aula, vai ao café, pega um chá de erva-doce e alguns pãezinhos de queijo e se senta a uma mesa próxima do grupo musical.
Que bom, mas que ótimo mesmo. Adora comer ali, olhando para aquela piscina e para a vegetação do parque,lá fora, que espia neste momento através da grande porta escancarada de entrada do palacete, mais adiante, bem defronte da sua mesa.
Agora vê o professor se aproximando, pela galeria. É um sujeito bonito, com menos de 50 anos (para ela, um jovem). Ele pinta telas estranhas e poéticas, com meninos algo tristonhos, de olhos redondos e negros, encolhidos ebaixo e grandes lustres de cristal. Em torno deles, uma massa abstrata de tinta grossa.
Depois do chá e dos pãezinhos de queijo, Dorothy entra na sala de aula, que dá para uma varanda sobre a qual se debruçam galhos de grandes mangueiras.
Dorothy comenta com o professor como tudo está bonito lá fora, o dia claro, a piscina verde escuro, a floresta da tijuca descendo pelas encostas do corcovado e os violinos.
Vão chegando os outros aunos da turma, o professor passa um exercício.Com um traço de lápis, divide uma folha de papel pela metade e diz ao grupo para fazer algo figurativo de um lado e uma abstração do outro.
Dorothy sempre teve medo de fazer pinturas figurativas, jamais desenhou em sua vida, ela gosta é de cor. Tinha avisado ao proessor que não sabe fazer figuras. E agora, de repente, precisa fazer uma, ou abandonar a aula.
Sente que, se for embora, talvez não volte nunca, talvez não tenha mais coragem de recomeçar. Mas ela, fazer figuras? Ah, só olhando para fotografias! Não sabe fazer figuras de cabeça nem copiar nada da chamada “realidade”!
Sai aflita da sala de aula, pensando num jeito de se safar da situação, e então encontra um quadro de avisos onde está pregado um convite com uma foto de Torquato Neto.
Sim, é isso! Dá uma olhada em torno, não há ninguém por perto, com um gesto brusco arranca o convite do quadro de avisos.
Volta com ele para a sala, mergulha um pincel tinto na tinta acrílica preta e, com ele, vai esboçando os traços de Trquato.
Sai um Torquato outro, mas ainda assim ele mesmo, verifica, com um deslumbramento infantil por estar fazendo uma figura.
Em torno da cabeça de Torquato, traça de improviso algumas folhas toscas, para equilibrar a composição.
Depois, num frenesi interior, pega um por um os tubos de tinta acrílica: amarelo pele, amarelo de cádmio escuro, violeta, azul cerúleo e sombra queimada.
O rosto todo de Torquato agora está ali, com seu cabelo grande e roxo caindo de cada lado, e com um sinal que ela inventou, no meio da testa, feito um terceiro olho. Os olhos enviesadados, o bigode e a barba, claro que é Torquato.


O outro lado da folha de papel, eu deve ser preenchido com uma abstração, ela faz com facilidade, está acostumada com abstrato. Outro aluno se aproxima da sua mesa, olha o exercício que acabou de fazer. Pergunta:
- Mas já acabou, assim tão depressa?
- Se não sair depressa, não sai nunca – responde Dorothy.
Puxa vida, conseguiu fazer uma figura! Está imensamente feliz.
O professor vem e não diz nada, parece que aceita o que ela fez.
Uma colega de grupo que habitualmente se senta atrás dela, aponta para seu trabalho e pergunta ao professor?
- Mas isso é figurativo?
Ele explicara, na aula anterior, que não se pensa, atualmente, que usar imagens seja fazer uma figura figurativa, que a pintura só é figurativa quando a imaem se coloca dentro de um espaço e apresenta proporções.
- Sim, é figurativo – responde o professor. – A figura é grande, está no meio do espaço, não se trata de um padrão de figuras.
E, em seguida, os dois na varanda contígua à sala, o professor aconselha Dorothy com seriedade. Diz que ela precisa estar aberta para uma ampliação do seu repertório, que deve usar mais elementos em seu trabalho.
Mas consegui fazer uma figura, ela protesta, fracamente.
Depois, deixa que o proessor fale, ele diz coisas interessantes, ela ouve. E agradece, quando ele para.
Está felicíssima. Um momento de felicidade.

Embora, pouco depois, esse momento seja inteiramente apagado, quando guarda as tintas e pincéis em sua sacola, quando entra sozinha em seu velho carro e segu sozinha para seu apartamento, quando encontra a secretária eletrônica sem nenhuma mensagem, quando abre a internet e não há e-mail algum para ela.
Senta-se na cadeira de balanço e reflete sobre seus problemas. Sim, o dinheiro que tem para sobreviver está começando a acabar.
Colocou tudo o quelhe resta numa poupança, vai tirando um pouquinho todos os meses, sempre com a esperança de voltar a conseguir trabalho avulso para fazer.
Mas nada aparece e, segundo seus cálculos, ficará sem dinheiro nenhum dentro de poucos meses. E já não tem ninguém a quem pedir nada.
Então, como será?
Não sabe.
Sabe apenas que, mais uma vez, passará seu sábado inteiramente sozinha e que sua vida, de certa forma, está liquidada.

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