sexta-feira, 20 de maio de 2011

FUAD ATALA

Lima Barreto, persona non grata na imprensa

A vida literária no Brasil sempre manteve estreitas ligações com o jornalismo. Um exemplo marcante foi o Correio da Manhã, jornal de oposição, fundado em 1901 pelo gaúcho Edmundo Bittencourt. Perseguido pela ditadura, o jornal deixou de circular em 1974. Aberto a todas as tendências, por suas páginas passaram os grandes nomes das nossas letras. De sua redação sairam inúmeros imortais para a Academia de Letras. Foi pioneiro em muitas iniciativas, criou suplementos e lançou concursos literários.
Seu surgimento, num momento de transformações tecnológicas no mundo, foi a grande novidade da imprensa na virada do século XX. Ao contrário dos demais órgãos, quase todos praticando a chamada “imprensa de balcão”, alugada ao governo, apresentou-se como jornal independente. Sem vínculos com grupos financeiros, governo ou partidos – não obstante sendo um jornal político – que, em nome da liberdade e da justiça, “para o bem do povo e do país”, viera para combater o poder dominante e todas as formas em que sua força corruptora se manifestasse.
Edmundo era de temperamento arrebatado, que perseguia obsessivamente a liberdade e o que considerava de justiça e de direito, para o bem da nação e do povo, do qual se dizia porta-voz e defensor. Tinha uma ética e seu nome era “ortografia da casa”. Essa ortografia ia muito além da simples representação de normas gramaticais, de fidelidade a regras e princípios. Ela incluía a conduta moral perante seus ideais de purificação do regime corrompido e dos corruptos em geral.
Ficou famoso o seu index, a lista negra cujos nomes não poderiam sob qualquer hipótese ser mencionados no jornal. Em nome dessa postura, Edmundo Bittencourt cultivou muitos desafetos. Pelo grau de virulência de suas críticas, que muitas vezes derivava para a injúria e a ofensa, causaram escândalo na época suas brigas com Carlos de Laet, ex-colaborador de primeira hora do jornal, José do Patrocínio, (o “tigre da abolição”, no dizer de Joaquim Nabuco), Alcindo Guanabara e o senador gaúcho Pinheiro Machado. um de seus maiores desafetos. Tendo se batido com ele num duelo a pistola na ainda remota praia de Ipanema, depois de meses seguidos de pesadas acusações e denúncias, Edmundo, inexperiente em balística, levou a pior, saindo ferido na perna por um tiro possivelmente sem intenção letal do exímio atirador que era Pinheiro Machado.
Um dos casos mais clamorosos foi o que ocorreu com Lima Barreto. Descoberto para a grande literatura brasileira somente depois de morto, o autor de “Clara dos Anjos” teve uma vida miserável, toda feita de frustrações, privações, crises de alcoolismo e internações em hospício. Carregava ainda a amargura de nunca ter tido oportunidade de provar seu talento.
Lima Barreto trabalhou no Correio da Manhã em 1905. Atribui-se a ele a série de artigos sobre descobertas arqueológicas ocorridas durante a abertura da Avenida Central, atual Rio Branco, e a demolição do Morro do Castelo. O escritor conheceu a redação do Correio da Manhã por dentro e provou de perto das manifestações do caráter dominador de seu dono.
Em 1909, depois de enfrentar toda sorte de barreiras, Lima Barreto publicou “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, um romance à clef, com todos os ingredientes de uma vingança contra o meio que o rejeitava.
O “Isaías” é um livro áspero, amargo, escrito no estilo dos antigos romances de chave. Em suas páginas, Lima Barreto destila forte agressividade contra instituições como o Exército, do qual foi funcionário, a imprensa em geral e a sociedade, que ele tanto desprezava. Ali estão estampados também os preconceitos que alimentava, além de extravasar seu ressentimento – sentia-se discriminado por causa da cor - contra as injustiças que sofria do meio em que trabalhava.
O principal personagem do livro é o próprio Correio da Manhã, logo o jornal mais poderoso da época, do qual o escritor faz uma sátira mordaz. O romancista o descreve como “um museu de mediocridades”, a cuja frente estava um “diretor violento, mestre de descomposturas”, que “destruía reputações em nome da moral”. Ali estava o Edmundo Bittencourt que ele sentira bem próximo. Para Lima Barreto, esse diretor não passava de um “êmulo de Tartufo, corrupto e devasso”.
Os personagens foram identificados por vários pesquisadores que desvendaram a chave de “Recordações do escrivão Isaías Caminhas”. Para Gondim da Fonseca, Ricardo Loberant era Edmundo Bittencourt. Os demais personagens são quase todos do jornal.
Como era previsível, o livro foi mal recebido. A imprensa praticamente o ignorou. Quanto ao Correio da Manhã, o mais satirizado, manteve-se em olímpico mutismo, permanecendo a obra e seu autor no temível index por muitos anos. Uma postura típica do “espírito da casa”.
Em seu “Diário íntimo”, o autor acusaria o golpe. Comentando a pequeníssima repercussão na imprensa, Lima Barreto cita O Paiz e A Tribuna como os únicos que se ocuparam da obra. Quanto ao Correio, registrou: “...nenhuma linha... era esperado”.


Este texto faz parte do livro "Correio da Manhã - Réquiem para um leão indomado", em preparo por Fuad Atala, que iniciou sua carreira no jornal. Fuad foi também secretário de redação e editor de "O GLOBO", em duas oportunidades, e teve breves passagens por "Última Hora" e "Jornal do Commercio". No livro, ele traça um perfil do polêmico proprietário do “Correio da Manhã,” Edmundo Bittencourt. Fuad Atala é autor do romance “Os ratos de São Sebastião" e co-autor do livro ecológico "Floresta da Tijuca". Também escreveu monografias sobre o maestro e compositor Alceo Bocchino e as pianistas Magdalena Tagliaferro e Guiomar Novais.

Um comentário:

  1. Olá Sra. Sônia.

    Por acaso tem algum contato do referido jornalista?
    Estou realizando uma pesquisa sobre a FBCN, ong ambientalista da qual ele fora um dos fundadores.
    Meu e-mail é g20comunicacao@gmail.com
    Muito grato.

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