sexta-feira, 20 de maio de 2011

CONTOS DE LUCI COLLIN

IMAGENS DESABRIGADAS

às quatro. encontrar-me-ei com ela às quatro, conforme me disse. conforme eu disse a mim mesmo. conforme mentiu. às oito estarei ainda lá esperando? e qual relógio poderá afirmar: são quatro? meu relógio é de ouro e tem até aquela corrente mas esqueço de dar corda, me esqueço da sequência das horas. quantos minutos são necessários para que cada coisa se faça? na verdade um dos ponteiros caiu há muito, muito mesmo. ficou solto ali dentro daquele visor encardido. sim, é um relógio antigo e guarda o tempo passado. todas as horas são um punhado de grãos indistinguíveis. mas sei que quando o coronel sai e bate a porta daquele jeito são três em ponto. encontrar-me-ei com ela às quatro.


conforme disse, o lugar deve ser este. conforme combinamos. mas advertiu que mentia. mas não acreditei que mentia. mas não acreditei que fosse capaz de mentir. por isso vim. por isso estou aqui. e são talvez já oito horas. não neste meu relógio indolente. nos outros relógios do mundo são oito. serão nove, quem sabe? neste relógio que observo, tendo há muito esquecido qual dos ponteiros se perdeu, o tempo é sempre um caminho impossível. conforme menti a mim mesmo ela estaria aqui, conforme eu quis acreditar que jamais mentiria. são oito. punhado de intraduzíveis. não, ela não veio. e já que sempre me esqueço a sequência das horas, não importa se está atrasada – não significa que não vem. num relógio como o meu, de ouro e com aquela corrente, quatro pode ser imediatamente depois de oito. e isso quer dizer que encontrar-me-ei com ela daqui a pouco.


na verdade ela jamais disse que estaria aqui na hora combinada. eu é que inventei um horário. ela nem tem relógio! nem relógio ela tem! como poderia combinar um encontro comigo ou com qualquer outro alguém!? dei a ela um pequenino relógio com uma delicada pulseira. ela recusou. anos atrás. jamais quis aceitar presentes. e eu sempre a insistir, reconheço! lembro-me que tive que devolver à loja aquela gaiola com o casal de canários. anos atrás. punhado de impermanências. não quis o relógio e não quis os canários e nem o chapéu lilás que ofereci e nem as luvas e nem o pequeno lenço de seda e nem o livro de sonetos e nem o terço de madrepérolas e nem aquele abajur estampado com motivos orientais e nem o jarro de porcelana pintado à mão e nem a caixinha adamascada e nem o exótico vidro de perfume e nem a estatueta de jade e nem os chás importados e nem o colar de coral. e não tendo aceito o relógio jamais poderia estar aqui na hora combinada. se chegasse, eu poderia suspeitar que um dia aceitou um relógio, delicado ou não, de algum estranho. mas não de mim.


às cinco não aguentei e descasquei uma das laranjas que iria oferecer. às seis aquele gato esquisito sentou-se aqui ao meu lado. às sete três moças passaram apressadas para apanhar o bonde e eu soltei as flores que segurava. às oito uma folha de jornal perdida foi sendo arrastada pelo vento e eu acompanhei seus movimentos sem sentido. às nove minha cabeça começou a doer e os meus pés começaram a latejar. às dez uma sirene soou e não consegui distinguir de onde vinha aquele som. às onze garrafas foram quebradas no beco. à meia-noite uma criança pequena começou um choro monótono e depois o pai da criança começou a berrar. à uma hora eu olhei para o céu. às duas não aguentei e descasquei uma das flores que iria oferecer. às três aquela folha de jornal sentou-se aqui ao meu lado. às oito cinco moças saídas de um baile passaram apressadas em direção ao vento. às nove eu soltei as laranjas que segurava e acompanhei seus movimentos sem sentido. às dez um gato começou seu choro monótono e depois minha cabeça começou a latejar. às onze não consegui distinguir aquele som que veio do beco e olhei para os meus pés. ao meio-dia o pai da criança passou apressado para apanhar as garrafas. à uma o céu monótono será quebrado mas o som será confundido com aquele da sirene. às duas meus pés pararão de berrar. às duas e trinta a criança terá virado um homem esquisito que passa em direção à folha de jornal. às três em ponto o coronel sai, meus pés, então, conseguirão partir. às quatro, conforme me disse, mentirá.
outra vez.
conforme me disse.
conforme eu disse a mim mesmo. meu relógio é de ouro e tem até aquela corrente. esqueço de dar corda. esqueço a sequência das horas. um dos ponteiros caiu. sai e bate a porta daquele jeito. o lugar deve ser esse. nos outros relógios do mundo. encontrar-me-ei.
um relógio afirmou:
às quatro.
UM PONTO SOBRE O OUTRO

Não, nenhuma palavra que dissesse ajudaria: Reva é mesmo um mistério, logo vi, quando Florine me disse: cuidado, ou melhor, quando disse: jamais compreendi Reva Frankton, eu pensei puxa, estou mesmo me sentindo diferente mesmo estou mesmo me sentindo desta vez mesmo é assim que estou mesmo me sentindo: um amontoado de dúvidas: Reva é com certeza um mistério e só existiram duas pessoas com este perfil na minha vida: Kade e Lebrec só esses dois elementos essas duas outras oportunidades me causaram tal sensação de estranhamento aquele desconforto com as cenas: mistério, mas não pelo mesmo motivo: Kade é um apanhado de silêncios, de incomunicáveis e Lebrec, bem a história de Lebrec se resume no seguinte: ausência, ausência foi a palavra dita por Herlinda para definir aquele momento em que olhamos para uma pessoa que compôs uma sequência de dias das nossas vidas (e não só sequência: também fatias quero dizer) e percebemos finalmente: nada existiu ou melhor: nada existe e então você pode me acusar de estar sob influência de Lindy (Herlinda) mas isto não é verdade eu posso lhe provar: Koci me conhece e sempre sustentou que eu tenho entendimento de montanhas, de cremes, de brancos, de não, de lentes, de sempre, de um qualquer descuidado, de qualquer pausa, de qualquer pequeno vento insistindo sobre o tecido enfim Koci com certeza diria: tem sim ou, se Koci não usasse palavras assim tão objetivas, tão diretas, tenho certeza que se faria entender mesmo que as sentenças caracteristicamente fossem indistintas e embaralhadas uma vez que Koci é o próprio embaralhamento, convenhamos, mas não é mistério, mistério está aqui: Reva, Reva Frankton é: mistério absoluto: Florine disse e isto não é novidade para mim: eu já vivi algo parecido com Kade e ainda isso: eu já vivi algo parecido com Lebrec (quando revelou seu verdadeiro nome: Liebross) todos esses fatos devem ser meticulosamente considerados eu quero, em outras palavras, esclarecer: toda vez que alguém entra na sua vida pode acontecer isto mas temos que apontar que o contrário: o contrário também acontece: o mistério pode estar no momento em que alguém sai, quero dizer: sai da sua vida, sai levando um pedaço, foi o que disse Hal: sai levando um pedaço que não se conhecia: Leb fez isso, Kade fez, e Reva está fazendo porque Reva é só isso: um mistério e no fim parece ser apenas e portanto isto: um pão que manifesta um envelhecimento, que está condenado a ser esquecido já que o dia está quente, está terrivelmente quente e neste mercado de bairro os pequenos pontos verdes podem ser vistos, os pequeníssimos pontos de bolor já se instalaram ali no pão e este pequeno exemplo ilustrativo é exatamente como: Reva e não adiantará Ryther me telefonar dizendo: esqueça, que você bem sabe que Ryther Stroy está se tornando especialista em dizer: esqueça isto, pelo menos foi o que me disse quando Hal desapareceu, quando Tamra desapareceu, quando Yem perdeu-se no mapa, quando Herlinda deu tanta corda no relógio que aquele objeto recusou-se e finalmente quando toquei no assunto: Reva é um sofisticado mistério uma vez que a virtude dos pêssegos é serem imediatos e as únicas palavras que neste momento poderiam me ajudar a compreender este tipo de pilha de cartas de baralho viradas sobre a mesa que é o meu peito agora são as seguintes:

KOZMIC BLUES

Ouvir vozes quando é um solo de guitarra é solidão. Esperar que a porta se abra. Suspirar é solidão. Não falar em corpo. Repetir o mesmo gesto. Repetir. Não saber dizer se repetiu o mesmo gesto é solidão. A paisagem igual a umidade por dentro o fogo o frio. As cores que se abandonam. As mãos que envelhecem, os toques melhores que aguardarão para sempre. A folha tombar no outono é solidão.
Microfonia.
Alguém tossindo na platéia. Ruídos num pianíssimo. Uma poltrona que range. Desafinar na noite de estréia. Sob as luzes. Desafinar em todas as noites subseqüentes. Atrasar um tempo. Comer um compasso. Estar circundado de não pode ser é solidão. Chorar no escuro.
Plagiar.
Quebrar um copo e não precisar varrer os cacos. Uma corda que arrebenta no meio da melodia perfeita. Cair de joelhos sem ter nada a dizer. Ouvir a série harmônica. Não ouvir a série harmônica. Janela de quarto de hotel. Dicionário onde se espera encontrar como se diz “eu gostaria” naquela língua remota. Varal vazio. Ritmo da colher no prato de sopa. Ouvir a própria voz compondo finais de frases medíocres. Tudo isto.
A mecânica da representação.
Seguir atentamente as coordenadas até a próxima estação e descer no lugar errado. Descer carregando peso é solidão. Escrever a própria história com mistérios. Ver ondas indo embora e esquecer que sempre cumprem voltar. Resumir as coisas da vida em uma página e meia. Pensar nas horas em que o coração existiu sendo alegria. É com certeza.
Na água que evapora, o lentamente é solidão.
O silêncio que soterra os objetos. Mantos imensos de vidro. Magma. Força da lava veloz que só se pode aceitar. O transparente que existe por si também é. Estar longe do porto de onde se parte de onde se chega de um onde. Enxergar tanta água. Catar por entre os escombros da noite o vago ainda de um sorriso. Desconsiderar que se nasce do fruto é solidão.
Cisco no olho.
Ter um medo palpável do tempo que perpetua estragos por dentro. Ter medo da resposta e da pergunta. Planta sem água. Água sem sede. Relógio sem corda. Ferida exposta. Mosca contra o vidro. Vidro de veneno. Asa quebrada é solidão. Fogo na floresta. Chave sem fechadura. Estrada que virou um labirinto é solidão.
Suor é a maior solidão.
A fome ensurdecedora não dimensionável é. Detalhes vinte cento e oitenta vezes a mesma cena. O diamante que aguarda na caixinha escura escura e o macio daquele escondido também é. O nome da coisa sem porquê é solidão. Querer aplacar as pretensões de infinito. Os restos da festa as garrafas vazias o canto da sala as sobras as flores e os copos em silêncio. As paredes impregnadas de apelos monódicos. O respirar solene um ar cansado. A pedra sobre o estar é solidão.
O maestro baixou a batuta. Pensar em como será o longe nos olhos miúdos dos pássaros. O baixista disse “três”.
Sou um lugar onde eu nunca fui.

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