quarta-feira, 16 de junho de 2010

EU E O COIOTE DE JOSEPH BEUYS


Conto de Sonia Coutinho

Eu caminhava pela beira da Lagoa, instantes atrás, quando me veio a lembrança: viajei no mesmo avião em que Joseph Beuys foi para Nova York fazer sua performance “I like America and America likes me”. Puxa vida, mas parece um sonho! Isto foi em 1974, quando eu ainda era um puto filhinho do papai! Hoje sou Juan Bingen, todos me conhecem...
Fiquei num assento bem atrás de Beuys e o segui de perto, quando ele desembarcou do avião.
Um grupo de amigos o esperava no Aeroporto Kennedy. Para minha surpresa, eles o enrolaram imediatamente num pedaço de feltro.
O passo seguinte foi a ambulância. Havia uma à espera e Beuys foi posto dentro dela, sempre enrolado no feltro. Assim o levaram para a René Block Gallery. Para onde me dirigi imediatamente, depois de deixar as malas no hotel.
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O que deflagrou a lembrança de Beuys, hoje, foi o fato de eu ter visto, pregado num poste na beira da Lagoa, um cartaz onde estava escrito USA, três letras grandes e negras, cortadas por dois traços vermelhos cruzados, como num veto absoluto.
Como se dissessem, ao reverso de Beuys: “I dislike America and America dislikes me”.
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Beuys, piloto da Luftwaffe na Segunda Guerra Mundial, caiu com seu avião na Criméia.
Foi salvo num frio de abaixo de zero por nômades tártaros, que untaram seu corpo com gordura e o envolveram num pedaço de feltro.
Ele passou a usar feltro e gordura como materiais para seu trabalho.
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Naquele dia de 1974, em Nova York, eu o observei muito tempo, na galeria onde ele ficou fechado um mês com um coiote vivo.
Quando cheguei, Beuys continuava enrolado no feltro. Tinha ao seu lado uma lanterna elétrica, um exemplar novo do “The Wall Street Journal” (era entregue todo dia, segundo me disseram) e uma bengala que parecia um cajado de pastor de ovelhas.
O que mais me impressionou foi o coiote mesmo, girando de um lado para outro no espaço da sala. Às vezes, Beuys se desenrolava do seu feltro e lhe dava comida.
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Hoje, ao chegar em casa, de volta da minha caminhada pela beira da Lagoa, fui logo para o computador, procurar na internet imagens daquela performance e o que se escreveu sobre ela.
Leio explicações que não me parecem muito exatas para a presença do coiote.
Diz Emily Rekow: “A escolha do coiote foi, talvez, o reconhecimento de um animal que tem grande significado espiritual para os americanos nativos, ou um comentário de Beuys sobre um país que, em sua expansão para o Oeste, tornou-se a América ‘perdida’”.
Encontro também palavras de um certo Thorsten Scheerer: “O coiote que esperava por Beuys na galeria é um símbolo, para o americano do Oeste. Beuys queria viver e se comunicar com o coiote por um certo período de tempo. Mas por que a ambulância? É emergência? Temos de nos apressar para chegar lá? Existe algum segredo que deveríamos conhecer?”
Uma frase do próprio Beuys: “Todo o processo de viver é meu ato criativo.”
Leio mais sobre ele e seu trabalho: “Vestia-se e se comportava de uma maneira muito especial... Como um xamã... A arte da performance, para Beuys, era um meio de autocura e transformação social... Achava que, representando os rituais que inventava, podia afetar o mundo em torno dele...”
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Desligo o computador.
Mas ainda não consigo esquecer o coiote.
O animal em si.
Ao longo dos anos, por causa daquele bicho que Beuys mandou colocar na galeria, tenho lido um bocado a respeito de coiotes.
Gostei mais do que aprendi sobre o coiote do Texas, também conhecido como o “lobo da pradaria.” Vi fotos dele. Seu corpo parece o de um cachorro, com uma cauda comprida e cheia de longos pêlos acinzentados.
A pelagem do coiote do Texas ganha tons avermelhados em suas pernas e orelhas, enquanto na barriga e no pescoço o cinza é mais claro.
Não é um animal muito grande, pesa em média apenas uns 15 quilos.
Outra informação que me encantou: os coiotes têm olhos amarelos, que à noite emitem reflexos de um tom dourado, meio esverdeado.
Aprendi também que são bichos muito inteligentes, curiosos e adaptáveis e moram em diversos habitats, entre eles o Oeste americano.
São arredios com os seres humanos, mas se acostumam com as pessoas que os alimentam.
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Confesso, desde que vi aquele animal na galeria, todas as noites, ao fechar os olhos, tentando dormir, vejo coiotes. Eles uivam lamentosamente, ou dão latidos esganiçados, que enchem minhas insônias de canções mal-assombradas.

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