segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

UM CONTO DE ELIAS FAJARDO

Tela de Neo Rauch


O encontro

Nem sei se estou morta ou viva, dormindo ou acordada, parece que vou pra um lugar encantado. Me sinto assim quando na cama com ele. Estou falando de um cara muito especial, o Carlos, que sabe tirar leite das pedras, se é que você me entende. Mas quando faço amor com ele penso em outros (e outras) e isso aumenta a excitação e a sensação de me sentir traindo, sei lá, e ao mesmo tempo preservando um terreno só meu, que ninguém pode alcançar. Toda vez que vou pra cama carrego tudo que já fiz e imaginei fazer nela. Em cada beijo, todos os beijos. E assim por diante, se é que você está me entendendo.

Onde eu estava com a cabeça quando fiz aquilo?, pergunta-se Rubem. Nem dá pra dizer como foi. Todos os começos a gente devia escrever num diário ou apenas no diário imaginário da fantasia. Não registro nada, por medo de que alguém descubra, e também por achar que nada do que possa registrar vai ser tão intenso (ou bem escrito) quanto o que vivi. Não sou nada, ou melhor, sou 39, 42 ou 25, dependendo da ocasião.

Profissionalmente, sou uma mulher meio realizada. Meio porque sempre que me empolgo, minha amiga Mara me diz: “Menos, Norma, menos.”
Dou aulas de português e literatura. Tem horas que acho isso o máximo: mostrar pra rapaziada o conto “O espelho”, de Machado de Assis, e dizer que ele “ se desenvolve em torno de uma teoria da alma que supõe um ceticismo radical frente à constituição imaginária e alienada do eu, suportada pelo vazio e reposta pelo comércio especular das aparências.”


A amizade pra mim é algo muito precioso, mais valorizado até do que o amor. Parece que quase todos os homossexuais pensam assim, mas será que sou mesmo um homossexual? Já fiz com mulher, homem, gente grande, coroa, criança, bichos. Sou como todo mundo é, só que não confessa. Nem admite. Eu mesmo não admito, se me disserem ou me cobrarem a minha vida pregressa, nego tudo que acabei de fazer indagorinha e que me deu muito prazer. Ou não.

Imagina, tou brincando. Você acha que uma mulher como eu, professora do segundo grau do município, enfrentando uma rapaziada que não quer nada com nada, vai falar difícil em sala de aula? Começo sempre do início: digo a um bando de mais de trinta moços e moças desinformados, mal nutridos, desinteressados, quem foi Machado de Assis, porque o que ele escreveu nos interessa e assim por diante. Tento ser como o elefante do Carlos Drummond de Andrade: toda manhã juntar os cacos e recomeçar.
Tudo bem, a profissão não é nada. O mais complicado é a vida amorosa, ainda mais agora que a minha melhor amiga me confessou...
péra aí... xii, tocou o telefone. Depois continuo.

Estou aqui tentando me entender comigo mesmo, não sei se isto é um diário, uma confissão ao gravador, ao computador: o que interessa é rasgar o véu da fantasia. E já que me rasguei todo, vou ser mais claro: o sexo não é só carnal, são sentimentos, idéias, desejos trocados e desencadeados. Tenho muitos amigos e um namorado, mas não sei o quê nem a quem quero, a quem entrego meus melhores pedaços. Estou só como uma pedra.

A janela deixa entrever uns telhados, a Igreja da Glória se espreguiça entre a neblina que cobre parte do morro. Vento frio e sol quente de inverno brincam de entrar e sair no apartamento de Norma. “Não sei se vou à praia ou se pego um cinema. Vou ligar pra Mara e dizer que não quero mais saber desta triangulação, deste ménage à trois mal resolvido, não sou mulher de deixar pra amanhã o que posso fazer hoje. Ou sou?”

Rubem chega à janela do seu apartamento no centro de Juiz de Fora a tempo de ver os últimos raios do sol se pondo atrás dos edifícios, uma revoada de pombos, freadas no asfalto. O carrilhão da igreja badala as seis da tarde.
Espanto, sombras,
ângulos agudos, crepúsculo.
Rubem garante a si mesmo que não provocou, apenas foi um participante. O namorado nos braços de outro, e com o seu consentimento. A gente sempre fantasia, imagina mil detalhes, mas quando acontece parece que nem foi real: mais uma cilada da imaginação desenfreada. Não era bem isso que ele estava pensando em curtir. Nem eu.

Mara entra na casa de Norma: uma lufada de vento, um pequeno furacão de cabelos ruivos e fala solta. Amigas do peito e de dividir tudo. Até o namorado, pensa Norma, desconsolada. Carlos até que gostou da brincadeira, mas ela, mesmo, não sei. Quanto mais moderna e contemporânea a gente se torna, mais conservadora por dentro. Quem diria que eu pudesse me chamar assim. Estou mexida, desarvorada, ora, isso não passa de um ataque de ciúmes bobo, adolescente.

“todos os temas
um tema:
o tempo”
escreve Rubem no seu lap-top, assim mesmo sem maiúsculas, uma tentativa de hai-kai.

Norma: “Você fica aí andando de um lado pro outro, porque não atende o telefone?”
Carlos: “Ué, mas o telefone não tocou”.
Norma: “Não tocou porque eu ainda não liguei, ora”
Estava tudo tão bom, nós dois no maior amor, escrevendo com pilot no banco do parque: “Norma e Carlos”, e agora é como se me tivessem tirado o tapete debaixo dos pés. Tenho de culpar alguém, talvez eu mesma, com todo meu liberalismo de butique, mania de achar que posso tudo. Não posso porra nenhuma! E dá uma vontade danada de implicar com o Carlos, criar caso por conta de pequenas coisas.

O mais difícil não é o que fazer, mas o que não fazer. Se temos uma relação boa, de confiança recíproca e intensa sexualmente, qual o problema se alguém se mete na nossa cama, de repente? As relações abertas, ainda que fugazes, iluminam a mesmice da vida. Mas não é tão simples. Ando cansado do sexo fortuito, todo mundo faz com todo mundo, quero alguém pra chamar de meu. Mas como, se, mesmo numa cidade conservadora como esta, ninguém é de ninguém?
As pessoas tremem de frio, enfiam as mãos nos bolsos do casaco, uma lufada de inverno percorre a rua Halfed. Bancos, loterias, lojas de móveis e eletrodomésticos, lojas de CD com ruído de duplas romântico-sertanejas. E um coração solitário que olha pela janela do quinto andar.

Vou dizer pra ela que não quero dividir meu homem. Carlos é meu, e ninguém tasca. Esta coisa sueca de partilhar namorado não combina com meu temperamento latino. Mas não quero ferir Mara, minha amiga, minha amada companheira.
Norma: Mara, toma mais uma cerveja, minha linda, depois descemos pra comprar mais.
Mara: Menos, amiga, menos. Assim a gente não consegue estudar pro concurso.

Na academia de ginástica, no meu primeiro dia! Putzgrila, eu tinha que fazer merda! Olhei demais prum coroa que não era nem essas coisas e ele me encarou feio: “Tás querendo o quê, meu! Pára de olhar pro meu pinto.” A ducha fria gelou o peito de Rubem.
Não preciso disso, tenho namorado, mulheres com que transo de vez em quando, pra que ficar nessa fissura? Não quero agir como bicha vagabunda, posso ser expulso da academia!
Eu queria deitar na cama e escolher uma palavra pra ficar repetindo, repetindo até que o som se descole do sentido e tudo pareça um outro universo, diferente desse onde só faço dar com os burros n’água.
Rastros de conversa na esquina.
Tique taque do relógio na noite.
O canto do canário ilumina a madrugada.
Carlos toma um valium e tenta dormir.

“Se é que você está me entendendo, eu não quero ser palmatória do mundo.”
“Mas Norma, o que é palmatória?” pergunta Mara, meio falsa, meio a sério.
“Palmatória é uma coisa que nas escolas de antigamente, as professoras usavam pra dar porrada nas mãos dos alunos!”, e Norma dá umas palmadas na bunda da amiga que morre de rir.

João chega em casa com a pulga atrás da orelha. Sente que o outro o olha de banda, mas não dá o braço a torcer. O bom cabrito não berra.
“Vamos ao cinema, Rubem?” Está passando um filme com o Leonardo de Caprio.”
Um Rubem de olhos lânguidos o enlaça apaixonadamente: “Se ele soubesse quanta doideira se esconde aqui nesta cabecinha...” E emenda: “Vamos sim, cara, tem uma sessão daqui a pouco.”

Norma com uma sensação de dor de corno, e ao mesmo tempo percebendo um certo encanto no que aconteceu. Os três estavam bebendo na Lapa e, aos poucos, foram se soltando. Lembrou-se do Peter O’Toole que dizia ser bonito dependendo do ângulo de luz. Carlos é assim também: um sujeito que fotografa bem, comprido, anguloso, esguio como bambu ao vento, com uma cara marcada de espinhas mal curadas. E Mara também estava especialmente bela, com um colar vagabundo de contas de madeira comprado no camelô, batom carmim nos lábios grossos, olhos cor de jabuticaba sem pintura. O que a gente leva da vida é a vida que a gente leva, pensa Norma, e não consegue mais parar de rir. Vamos esticar lá em casa, propôs Carlos, e os três vão andando tropegamente para o apartamento na rua Riachuelo, oitavo andar, uma única janela que se abre para os telhados vizinhos e um visual de final do século XIX, uma torneira pingando e a pia da cozinha cheia de louça suja.

João acorda tonto. Bebeu demais no bar Marraquech, não segurou as pontas de duas caipirinhas e ainda pediu uma terceira. Depois deu um bolo em Rubem, deixou o amigo esperando sem dar notícias e se enfurnou em casa, disposto a dormir, mas sem conseguir. Aos poucos vai relaxando, a relação com Rubem o incomoda. João ainda não desistiu de ser hetero e sonha com namoradas para dar uma satisfação a si mesmo, à família e à sociedade.
Melhor tentar dormir do que encarar a noite de Juiz de Fora, tão desanimada quanto um final de festa. Uma sensação boa vai invadindo João: imagina que, por dentro de suas têmporas, estão presos dois elefantes, um de cada lado da cabeça. Os elefantes vão empurrando a pele e os ossos com as trombas, e o crânio vai se distendendo; o cérebro vai sendo penetrado pela água limpa do regato que lhe irriga também as veias intumescidas e o couro cabeludo já um pouco sem cabelos. Imagina as mandíbulas presas ao resto da cabeça por dois parafusos que ele vai afrouxando, desenroscando, então o queixo cai, a garganta se solta, uma baba escorre pelo canto da boca.

Mara detesta que lhe acariciem as costas. Sente cócegas, irritação, sei lá. Mas adora que lhe passem a mão na frente. E por aí vai. Norma já nem sabe de quem é a mão que lhe percorre os seios. Os três juntos numa cama estreita pra tanto corpo, santíssima trindade da sacanagem e do tesão. Carlos vem por cima, mas não se importa de ficar por baixo. Norma prefere o meio, vira sanduíche entre a amiga e o namorado. Risos, beijos, chupões, pernas e braços entrelaçados entre um gole e outro de cerveja. Mulher fazendo papel de homem e homem de mulher, Carlos sendo penetrado pelos dedos das duas e Mara sendo enrabada pela amiga. Todos os gatos (e gatas) são pardos na imprecisa madrugada. Quem gozou, gozou, quem não gozou, gozasse. Bocas, sexos, coxas, suspiros. E um sono reparador.

João acorda lembrando de um episódio que preferia esquecer. Estavam ele, um amigo, uma garota, uma garrafa de cachaça e vários baseados num wolks, numa estrada vicinal. Conversa vai, conversa vem, mais um trago, mais um tapa, mais um aperto escondido. Carícias de homem se confundem com as de mulher, uma desconfiança percorre cada um dos participantes. A moça quer que lhe dêem logo o dinheiro que combinaram antes de avançar mais, o amigo quer João, mas acha que deseja a garota, e ele, João, quer apenas dar mais uma bicada na cachaça para ver se acha algum sentido num programa tão insensato. As sombras das árvores atravessam a estrada, são longos dedos negros que se movem, surgem e desaparecem. Uma coruja brilha seus olhos diante dos faróis, morcegos cruzam a luz emitida pelo carro, mais um aperto, risos nervosos, nenhum dos três parece se divertir com a situação, mas é preciso mostrar que estão a fim, ninguém quer desistir primeiro. João arrisca um beijo no amigo, que foge com a boca, finge nojo. A moça ri a bandeiras despregadas, desprende o fecho do sutiã e deixa sair os peitos meio murchos, que João acaricia. O amigo também quer ver mais de perto e tira as mãos do volante. O carro começa a balançar, o amigo não vê a curva, não faz a curva e o carro entra pasto a dentro, mergulha no rio. João, o único que sabe nadar, sobrevive e vai embora sem socorrer o amigo e a garota.

Mara, Carlos e Norma acordam com gosto de cabo de guarda chuva na boca. Quero ir-me embora desta cama, desta situação o mais rápido possível, se é que vocês estão me entendendo! exclama Norma, tentando vestir a saia. Carlos está feliz, sente-se dono de um harém, quer mais sexo, mais carícias, dormir abraçadinho. E Mara não quer nada, não sabe se ri ou chora. Nos metemos numa canoa furada, eu pelo menos estou me sentindo cheia de furos, de desacertos, não gostei nada, e não vou me fingir de moderninha dizendo que foi bom, diz Norma, olhando de cara a decepção refletida nos olhos dos dois parceiros. Um sol quente de manhã entra pela janela, a empregada da vizinha liga o rádio alto, na rua lá embaixo um alto-falante oferece pamonha quentinha. Agora não adianta moralizar, pondera Carlos, o que está feito está feito, o que não tem remédio remediado está. Mara acende um cigarro, não diz o que sente nem o que deixou de sentir. A fumaça envolve três cabeças descabeçadas em cima de uma cama desarrumada.

João desconfia que foi por causa do desastre de carro que ele aceitou, sem resistência, fazer sexo a três com Rubem e um desconhecido que eles pegaram na rodoviária. O cara, cabreiro, não queria ir, mas Rubem o convenceu com uma boa conversa e alguns reais a mais. E foram os três pro apartamento de Rubem com um certo entusiasmo inicial, mas que, depois da primeira cerveja, desandou. Mãos, pernas e bocas se tocam e se desencontram. Rubem tenta descontrair botando um cd de jazz mas não houve jeito. O sujeito sai porta afora feito cachorro que quebrou o pote, mergulha na neblina do inverno mineiro enquanto Rubem e João olham pra cara um do outro.

Não agüento mais esta história, vou passar uns dias no interior, resolve Norma. E pega um ônibus para Juiz de Fora, onde vai se hospedar na casa de uma prima. O ônibus corre pela BR e as cenas se misturam na cabeça de Norma. Nós três na cama foi ótimo, nunca tinha tido tanto prazer, meu namorado e minha amiga, os seres que mais amo entrando e saindo de mim. E porque não? Se eu não fosse tão culpada ia achar é bom, querer mais. O ônibus acelera. Norma e a paisagem fora e dentro de si mesma. As árvores, o rio, a montanha cheia de lanhos e água escorrendo depois da chuva. E ela, cheia de sentidos e sentimentos, perdida e achada, desencontrada, mas feliz. Liga pra Carlos pra dizer tudo isso, mas o celular dele está fora de área.

Rubem e João se encontram na rodoviária de Juiz de Fora. Vão esperar um amigo que vai chegar do Rio de Janeiro. Os dois andam ressabiados, mal se olham, poucas palavras e silêncios longos. Muita gente saindo do ônibus e eles não encontram o tal amigo. Norma tenta sair do ônibus, pra que pressa, meu Deus, eu vim descansar, desce a escada e a mala despenca de suas mãos e vai cair no pé de João, que disfarça a dor e dá um sorriso amigável pra morena:
“Não tem problema, moça, sua mala está em boas mãos”. João, Rubem e Norma saem conversando: nunca se viram antes, mas parecem velhos amigos. Rubem empurra a mala de rodinha de Norma e os três tomam um táxi para a rua Halfed.

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