segunda-feira, 29 de novembro de 2010

OS OLHOS DE MAIAKÓVSKI

SONIA COUTINHO

“Morrer não é difícil. Difícil é a vida e seu ofício.”
Maiakóvski

Estou na exposição de Aleksandr Ródtchenko. Fotografias, colagens, capas de livros.
Na sala com fotos que ele tirou de seus parentes e amigos, levo um susto.
Ah, eu me lembro! Vivi ali, naquele tempo. Sim, na Rússia, um pouco antes e um pouco depois da Revolução de Outubro.
E convivi com essas pessoas.
Vejo as fotos com os rostos tão familiares do próprio Ródtchenko e de sua mulher, Varvara Stiepânova. E aqui estão as do crítico de arte Óssip Brik e da mulher dele, Lilia.
Agora, paro diante das fotografias de Vladimir Maiakovski. Seu rosto belo, intenso e sombrio, um rosto de louco, talvez, está voltado para diretamente para mim, num reconhecimento.
O que foi feito de você, Nora? Ouço-o perguntar.
Por que me chama assim?
Que sensação estranha! O que era Maiakóvski para mim? Um irmão, amigo, amante?
Os olhos dele me sugam, me arrastam.
Segundos depois, verifico que continuo aqui, numa sala do Instituto, mas em que outra dimensão?
Ouço um leve ruído, percebo que há alguém atrás de mim. E me viro bruscamente, esperando deparar-me com Vladimir.
Mas não é ele, e sim Lilia Brik.
Por que sinto tanto ciúme dela? Lilia não é propriamente bonita. Mas tem rosto doce, agradável, muito feminino. E um corpo bem modelado.
Todos diziam que ela era o grande amor de Vladimir Maiakovski.
Ela me toma pelo braço e me conduz para a área externa do Instituto.
No caminho, passamos por uma parede de espelho, no corredor – e me vejo, de relance. Minha imagem não é mais a de Sonia Coutinho.
Sou outra mulher, que identifico de repente.
Sim, Nora Polonskaia, atriz, casada.
Uma das três mulheres da vida de Vladimir. A outra era uma russa branca, Tatiana Iacovleva, que morava em Paris e a quem ele dedicou um poema.
Lilia Brik me puxa pelo braço, agora, com uma raiva mal disfarçada, para que eu me afaste do espelho e continue a andar com ela.
Lembro de tudo, cada vez mais claramente. Aos 22 anos, tive um caso com Maiakovski.
Mas ele se suicidou, continuo a lembrar, agora cheia de dor, enquanto eu e Lilia seguimos para a piscina da bela casa onde funciona o Instituto.
Ah, sim! Fui eu quem passou com Vladimir sua última noite vivo.
Eu e Lilia nos sentamos a uma das mesas em torno da piscina. Em frente, um painel de azulejos de Portinari. Adiante, o oceano de mata que cerca e invade o Rio.
Ainda é cedo, este lugar está vazio, não há ninguém, nas outras mesas, que pudesse estranhar nossas roupas de época e a conversa em russo.
Lilia me diz:
- O que você está fazendo aqui? Por que voltou? Era a mim que ele amava, não a você. O tempo inteiro, era a mim que ele amava. Infelizmente, quando Vladimir morreu, eu estava em Londres, com Óssip. Se estivesse em Moscou, quem sabe impediria que se suicidasse. Já tinha impedido duas vezes, antes.
- Claro, você estava com Óssip. Não quis deixa-lo para ficar com Vladimir, como ele lhe pediu. Ele me contou que queria casar-se com você – cheia de espanto, ouço a mim mesma responder.
Faço uma pausa, mas continuo:
- Você sempre o colocou em segundo plano. E, quando me conheceu, foi a mim que ele passou a amar. Vladimir também me pediu em casamento. Mas fui fraca, tive medo. Tinha medo até de que alguém descobrisse meu caso com ele. Ah, eu queria aceitar seu pedido, devia ter aceito, mas não tive coragem. Tinha uma boa situação, com meu marido. Vladimir era sedutor, mas tão instável. Quem podia adivinhar o que ele faria no dia seguinte?
Lilia me olha com raiva crescente.
- Nunca senti ciúmes de você, como não sentia de Tatiana Iácovleva. Dizem que ele também a pediu em casamento. Mas era tudo para tentar fugir de mim. Era a mim que Vladimir queria. Mas eu não conseguiria separar-me de Óssip. Quando o conheci, eu tinha 13 anos. Nosso relacionamento não era o de um homem e uma mulher, ia muito além disso. Óssip não tinha ciúmes de mim. Vladimir, sim. Óssip sabia que eu nunca o deixaria.
...
Da esquerda para a direita, Óssip, Lilia e Maiakóvski

- Vocês três vivendo juntos, na mesma casa, um ménage à trois que causou algum escândalo, mesmo na Moscou liberada da moral burguesa.
- Não houve ménage à trois. Quando me tornei a mulher de Vladimir, deixei de ser a mulher de Óssip, continuamos apenas irmãos.
- Lilia, você pode tentar enganar a quem quiser, a mim não engana. Você e sua irmã, Elsa Triolet, sempre foram umas coquetes, mulheres fáceis, que ostentavam um verniz de cultura apenas para seduzir os intelectuais e artistas e viver livremente no meio deles, dormindo com quem quisessem.
- Elsa se casou com Aragon e ela o amava – responde Lilia, ofendida. - Polonskaia, eu não tive ciúmes de você, mas uma coisa não lhe perdôo. Você passou a noite com Vladimir e o abandonou na hora da sua morte.
- Eu já tinha saído do quarto, quando ouvi o tiro. Estava no corredor daquele maldito prédio da Travessa Lubiánski. Sabia que não adiantava voltar, estava tudo encerrado. Já antes, vez por outra, ele falava em suicídio. O revólver só tinha uma bala, mas ela se alojou bem em seu coração. Vladimir deve ter ensaiado muitas vezes aquele gesto final. Seu bilhete de despedida talvez tenha sido escrito com antecipação. “Como se diz, o caso está encerrado. Estou quite com a vida.” Mais ou menos isso. Não voltei ao quarto, não queria que ninguém soubesse do nosso caso. Só mais tarde me contaram os detalhes. Eu era tão jovem, tinha apenas 23 anos. E ele 36. O suicídio de Vladimir acabou para sempre com a minha felicidade.
- Ele parecia disposto a atender ao chamado de outro suicida, o poeta Iessenin: “Até logo, até logo companheiro,/Guardo-te no meu peito e te asseguro:/O nosso afastamento passageiro/É sinal de um encontro no futuro.”
Lilia se cala, ficamos ambas em silêncio. De dentro do Instituto vem uma voz de homem que grita o nome dela. Eu a reconheço, é a voz de Vladimir.
Ela se levanta e vai correndo para dentro.
Fico sentada por mais alguns instantes, olhando a piscina. Depois também sigo para dentro. Ao passar pela parede espelho, no corredor, é Sonia Coutinho quem devolve meu olhar, no Rio de Janeiro, no final do ano de 2010.
Estou meio zonza, antes de voltar para casa decido tomar um café no restaurante do Instituto.
Peço um expresso pingado, acompanhado de uma deliciosa bolinha de chocolate com pequenas abas, parecendo um chapéu.
Depois, vou até o estacionamento, entro em meu carro, dirijo de volta para meu apartamento, onde abro o catálogo da exposição, que comprei.
Torno a examinar as fotos tiradas por Rodtchenko. Detenho-me em Maiakovski.
Os olhos dele se encontram com os meus e ainda me chamam, mas agora resisto.
Vou ler tudo o que puder a respeito dele, decido. E quero saber sobre os anos finais da vida de Lilia Brik. Sobre o casamento dela, depois da morte de Óssip, com V. Katanian, o biógrafo de Maiakovski.
E sobre o suicídio da própria Lilia, aos 86 anos.
De noite, sem conseguir dormir, leio em voz alta, para mim mesma, poemas de Maiakovski traduzidos por Augusto e Haroldo de Campos.

4 comentários:

  1. Que bom é o seu blog. Excelente. Parabens.
    arakenvaz@gmail.com

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  2. Prosa deliciosa, de lamber os dedos e os olhos! Imaginação, verdade, ficção, camadas e camadas de leituras, "cinebiografia", "fotobiografia" e uma quantidade muito grande de perspicácia. Texto que imprimi para reler deitado. Abç!
    Henrique Wagner

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  3. Os olhos de Maiakóvski e as palavras de Sonia Coutinho, uma parceria maravilhosamente maluca, uma sensibilidade revolucionária, no sentido estilístico. Fiquei lendo várias vezes o texto, não dava para largar.

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