Um “Casa grande & senzala” do Vale do Paraíba do Sul, é o que se pode dizer deste romance portentoso de Luiza Lobo, escrito em tom rememorativo, às vezes proustiano, de quem se lembra de um passado não vivido nem testemunhado, mas a respeito do qual reuniu documentação confiável e verídica, tornando-se histórica e antropologicamente sustentável. O que não seria novidade, dada a quantidade de cientistas políticos e sociais, antropólogos, historiadores, juristas etc a utilizarem, no passado e no presente, a literatura como fonte secundária para suas investigações.
Este romance é bastante confiável inclusive porque sua autora (a qual apresentei com honras no meu livro Mulheres: prosa de ficção no Brasil 1964/2010, recentemente lançado) é um dos últimos ramos da família Teixeira Leite e assim teve acesso a todas as informações que constituem a argamassa da narrativa, utilizando fontes primárias, em conversas com os e mais antigos parentes e aderentes remanescentes da sua e de outras famílias que viveram a saga das fazendas do café do vale do Paraíba do Sul, na então província e depois Estado do Rio de Janeiro. Isso para não falar de documentos secretos por tantos anos guardados em baús e ainda em poder da família, que a autora pôde manusear.
Um resgate que acompanha quase três séculos de história de família e da história do ouro negro, que deslocou o eixo da economia brasileira, inicialmente centrado no núcleo canavieiro do Nordeste, depois na região central das Minas de ouro e pedras preciosas e finalmente no Sudeste e Sul cafeeiros, completando o período agroexportador da economia brasileira. Mas enquanto durou este último ciclo no Sudeste, o do café, a produção e comercialização foram tão bem sucedidas que os barões agrários, responsáveis por esta produção, ficaram suficientemente ricos para alimentar os luxos e o fausto do Imperador e sua corte, e a própria cidade do Rio de Janeiro foi transformada e tornou-se mais bela e fascinante com o capital gerado no Vale do Paraíba do Sul. Foi por isto mesmo que tantos proprietários rurais se tornaram barões, pois os títulos eram doados pela monarquia à guisa de recompensas.
No final desse processo a monarquia, já bastante abalada pelos protestos contra a pútrida escravidão e pelos ecos dos gritos republicanos, irá ruir diante dos questionamentos e ditames da República, definitivamente instalada a partir de 1889. Tudo isso está contado em forma romanesca por Luiza, que desloca também o foco narrativo do protagonista básico da história, a elite cafeeira rural, para a voz dos escravos e negros, representados principalmente por Manuel Congo – uma verdadeira força moral que determinará o destino de sua família pelo vaticínio mortal proferido na hora de seu enforcamento em praça pública, em Vassouras.
Esse sortilégio teria determinado a decadência e as agruras sofridas não só por uma, mas por todas as famílias daquela região. É uma estória triste e longa de decadência e mortes que nos convence como verdadeira, porque a prosa de ficção é eficiente neste papel de “suspension of disbelief”, embora saibamos que não foi diferente o destino das famílias da elite canavieira dos engenhos, quando as empresas usineiras tomaram conta da produção do açúcar e multiplicaram essa produção muitas vezes.
José Lins do Rêgo é um dos escritores que desenha esse quadro com sensibilidade e graça em Menino de engenho, Usina e outros livros que contam a estória daquelas famílias. No Sudeste, a abolição da escravatura e a imigração promovida desde o Império com vistas a uma industrialização que somente floresceria na República, serão a sentença de morte da economia cafeeira. Aqueles escravos, tanto no Nordeste quanto no Sudeste, tiveram muitas vezes tratamento desumano – e Luiza relata os casos das atrocidades e barbaridades que alguns proprietários de fazendas, como os Wernecks, por exemplo, faziam com seus escravos, que às vezes eram até enforcados, como no caso de Manuel Congo.
Entretanto, a partir de uma certa data, na região Sudeste, esse comportamento bárbaro tornou-se mais suave e os escravos passaram a auferir mais direitos e benesses de seus proprietários. É àqueles homens e mulheres, os 147 escravos da fazenda Cachoeira Grande, pertencente ao barão de Vassouras, seu ancestral Francisco Jose Teixeira Leite, que Luiza dedica seu livro, corroborando a intenção acima mencionada de realizar o descentramento das vozes dos poderosos para abrir espaço a outras, sempre subjugadas e inaudíveis.
O mesmo acontece em relação às mulheres. Conquanto Luiza advirta no inicio do terceiro capítulo da primeira parte: “Das mulheres não falo porque não são importantes”, é delas que mais falará, e não apenas através das chamadas “baronesas loucas”, e nem tão loucas, mas enlouquecidas pelo patriarcalismo castrador, mas também através da voz de uma personagem como Elisa, aparição fulgurante e iluminada como um relâmpago rápido em noite escura, em toda sua leveza, inteligência, paixão e revolta femininas vivas contra o status quo de mulheres emudecidas e apagadas que fizeram o cenário das fazendas do Vale do Paraíba e das casas grandes – ali, onde “nenhuma delas foi feliz”.
Dessas e de outras vozes submersas e emudecidas no decorrer da história fala a autora, que não deixou de lado as peripécias da Maçonaria em suas lutas pela libertação dos escravos e pela República; das idas e vindas de sua própria família em direção à ruína inapelável, que, como as outras, tão aprisionadas estavam em suas próprias redes por sistemas de parentesco que garantiam a limpeza da raça branca que pouco lhes sobrou em termos materiais. Contudo, restou o que ficou do talento manifestado em alguns membros daquelas antigas gerações.
Eliza é um destes membros que, conquanto tenha vivido um curto espaço de tempo no mundo, manifestou possuir a inteligência, a vivacidade e outras qualidades intelectuais e sensíveis que surpreendemos agora neste excelente romance com fôlego para contar a história que envolveu a saga dos Teixeira Leite e outras famílias. Eles fizeram, apesar da nódoa escravista, a grandeza e o brilho da Monarquia e de uma época de ouro da província e hoje Estado do Rio de Janeiro. Parabéns Luiza.
Marcia Cavendish Wanderley é pernambucana, professora de sociologia da literatura da UFF, e autora dos livros A voz embargada (São Paulo, Edusp, 1996), Do jeito delas: vozes femininas da língua inglesa (Rio de Janeiro, 7Letras / Faperj, 2008) e Mulheres: prosa de ficção no Brasil no Brasil – 1964/2010 (Rio de Janeiro, Ibis libris / Faperj, 2011). Publicou um livro de poemas: O terceiro jardim (Rio de Janeiro, Editora da Palavra, 2006).
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