sexta-feira, 21 de outubro de 2011

JANAÍNA AMADO E JACINTA PASSOS

JACINTA PASSOS, UMA NOVANTIGA POETA

JANAÍNA AMADO


Janaína Amado tem transitado entre a história e a literatura, com publicações nas duas áreas. Aposentou-se como professora titular do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). É autora ou co-autora de 20 livros na área de história, alguns destinados a escolas, outros ao público adulto. Publicou também livros de ficção, como o romance Dandara (São Paulo, Maltese, 1995) e três volumes infanto-juvenis. Organizou Jacinta Passos, Coração militante (Salvador, EDUFBA/Corrupio, 2010) contendo a obra e a biografia da poeta e jornalista baiana Jacinta Passos, sua mãe. Seu pai é o escritor e tradutor James Amado, irmão de Jorge Amado. Eis o depoimento de Janaína sobre Jacinta:

"Ela vivenciou a Bahia do início do século XX, imersa na experiência longa e recente da escravidão: senhores e senhoras, os brancos baianos, alicerçados em terras, religião, racismo e alianças políticas, mandavam, enquanto o povo humilde, analfabeto, negro ou mulato obedecia sem remuneração, ao som de suas danças afro-brasileiras e suas revoltas.

Ela vivenciou a Salvador dos anos 1930 e início dos 40, quando a pequena e provinciana cidade da Bahia despertava para os debates literários que rompiam com a tradição parnasiana, para o movimento das esquerdas e das agitações estudantis, as passeatas exigindo nas ruas o fim da Segunda Guerra e das ditaduras, na Europa e no Brasil.

Ela vivenciou a pequena porém agitada São Paulo de meados dos anos 40, quando os intelectuais se uniram para fundar a Associação Brasileira de Escritores e contribuíram para a restauração da democracia no país, quando o Partido Comunista do Brasil foi pela primeira vez legalizado, elegendo Luiz Carlos Prestes e outros para comporem a Assembléia Nacional Constituinte, na democracia.
Ela vivenciou a fervilhante capital da República do inicio dos anos 50, o Rio de Janeiro onde tudo acontecia, da vida noturna trepidante ao vigor dos debates intelectuais e das decisões políticas fundamentais, o centro da vida do país.

Ela vivenciou paixões intensas, por homens que a amaram e alguns a abandonaram. Vivenciou a maternidade, gerando uma filha da qual foi afastada. Vivenciou durante três décadas a experiência ilegal, clandestina e estigmatizadora de militante do Partido Comunista, tendo sido presa. E, a partir de 1951, vivenciou a violência extrema dos diversos internamentos em sanatórios, tratada a eletrochoques, injeções de insulina e isolamento severo, vindo a morrer quando internada.

Todas essas vivências, ela expressou no jornalismo — foi uma das mais ativas jornalistas da Bahia na década de 1940 — e, sobretudo, na poesia. Rabiscando poemas desde muito jovem, publicou em vida quatro livros de poesia elogiados pelos maiores críticos e intelectuais da época (Aníbal Machado, Gabriela Mistral, Oswald de Andrade, José Paulo Paes, José Mindlin, Antonio Cândido...), e escreveu literatura, em poesia e prosa, durante toda a vida, inclusive quando interna, até a véspera de sua morte.

Estamos falando de Jacinta Passos (1914-1973), poeta, escritora, intelectual e jornalista nascida de família rural abastada em Cruz das Almas, Recôncavo da Bahia, católica fervorosa que se transformou em comunista ardorosa, mulher de hábitos livres num Brasil machista, casada em 1944 com o jornalista e escritor James Amado (irmão de Jorge Amado) e, a partir de 1951, diagnosticada como esquizofrênica paranóide, separada e sozinha, vindo a falecer como louca em um sanatório de Aracaju.

As trajetórias literária e humana de Jacinta Passos ficaram esquecidas nas décadas seguintes à sua morte, pois as pequenas tiragens de seus livros estavam esgotadas, pouco se sabendo sobre sua existência atribulada. Recentemente, a poeta voltou a ser alvo de interesse, com a publicação de uma primeira biografia (Dalila Machado, A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador, 2000), de um livro de ensaios (Gilfrancisco, Jacinta Passos: a Busca da Poesia. Aracaju, 2007), de uma monografia de Especialização (Danielle Fuad, Passagem de Jacinta Passos pelo Jornal “O Imparcial” (1943). Salvador, 2008), e de Jacinta Passos, coração militante (Salvador, Edufba/Corrupio, 2010), volume organizado por sua filha Janaína Amado, que reúne toda a poesia e a prosa, inclusive a inédita, de Jacinta, uma nova biografia, sua fortuna crítica, diversas fotografias — que revelam uma belíssima mulher — , além de ensaios de escritores e críticos produzidos especialmente para a edição. Foi criado ainda o site http://jacintapassos.com.br.

Jacinta Passos com Janaína em criança


A poesia de Jacinta Passos, que apenas começa a ser desvendada, é lírica e política, as duas vertentes muitas vezes se mesclando. Seu primeiro livro, Momentos de poesia, de 1942, revela a profunda experiência mística da autora: Senhor,/eu quis fazer de minha vida/meu mais belo poema em teu louvor. Ou:Ouço vozes estranhas/[...]São vozes de sofrimento, de amarguras,/vozes de todas as criaturas/que falam por minha voz./Todas as criaturas que sofreram/ esta ânsia indefinida/ – angústia milenária como a vida –/ de querer atingir o inatingível (O Mar).

A experiência avassaladora do amor está presente desde o primeiro livro: Existimos fundidos num ser único/ que ignora a sucessão no tempo, [...] como um astro sem memória perdido no espaço sem princípio e sem fim (O Momento eterno). Nos segundo e terceiro livros, Canção da partida, de 1945, e Poemas políticos, de 1951, o amor desabrocha em erotismo: Agora teu corpo é fruto./Peixe e pássaro, cabelos de fogo e cobre./ Madeira e água deslizante, fuga/ ai rija/ cintura de potro bravo (Canção do amor livre).

Dois outros temas são caros à poesia de Jacinta Passos: a política e a situação da mulher, o segundo contido no primeiro. Seu último livro, A Coluna, de 1958, é um longo poema épico sobre a Coluna Prestes. Mas raramente Jacinta foi panfletária. Seus versos transformaram política em boa poesia, como em “1935”, sobre a fracassada revolta comunista deste ano, que assim começa: Tenso como rede de nervos/pressentindo ah! Novembro/ de esperança e precipício./Fruto peco. É sobretudo a mulher pobre, duplamente oprimida, a protagonista de vários versos de Jacinta: Nós somos gente marcada/– ferro em brasa em boi zebu –/ninguém precisa dizer:/ Bernadete, quem és tu? (Canção da partida). E: [...] Mulher virgem, condição/para homem dar – nobre gesto –/ resto duma divisão/ se a divisão deixou resto./[...] A flor caída no rio/que a leva para onde quer,/sabia disso e caiu,/seu destino é ser mulher (Canção simples).

Mas talvez seja a evocação da infância “o princípio organizador da obra de Jacinta Passos”, como concluiu o poeta Fernando Paixão. Em seus poemas líricos que evocam a cultura popular de sua Cruz das Almas natal, Jacinta “se apropriou do espírito narrativo do povo e o devolveu crescido e com roupagem nova”, explicou o escritor e crítico Ildásio Tavares. E Jacinta sai cantando: Boi da cara preta não não meu boizinho,/ não pegue neném, não, ele é meu filhinho (Cantiga de ninar). Ou: Camilo, você é pobre/e nunca foi senador,/mas por que é igualzinho/ao retrato de vovô? Ou ainda: Tanta laranja madura/ai tanta!/que aroma vem do quintal./A maré já deu passagem/cresce meu canavial/minha vara de condão/cavaleiro, teu punhal./ Jasmim da noite floriu./ Jasmim./Acabou-se o bem e o mal./Já tirei os meus sapatos,/Vesti meu manto real (Chamado de amor). "

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