Miriam Mambrini
MENINO
O menino entra na sala descalço, vestido num pijama de malha desbotado. As luzes estão apagadas, mas, na luminosidade difusa que vem do corredor, consegue distinguir a mulher diante da janela, olhando para fora. A mãe. Sua mãe. Ela dá um longo suspiro e esfrega o nariz com o dorso da mão.
- Você tá chorando, mamãe?,
Ela se assusta ao ouvir a voz do filho. Sem se voltar, responde:
- Não. É o resfriado.
- Tá frio aqui – diz o menino, se aconchegando a ela, buscando o calor do seu corpo.
A mulher fecha a janela, mas continua olhando através da vidraça. Ao lado, na ponta dos pés, o filho olha também.
- Papai tá demorando, não é? – pergunta depois de algum tempo.
- Ta – diz ela num tom duro.
- Ele deve ter ido tomar um chope com os amigos. Às vezes ele vai, não é?
Ela olha o relógio, que antes já consultou dezenas de vezes, e percebe que os ponteiros estão prestes a se juntar.
- Meia-noite! Que é que você tá fazendo acordado a esta hora? Vai pra cama, menino!
- Estou com insônia.
Ela dá um risinho sem alegria.
- E você lá sabe o que é insônia?
- Sei. É ficar na cama sem dormir. Desde que você me mandou pra cama eu estou lá sem dormir.
- Então deita no sofá. Quando o sono vier, você vai pra cama.
- Você fica comigo?
Vão os dois para o sofá. A mãe põe no colo a cabeça do filho e brinca distraída com seu cabelo cacheado, até que a respiração tranqüila e regular a convence de que ele dormiu. Então, desliza o corpo com cuidado, levanta-se, coloca uma almofada sob a cabeça do menino e volta a olhar pela janela.
- Não tou dormindo – diz ele de repente, abrindo os olhos – Você conta uma história?
- Agora não.
- Conta!
- Não insiste, menino!
Ele ainda está encolhido no sofá, de olhos postos na mãe.
- Não fica preocupada, não aconteceu nada com o papai. Ele já chega.
Ela se irrita:
- E quem disse que eu estou preocupada? Se tiver acontecido alguma coisa, pior pra ele!
O menino se senta no sofá e balança as pernas, batendo-as de encontro ao estofado.
- Mamãe... você vai se separar do papai? – pergunta hesitante.
- De onde é que você tirou essa idéia, Lucas?
- Foi você que disse. Eu ouvi. Foi num outro dia que eu tive insônia. Quando o papai chegou, você disse pra ele que, se continuasse assim, o jeito era vocês se separarem.
A mãe se senta perto do menino e fala num tom tranquilizador:
- Aquilo não foi pra valer.
- Então quer dizer que vocês não vão se separar?
- Não.
- Se vocês se separassem, eu me matava – diz ele, dramático.
Ela abraça o filho e o aperta com força contra o peito.
- Nunca mais diga uma bobagem dessas. Onde já se viu?
Tem vontade de acender a luz para dissipar todas as trevas, mas desiste, pensando que a luz acesa vai despertar o filho de todo.
– Vocês não vão se separar, não é? – insiste ele.
– Não. Mas se um dia por acaso nós nos separarmos, nada vai mudar pra você. Você vai continuar indo ao colégio, à praia, à pracinha ...
O filho a interrompe:
- Quem vai me levar na praia, você ou papai?
- Quem é que você prefere?
- Prefiro o papai. Você tá sempre com medo. Não deixa eu entrar na água direito.
Faz uma pausa e olha interrogativamente para a mãe
– Eu vou continuar morando com você aqui em casa?
- Claro.
- E o papai, aonde é que ele vai morar?
- Ô Lucas, acaba com essa história. Eu não vou me separar do seu pai.
- Você jura?
- Jurar, eu não posso porque não depende só de mim.
- Ah, você não jurou, quer dizer que vocês podem se separar.
Por entre as sombras da sala, a mãe entrevê o rosto concentrado do menino. Aos pouco, ele se descontrai.
– Se vocês se separarem, vou fazer feito a Fernanda, que mora com a mãe e sai com o pai no sábado. Ela disse que é maneiro, o pai leva ela onde ela quer, até no parque de diversões. Ela já foi na montanha-russa.
- Tá vendo? Não é tão ruim assim.
- A Fernanda agora tá chateada porque a mãe vai casar de novo e ela vai ter que morar com o namorado da mãe. Olha, vou te avisando – continua, mudando de tom – se você arrumar um namorado, eu não vou mais querer morar com você. Vou pra casa da minha avó!
- Assim já é demais! Até namorado você resolveu me arranjar!
– Você promete que não arranja namorado?
– Prometo. Agora vai pra cama.
- Deixa eu ficar só um pouquinho mais? Deixa?
- Tá bem. Só mais um pouquinho.
Ele estende os braços, se pendura no pescoço da mãe e dá um beijo molhado no seu rosto.
- Não fica triste, mamãe. Daqui a pouco o papai vai chegar.
Deita-se no sofá, e põe a cabeça no colo da mãe. Os olhos começam a se fechar, mas lembra-se de alguma coisa e os abre de novo.
- Sabe uma coisa engraçada? Outro dia perguntei ao papai se ele ia se separar de você.
A mãe se espanta:
- Perguntou pra ele também?
- É. E ele respondeu parecido com você. Disse que não gostaria que isso acontecesse, mas não dependia só dele – Faz uma pausa, as pálpebras descendo pesadas de sono – Isso é bom, não é?
Já está dormindo quando a mãe responde que é muito bom.
Formada em Letras pela PUC do Rio, Miriam Mambrini é autora de O baile das feias (contos, Obra Aberta, 1994), Grandes peixes vorazes (contos, 7Letras, 1997), A outra metade (romance, 7letras, 2000), As pedras não morrem (novela, Bom Texto, 2004), O crime mais cruel (romance, Bom Texto, 2006), Maria Quitéria 32 (crônicas, Bom Texto, 2008), Vícios Ocultos (contos, Bom Texto, 2009, em livro e audiolivro). Participou de várias antologias de contos e ganhou, entre outros prêmios, o Stanislaw Ponte Preta (1991). Participa do grupo de criação literária Estilingues.
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
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