O escritor decide escrever a história que lhe ocorreu hoje, mesmo sendo triste. Decide escrever essa história que, além de triste, é incômoda. Está constrangido, prestes a pedir desculpas. Mas não pede. Apenas pensa: pena que eu não consiga fazer de outro jeito.
“Claro que eu preferiria escrever histórias alegres. Mas, à minha revelia, sempre saem tristes e incômodas,” ele admite para si mesmo, um segundo antes de se sentar e começar a escrever “Toda a verdade sobre a tia de Lúcia.”
“Preciso falar com alguém sobre essa tia antes que ela morra e sua história se torne definitiva, antes que sua história se transforme, para mim, num epitáfio,” pensa Lúcia.
É o primeiro parágrafo que o escritor escreve. E continua.
Sentada em sua cama, Lúcia observa uma fotografia da sua velha tia Lina, que acabou de descobrir numa gaveta do seu armário, num maço de fotos antigas, tiradas ainda em Solinas. Nesta, além da tia, aparecem ainda ela própria, em menina, e sua mãe.
A tia, de quase 90 anos, mora em Solinas. Ela e Ramiro, o filho de Lúcia, que também ainda mora lá, são os únicos parentes próximos lhe restam. Como Lúcia não se casou novamente e, de uns tempos para cá, seus relacionamentos amorosos cessaram, sua solidão se tornou radical.
Nem amizades de verdade ela tem: jamais se entendeu bem com as pessoas, no Rio, e continua mais ligada, interiormente, às antigas amigas de Solinas.
Lúcia teve de deixar o filho com sua mãe, quando se separou do marido e veio trabalhar no Rio. (Preciso descobrir o motivo grave e secreto para essa separação, pensa o escritor. Lúcia foi embora de repente, sem tratar nem de pensão do ex-marido.)
No início, ela levou Ramiro, mas era difícil conseguir alguém que tomasse conta dele, quando Lúcia saía. Ela ficava muito preocupada com o que poderia acontecer com menino, não conseguia nem trabalhar direito. E, quando voltava, Ramiro dizia sempre que queria ir para Solinas, morar com sua avó. O que acabou acontecendo.
Depois da morte da mãe de Lúcia, Ramiro, a essa altura já um engenheiro, disse a ela: “Agora que minha avó morreu, não quero mais ter o desprazer de ver sua cara na minha frente. Se ainda via você, era porque ela pedia.”
Uma completa mentira, Lúcia tinha certeza. A velha jamais pediria ao seu filho que continuasse seu amigo. Ao contrário, sempre fez tudo para separar os dois. Seu golpe de mestre foi o testamento que deixou, deserdando Lúcia em favor de Ramiro.
Isso provocou a ruptura definitiva entre mãe e filho.
Inesperadamente, o carinho que tia Lina lhe demonstra se tornou muito importante para Lúcia.
A tia usa frases de uma bondade antiga: “Nossa Senhora cubra você com seu manto de luz.” Repete: “Você é uma filha para mim, uma verdadeira filha.” E continua a chamá-la de Lucinha, como ninguém mais chama, há muito tempo.
Quando fala com tia Lina pelo telefone, Lúcia visualiza com ternura sua imagem: os óculos de lentes grossas, os cabelos já inteiramente brancos e ralos, a bengala que ela usa para caminhar.
Mas não consegue deixar de lado suas dúvidas quanto à sinceridade da tia – o carinho não será um engodo? Tia Lina, afinal, era tão unida com a irmã dela, a mãe de Lúcia.
E, se de fato a tia a ama, como diz, por que não lhe contou do testamento, quando a família inteira sabia de tudo e só ela, Lúcia, foi apanhada de surpresa?
Lúcia, às vezes, acha o discurso da tia parecido com o pranto das carpideiras, tudo fingimento treinado.Mas está tão carente de qualquer tipo de carinho que se deixa envolver, de qualquer forma.
Hoje, bem cedo, Lúcia recebeu um telefonema da tia. Em seguida, como de costume, chorou um pouco. Por que chora, todas as vezes em que fala com tia Lina? Talvez porque afeto, para ela, está associado com sofrimento, pensa.
Logo depois do telefonema, Lúcia se lembrou de uma certa fotografia. Onde estaria? Teve uma intuição, foi abrir a gaveta do armário - e lá a encontrou.
Sim, essa foto que ela agora observa, demoradamente, antes mesmo de tomar o seu café e trocar de roupa para ir trabalhar.
Tia Lina, sua mãe e ela estão na margem de um rio, em Solinas, onde há uma fileira de árvores finas e altas.
A tia usa um penteado antigo, com um grande pimpão, e Lúcia lembra, num relâmpago, que esse pimpão era feito com um enchimento de pano que ela vira, certa vez, na casa da tia Lina.
Agora, olha para sua mãe: linda, como sempre. Muito mais bonita do que Lúcia jamais fora. Menina, como aparece na foto, ela era feia, magríssima e com uns dentes tortos.
Já sua mãe parece uma estrela de cinema, num filme de depois da Segunda Guerra Mundial: batom escuro, saia justa na altura dos joelhos, de um tecido quadriculado, miúdo e escuro, e uma blusa de seda branca com mangas compridas e fofas e punhos abotoados.
Lúcia se levanta, vai até o banheiro, pega uma tesoura. Volta para a cama e corta a fotografia pela metade, separando a imagem da sua mãe, que rasga em pedacinhos e vai jogar no saco de lixo.
Foi demais o que a mãe fez com ela com aquele testamento, pensa, cheia de raiva. E fez isso mesmo sabendo das suas dificuldades financeiras, do seu novo emprego mal pago.
O testamento está obrigando Lúcia a fazer economias do tipo que distorce a alma de uma pessoa. Ela se tornou alguém que não pode mais comprar uma blusinha nova nem um CD de harpas celtas.
Resta decidir, agora, o que fará com a outra metade da foto, a parte em que ela aparece com tia Lina.
Num arquivo diferente, em seu computador, o escritor faz um resumo da vida de Lúcia, para usar em sua história.
O pai, que tinha uma boa situação financeira, morreu quando ela era ainda pequena. Todos os bens da família ficaram com sua mãe.
Mais tarde, já adulta, Lúcia não pensou em reivindicar direitos, achou que não era preciso, sendo filha única.
Não tinha feito um curso universitário porque sua mãe achou que não valia a pena, era bobagem, “melhor seria arrumar um empreguinho enquanto esperava marido.”
Lúcia, que naquele tempo era fraca e tola, deixou-se levar e arrumou um emprego que detestava. Então, nem essa saída ela teve, a de uma profissão rendosa.
Seria por causa da fuga de Lúcia para o Rio que sua mãe quisera castigá-la? Indaga-se o escritor. Mas não, ele conclui.
Lúcia tem certeza, ele escreve, de que o ódio da sua mãe era coisa mais antiga. Imperdoável, para mãe de Lúcia, era o próprio fato de ela ter nascido.
Sua mãe a odiava por causa do pai dela, escreve em seguida o escritor. Tinha repulsa pelo marido, uma repulsa que se estendeu à filha, continua ele a escrever.
Depois, de volta ao arquivo principal, o escritor passa a palavra à própria Lúcia, que conta seus primeiros tempos no Rio.
“Logo que cheguei, fiquei numa pensão no Catete, usando algumas economias que tinha. Procurei uma Antiga Amiga de Solinas e, a conselho dela, que conseguira seu emprego assim, esquadrinhei muitas páginas de Classificados.
Afinal, consegui ficar como secretária de uma firma importadora. Sempre gostei de estudar inglês, foi o que ajudou. Além, claro, da boa aparência que eu já tinha, aos 30 anos.
O salário deu para alugar um quarto-e-sala em Copacabana e então meu filho veio e ficou uns tempos comigo, antes de voltar. Mas férias e feriados, sempre eu sempre visitei Ramiro em Solinas.
Mais tarde, na casa dos 50, fui demitida, tive de me contentar com outro emprego de salário inferior.
O pior de tudo, meu pai morreu. Ele, que sempre me dizia: ‘Se precisar de alguma coisa, é só pedir.’”
O escritor, que é jornalista free-lancer, depois de um período desocupado recebe uma porção de pedidos de matérias.
E pára temporariamente sua história. Deixa Lúcia imóvel, sentada na cama, com os olhos voltados para a velha fotografia.
“Claro que eu preferiria escrever histórias alegres. Mas, à minha revelia, sempre saem tristes e incômodas,” ele admite para si mesmo, um segundo antes de se sentar e começar a escrever “Toda a verdade sobre a tia de Lúcia.”
“Preciso falar com alguém sobre essa tia antes que ela morra e sua história se torne definitiva, antes que sua história se transforme, para mim, num epitáfio,” pensa Lúcia.
É o primeiro parágrafo que o escritor escreve. E continua.
Sentada em sua cama, Lúcia observa uma fotografia da sua velha tia Lina, que acabou de descobrir numa gaveta do seu armário, num maço de fotos antigas, tiradas ainda em Solinas. Nesta, além da tia, aparecem ainda ela própria, em menina, e sua mãe.
A tia, de quase 90 anos, mora em Solinas. Ela e Ramiro, o filho de Lúcia, que também ainda mora lá, são os únicos parentes próximos lhe restam. Como Lúcia não se casou novamente e, de uns tempos para cá, seus relacionamentos amorosos cessaram, sua solidão se tornou radical.
Nem amizades de verdade ela tem: jamais se entendeu bem com as pessoas, no Rio, e continua mais ligada, interiormente, às antigas amigas de Solinas.
Lúcia teve de deixar o filho com sua mãe, quando se separou do marido e veio trabalhar no Rio. (Preciso descobrir o motivo grave e secreto para essa separação, pensa o escritor. Lúcia foi embora de repente, sem tratar nem de pensão do ex-marido.)
No início, ela levou Ramiro, mas era difícil conseguir alguém que tomasse conta dele, quando Lúcia saía. Ela ficava muito preocupada com o que poderia acontecer com menino, não conseguia nem trabalhar direito. E, quando voltava, Ramiro dizia sempre que queria ir para Solinas, morar com sua avó. O que acabou acontecendo.
Depois da morte da mãe de Lúcia, Ramiro, a essa altura já um engenheiro, disse a ela: “Agora que minha avó morreu, não quero mais ter o desprazer de ver sua cara na minha frente. Se ainda via você, era porque ela pedia.”
Uma completa mentira, Lúcia tinha certeza. A velha jamais pediria ao seu filho que continuasse seu amigo. Ao contrário, sempre fez tudo para separar os dois. Seu golpe de mestre foi o testamento que deixou, deserdando Lúcia em favor de Ramiro.
Isso provocou a ruptura definitiva entre mãe e filho.
Inesperadamente, o carinho que tia Lina lhe demonstra se tornou muito importante para Lúcia.
A tia usa frases de uma bondade antiga: “Nossa Senhora cubra você com seu manto de luz.” Repete: “Você é uma filha para mim, uma verdadeira filha.” E continua a chamá-la de Lucinha, como ninguém mais chama, há muito tempo.
Quando fala com tia Lina pelo telefone, Lúcia visualiza com ternura sua imagem: os óculos de lentes grossas, os cabelos já inteiramente brancos e ralos, a bengala que ela usa para caminhar.
Mas não consegue deixar de lado suas dúvidas quanto à sinceridade da tia – o carinho não será um engodo? Tia Lina, afinal, era tão unida com a irmã dela, a mãe de Lúcia.
E, se de fato a tia a ama, como diz, por que não lhe contou do testamento, quando a família inteira sabia de tudo e só ela, Lúcia, foi apanhada de surpresa?
Lúcia, às vezes, acha o discurso da tia parecido com o pranto das carpideiras, tudo fingimento treinado.Mas está tão carente de qualquer tipo de carinho que se deixa envolver, de qualquer forma.
Hoje, bem cedo, Lúcia recebeu um telefonema da tia. Em seguida, como de costume, chorou um pouco. Por que chora, todas as vezes em que fala com tia Lina? Talvez porque afeto, para ela, está associado com sofrimento, pensa.
Logo depois do telefonema, Lúcia se lembrou de uma certa fotografia. Onde estaria? Teve uma intuição, foi abrir a gaveta do armário - e lá a encontrou.
Sim, essa foto que ela agora observa, demoradamente, antes mesmo de tomar o seu café e trocar de roupa para ir trabalhar.
Tia Lina, sua mãe e ela estão na margem de um rio, em Solinas, onde há uma fileira de árvores finas e altas.
A tia usa um penteado antigo, com um grande pimpão, e Lúcia lembra, num relâmpago, que esse pimpão era feito com um enchimento de pano que ela vira, certa vez, na casa da tia Lina.
Agora, olha para sua mãe: linda, como sempre. Muito mais bonita do que Lúcia jamais fora. Menina, como aparece na foto, ela era feia, magríssima e com uns dentes tortos.
Já sua mãe parece uma estrela de cinema, num filme de depois da Segunda Guerra Mundial: batom escuro, saia justa na altura dos joelhos, de um tecido quadriculado, miúdo e escuro, e uma blusa de seda branca com mangas compridas e fofas e punhos abotoados.
Lúcia se levanta, vai até o banheiro, pega uma tesoura. Volta para a cama e corta a fotografia pela metade, separando a imagem da sua mãe, que rasga em pedacinhos e vai jogar no saco de lixo.
Foi demais o que a mãe fez com ela com aquele testamento, pensa, cheia de raiva. E fez isso mesmo sabendo das suas dificuldades financeiras, do seu novo emprego mal pago.
O testamento está obrigando Lúcia a fazer economias do tipo que distorce a alma de uma pessoa. Ela se tornou alguém que não pode mais comprar uma blusinha nova nem um CD de harpas celtas.
Resta decidir, agora, o que fará com a outra metade da foto, a parte em que ela aparece com tia Lina.
Num arquivo diferente, em seu computador, o escritor faz um resumo da vida de Lúcia, para usar em sua história.
O pai, que tinha uma boa situação financeira, morreu quando ela era ainda pequena. Todos os bens da família ficaram com sua mãe.
Mais tarde, já adulta, Lúcia não pensou em reivindicar direitos, achou que não era preciso, sendo filha única.
Não tinha feito um curso universitário porque sua mãe achou que não valia a pena, era bobagem, “melhor seria arrumar um empreguinho enquanto esperava marido.”
Lúcia, que naquele tempo era fraca e tola, deixou-se levar e arrumou um emprego que detestava. Então, nem essa saída ela teve, a de uma profissão rendosa.
Seria por causa da fuga de Lúcia para o Rio que sua mãe quisera castigá-la? Indaga-se o escritor. Mas não, ele conclui.
Lúcia tem certeza, ele escreve, de que o ódio da sua mãe era coisa mais antiga. Imperdoável, para mãe de Lúcia, era o próprio fato de ela ter nascido.
Sua mãe a odiava por causa do pai dela, escreve em seguida o escritor. Tinha repulsa pelo marido, uma repulsa que se estendeu à filha, continua ele a escrever.
Depois, de volta ao arquivo principal, o escritor passa a palavra à própria Lúcia, que conta seus primeiros tempos no Rio.
“Logo que cheguei, fiquei numa pensão no Catete, usando algumas economias que tinha. Procurei uma Antiga Amiga de Solinas e, a conselho dela, que conseguira seu emprego assim, esquadrinhei muitas páginas de Classificados.
Afinal, consegui ficar como secretária de uma firma importadora. Sempre gostei de estudar inglês, foi o que ajudou. Além, claro, da boa aparência que eu já tinha, aos 30 anos.
O salário deu para alugar um quarto-e-sala em Copacabana e então meu filho veio e ficou uns tempos comigo, antes de voltar. Mas férias e feriados, sempre eu sempre visitei Ramiro em Solinas.
Mais tarde, na casa dos 50, fui demitida, tive de me contentar com outro emprego de salário inferior.
O pior de tudo, meu pai morreu. Ele, que sempre me dizia: ‘Se precisar de alguma coisa, é só pedir.’”
O escritor, que é jornalista free-lancer, depois de um período desocupado recebe uma porção de pedidos de matérias.
E pára temporariamente sua história. Deixa Lúcia imóvel, sentada na cama, com os olhos voltados para a velha fotografia.
...
Estranhamente, sem nenhum motivo aparente, mesmo estamdp muito ocupado, nesse período o escritor começa a pensar em anjos.
Primeiro, vem uma imagem que parece de sonho, embora ele esteja acordado: anjos voam de um lado para outro, despejando flores em cima de um farol.
Num estado quase de transe, o escritor, que às vezes pinta, faz um pequeno quadro onde aparecem o farol, uma lua imensa, estrelas douradas e muito anjos.
Pensa: são anjos misteriosos como num quadro surrealista. Anjos sérios, graves, como no filme “Asas do desejo,” de Wim Wenders.
E recita as “Elegias de Duíno”, de Rilke : “Quem, se eu gritasse, me escutaria, entre as hierarquias dos anjos...”
Depois de algum tempo, já com menos trabalho, o escritor volta à história de Lúcia e da sua tia.
Claro que tia Lina não é nenhuma santa, argumenta Lúcia consigo mesma, tentando racionalizar uma relação que assume proporções imprevistas e a faz pensar em voltar para Solinas.
Na verdade, não apenas por causa da tia Lina, mas pela falta de dinheiro. O que mais Lúcia teme é ser obrigada a sair de Copacabana, ir para a Zona Norte.
O escritor escreve que Lúcia vai agora para a cozinha, tira da geladeira um mamão papaia, coloca duas torradas no forno, põe água para ferver. Tem de tomar logo seu café e se preparar para ir trabalhar, não deve chegar novamente atrasada, adverte a si mesma.
Mas, enquanto isso, continua a julgar mentalmente sua tia Lina.
Claro que a tia sabia do testamento, mas não lhe contou nada. E o imenso apartamento da sua mãe e os investimentos dela, que vinham do tempo do marido vivo, e um terreno, e uma casa de praia, tudo passou diretamente para Ramiro.
Surgiu até, Lúcia não sabia como, um documento forjado em que ela concordava com os termos do testamento.
Rasgará ou não a foto da tia Lina?
Lúcia toma rapidamente seu café. Tem medo de ser novamente demitida. Na véspera, já chegara atrasada ao trabalho.
Está cansadíssima de ser secretária e, atualmente, uma secretária mal paga. Mas, se parar de trabalhar, o que será dela?
Seria bem melhor, pensa, lavando a xícara e o prato, se acreditasse mesmo no amor da tia Lina.
Seria bem melhor se pudesse, sem dúvidas nem temores, continuar a ouvir a voz doce e cantante da tia, que vem pelo telefone, consoladora, lá de Solinas.
Resistirá ela a uma vida inteiramente sem amor? É o que Lúcia se pergunta, neste momento, antecipando com um arrepio a solidão arrasadora de uma existência assim.
Tenho de enxergar a realidade, tia Lina escondeu o testamento de mim, pensa Lúcia outra vez.
Mas, imediatamente, torna a perdoar a tia, lembrando de um presente dela, que recebeu dias atrás, pelo correio: uma camiseta com a imagem de Nossa Senhora da Glória.
Olhando para aquele objeto ingênuo e tosco, Lúcia chorou novamente, e agora com força. Pensou, com raiva, que era de propósito que tia Lina lhe mandava presentes assim, patéticos.
Só parou de chorar quando lembrou do advogado lhe dando, pelo telefone, a notícia do testamento.
Prevendo a pobreza na velhice, Lúcia uivava: “Não, não, não, não.” Mas era “sim,” e o advogado foi muito objetivo, quando explicou os detalhes.
O escritor reflete se vale a pena incluir em sua história pelo menos um resumo da vida da tia Lina. Decide que sim.
Ingênua e acomodada, Claudelina no entanto se casou por paixão com um tipo meio aventureiro, um forasteiro em Solinas. Ao contrário da mãe de Lúcia, que fez um casamento rico e sem amor.
Previsivelmente, o desastre foi completo, o marido de Lina logo a abandonou. E ela, depois da separação, Jamais Teve Outro Homem.
Felizmente, era funcionária pública. Tinha seu dinheirinho e o apartamento dos seus pais para morar. Agora, com uma minúscula aposentadoria, continua a viver lá, mesmo já sozinha.
O escritor pensa: é interessante duas criaturas com trajetórias tão diferentes, Lina e Lúcia, estarem agora lançadas numa situação parecida. Sim, de solidão, falta de dinheiro e envelhecimento, em maior ou menor grau.
É uma história horrorosa, conclui. Pelo menos, repete para si mesmo, com certeza colocarei anjos nela.
Lúcia tenta ainda decidir se rasga ou não a fotografia de tia Lina. Como pôde a tia silenciar, sabendo do cruel testamento? Como pôde concordar com o castigo que sua mãe lhe infligira?
Se, pelo menos, Lúcia tivesse levado, no Rio, algum tipo de “vida alegre”, como diria sua mãe. “ Mas, na verdade,” pensa Lúcia, “os dias da minha vida foram todos consumidos pelo trabalho duro. Só que, claro, moro em Copacabana e o pessoal de Solinas acha que isto aqui é uma espécie de covil da devassidão.”
Comentário da sua mãe, que lhe foi contado por alguém, ela não se lembra mais quem: “Lúcia sempre se deu muito bem com coisas dela, mas agora se dará muito mal”.
“Com tanto ódio em redor de mim, uma hora dessas fico sem dinheiro nem comer,” pensa ela, desesperada.
Quando acaba de tomar seu café, Lúcia torna a se sentar na cama e a olhar a fotografia cortada pela metade, agora só com sua tia e ela, na margem do rio, entre as árvores finas e altas.
Mas a tia é humilde, diz Lúcia a si mesma, tentando salvar seu último afeto. Com certeza, ela não contribuiu, de nenhuma maneira, para que o testamento fosse feito.
Por um instante, decide ficar com a metade da foto. “Amanhã vou comprar um porta-retrato para esta parte,” pensa, quase feliz.
Mas logo muda de idéia e tem um pensamento muito doloroso sobre tia Lina. Pensa que ela vive bajulando todo mundo, tirando casquinhas aqui e acolá, fazendo permanentemente o papel de boa, mas não é sincera. Tudo é fingimento, imagina Lúcia.
É quando o escritor sente que precisa pôr um ponto final em sua história. Não chegou a inventar o motivo para a separação de Lúcia e seu marido, o motivo grave e secreto que ele sabe que existiu, mas não podia ser revelado a ninguém e ela aceitou a culpa.
E o escritor sente que não disse tudo o que era preciso sobre Lúcia e sua tia. Mas não agüenta continuar, precisa parar.
Dispõe-se, então, a responder à pergunta: Lúcia rasga ou não a fotografia da tia Lina?
Em arquivo separado, ele coloca duas possibilidades.
A) Lúcia conclui que, sejam quais forem os defeitos da sua tia, ela ainda é a coisa mais próxima de uma mãe que conhece. E decide não rasgar a fotografia e continuar retribuindo o amor da Tia Lina.
B) Lúcia decide rasgar a foto. Sua tia estava muito próxima da sua mãe e sabia de tudo. Impossível uma pessoa que a amasse não lhe contar sobre o testamento, talvez ainda a tempo de Lúcia evitar que a crueldade se consumasse.
A decisão do escritor vem inesperadamente rápida. O correto é a possibilidade B, ele conclui.
Lúcia rasga a foto da sua tia e, como fez com a da sua mãe, joga os pedacinhos no saco do lixo.
Todo o seu amor neste mundo tinha sarado, ela sentiu, como uma ferida que cicatriza e não deixa nenhuma dor. Não chorará mais.
Segue para o banheiro, toma um banho, arruma-se para ir trabalhar. É melhor chegar atrasada do que não comparecer.
E, nos dias seguintes, Lúcia se movimenta pela vida a fora de maneira aparentemente normal: dorme sem insônia e acorda com coragem para dar um pulo da cama e seguir adiante.
Mas é apenas uma trégua, reflete o escritor. Desacreditar do amor da tia Lina está além da capacidade de Lúcia para suportar.
Sem a tia, só lhe resta aguardar a chegada dos Anjos.
Poucos dias depois. Lúcia começa a ver Anjos em toda parte. Anjos imensos e sombrios voam por cima do aglomerado dos prédios de Copacabana; um por um, descem, pousam no peitoril da sua janela e conversam com ela.
Deixou de ir ao trabalho, já não sai mais de casa, sempre esperando por eles.
Quando os anjos não aparecem, ela os invoca, com palavras que não sabe de onde vêm: MEBAHEL, HARIEL, HEKAMIAH!
Anjos cabalísticos, com nomes hebraicos, pensa o escritor, acabando de escrever a história que lhe ocorreu hoje.
Mesmo sendo triste.
Está prestes a pedir desculpas, mas não pede.
Apenas pensa: pena que eu não consiga fazer de outro jeito.
Pelo menos, conclui, coloquei anjos nela.
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