segunda-feira, 29 de novembro de 2010

CADERNO DE POESIA

LÚCIO AUTRAN

Lúcio em Barcelona

AZUL

Uma bolha azul
(gelatina
água?)
membrana intangível

Queria afogar a todos
em silêncio
em assepsia
em dias inodoros

A todos tingia
de azul
os homens.
Sem paz contudo

Bolha: azul
de anomia,
impediu a noite
que prometia.

Todavia o dia não devolveu
(mas a face dupla do nada)
Nem era líquido. (Na verdade
havia esperança de um rio

que se rompesse, à cidade lavando,
levando a todos em redemunho)

Não era rio
não era líquido...

era um tempo gelatinoso nos retendo em azul

e paralisia.


VENEZA, LÍNGUA SUBMERSA
(o pesadelo do tempo e o exílio)

Após Mallarmé
um copo de dados
uma copa de dias
um náufrago bienal

Por que
rumei
ao exílio
voluntário?
Porque vi

iluminado
sob um prisma de vidro
e aço:
um copo
de sangue.

(O autor
esperava aplausos
orgulhoso
de seu copo
e de seu sangue)

É esta a língua
do meu tempo?
Lorca! Lorca! Gritei.
(Era só fio de esperança
lembrança de uns versos
não um prenúncio de estética)

“¡Oh sangre dura de Ignácio!
¡Oh ruiseñor de sus venas!
No.
¡Que no quiero verla!
Que no hay cáliz que la contega”

Gritei mesmo por Neruda, poeta
que nem desnuda minhas veias,
secas e vazias: “un plato para el obispo,
un plato de sangre de Almería. Un plato negro,
un plato de sangre de Almería. Un plato destrozado,
desbordado, sucio de sangre pobre”

Era vão:
demais sonoridade
não estaria ali.
Não queria mais ver.
Silenciei para sempre.

Tudo aconselhava a mudez
forma possível
frente à clausura
daquela forma surda.
Caminhei e calei:

Clausura.
Queria apenas sonhar
e acordar com palavras
(inevitável e seminal poesia)
Era minha, a clausura.

Ao exílio voluntário, pois.
Nada a falar ou ouvir.
Não há mais silêncio
(há só silêncio, de uma estridência
que corta a cicatriz da forma)

Perdi a voz na fala dos homens,
via ali senão e apenas
um copo, um signo vazio:
nada é signo, mensagem
tout signe est message?

um copo
em estado de dicionário:
“do latim poculum
vaso para beber
(ou nem isso)

ordinariamente sem asas”
O que lhe dava ares
de falsa ave, vôo nenhum,
composição galiforme
um copo

“Com que os jogadores
de dados
os lançam jogando”
un coup de dés
jogo perdido.

Impossíveis dados
num copo de sangue
SOIT
que
l’Abîme

(que se abriu entre mim
e o gesto
e a língua dos homens)
plane désespérément
era o vácuo sob mim
Caía
por ver esfacelado o piso
do simbólico.
A estética possível.
Cada vez mais só.

Resistira até então
não por reação,
mas por tragédia
de cette conflagration
de l’horizont unanime

Como conflagrar
reagir
à unanimidade ?
Estamos sós, cada vez mais
sós

Como o albatroz
de Charles:
Exilé sur le sol
au milieu
des huées

Ainsi que le fantôme d’un geste
que não é meu
(não me simplifiquem,
o sangue? apenas o acho ridículo
mais do que um copo vazio)

N’ABOLIRA
a ebulição que enlouquece
a abolição
das palavras
do verso pouco que me resta

Estas palavras
dans quelque proche tourbillon d’hilarité et d’horreur
que garimpo na vocação da voz e do silêncio,
onde germinam
à surdez condenadas

Os olhos cansados da voz dos homens
me deparei
com essa língua
que nem do silêncio é digna
une stature mignonne ténébreuse de um copo inútil,

porque cheio de sangue.
Sangue de quem pensava
que isso aboliria
LE HASARD.
Inútil

Toute Pensée émete
un Coup
de
Dés
Maldita poesia

Un coup de dés
n’abolirá
jamais
le hasard.
Maldita poesia

Num copo de sangue
se abriu entre mim
e a língua dos homens
o silêncio.
Maldita poesia
E o sangue...
o sangue
.
.
.

Coagulou-se
.
.
.
como as idéias
.
.
.
Uma cicatriz
sobre a pele

da estética.

Lúcio Autran estreou em 1985, com o livro “O piloto Antônio”. Tem um total de seis livros de poesia publicados, sendo o mais recente “Centro.” Figurou em antologias poéticas. Muito ligado às artes visuais, Lúcio preparou vários catálogos para exposições. Os poemas aqui postados integram o livro "Fragmentos de sonhos e outros ciclos menores", a sair.


NARLAN MATOS TEIXEIRA

Narlan na frente do famoso Café Vesúvio, em San Francisco, onde se reuniam os Beatnicks.


VERSOS ENCANTADOS DESDE LA HABANA

Eu cometo versos
Como quem caminha de madrugada por uma calle de la Habana
e avista sobre um muro debruçadas magnólias
materializadas como se fossem estrelas do mar
ao seu redor ramas verdes lhe guardam da escuridão
outras flores brancas caladas as observam

eu cometo versos
como quem dedilha uma guitarra cigana na Plaza de España em Sevilla
numa tarde onde uma árvore toureia o vento lento
e uma dançarina de flamenco desenha pássaros com seus gestos
(sob sua sombra fresca dorme a poesia)

eu cometo versos
como quem lê Florbela Espanca numa quinta de Lisboa
repousado entre o branco marfim da cidade e o vermelho do sol
na mesa de uma taberna ao lado de uma garrafa de vinho tinto
descubro e me enamoro da musa e da brisa e do sal do mar
ao longe a praia aguarda pelos marinheiros que nunca se foram

eu cometo versos
como uma ilha chilena atenta à espera de um náufrago
como colheres de prata ao sol matinal de Madrid
a desconfiança da liberdade ante um campo florido
como quem vê com alma e por isso não precisa mais dos olhos

Eu cometo versos
Como quem nasce de repente como quem avista a Andaluzia
Como quem brinca com a luz sobre a pele das coisas
Como o vento cochichando com o porto e com as velas brancas
Como quem busca sereias e tesouros em mares perdidos

Eu cometo versos
Como amantes ensandecidos pela beleza ardem numa tarde de Andorra
Como os suicidas que partirão ao amanhecer na carruagem do indizível
Sem cartas nem bilhetes suicida

Eu cometo versos
Como quem comete um crime e aguarda pelo castigo dos deuses.

Nascido em Itaquara, no interior da Bahia, Narlan ensina atualmente na Universidade do Illinois, em Urbana-Champaign, onde também está concluindo seu Doutourado.
Ele obteve o título de Mestre na Universidade do Novo México, com dissertação sobre a Tropicália.Em suas andanças pelo mundo, Narlan conquistou amigos e admiradores na Eslovênia, conheceu os beatniks Lawrence Ferlinghetti e Robert Creeley e participou de uma oficina literária com Derek Walcott, Nobel em 1963. Last but not least, Narlan foi admirador e amigo de Waly Salomão, que o incentivava muito. O poema aqui postado já figurou no famoso blog Madame K, da poeta e jornalista Kátia Borges.


HENRIQUE WAGNER

EM MEMÓRIA DE ILDÁSIO TAVARES
Ildásio Tavares

A VOLTA PARA CASA

De costas para o mar, voltamos à terra,
com seus telefones, carros e postes em movimento.
O corpo se pondo, resolve, provisoriamente,
nossa elegante superfície. Voltamos estupidamente mais vivos,
os olhos cheios d’água, como se quiséssemos afogar,
com toda a segurança de um mar antigo, nossa vista
de sobre o precipício dos ombros de nossos desassossegos.
Voltamos. O corpo buliçoso e cansado dos que lamentam,
praguejam, resolvem. As lojas da cidade continuam abertas
e vendem cartões de aniversário e roupas de verão. As nuvens destoam.
O trânsito é confuso porque obedece à lógica dos dias – não das noites.
Há, no entanto, um silêncio que brota das coisas que têm odor,
feito o cheiro de um nariz envelhecido; e parece velar, contrito,
a imensidão dos pássaros de asas abertas.
Olho para o céu e vejo, sobre o azul de indústria dos seres humanos,
a imensa flor amarela cultivando a terra, agora cheirando
a cágado, folhas de outono e ventania.
...
No dia 31 de outubro passado, o poeta, ficcionista, letrista e professor Ildásio Tavares nos deixou. Grande figura, ninguém como ele entendia de Bahia e de candomblé: era membro da alta hierarquia do Axé Opô Afonjá. O poeta Henrique Wagner nos mandou este belo poema dedicado a ele. Henrique, que já figurou no Sidarta, faz jornalismo cultural e é autor de dois livros de poemas, “O grande pássaro” e “As horas do mundo,” os dois publicados pela editora Letras da Bahia. Recentemente, ele foi premiado por um ensaio sobre cinema.

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