sábado, 30 de outubro de 2010

MINICONTOS DE SONIA COUTINHO

QUATRO TEMPOS

Tela de Garouste

Os dois tomaram o trem em Frankfurt.
Pessoas acenaram calorosamente da plataforma, em despedida, como nunca mais ninguém acenara para ela, em sua vida. Eles acenaram em resposta, por trás do vidro da janela.
O trem seguiu pela margem do Reno e viram castelos muito antigos em cima das colinas.
Ela começou a falar sem parar, enquanto ele ouvia, gentilmente.
Era um homem muito gentil.
E ela era jovem e bonita, sabia que podia falar o quanto quisesse e seria aceita.
Quando chegaram a Colônia, havia outras pessoas da organização à espera deles, na estação.
Uma recepção muito amistosa, não sabia que nunca mais seria recebida assim.
Devia ser tudo para o homem gentil que a acompanhava, e não para ela, conclui agora.
Aquele homem tão gentil e inteligente que, depois da viagem, ela nunca mais viu.
Mas, na ocasião, não lhe ocorreu disso.
Apenas apertou com força as mãos estendidas.
E, de repente, erguendo os olhos para o teto de vidro da estação ferroviária, viu uma torre da Catedral de Colônia.
Então começou a rir, gargalhava com a boca bem aberta, sem tentar esconder, como habitualmente fazia, seus dentes ligeiramente tortos.
“Foi um dos momentos mais felizes da minha vida,” ela conta, vinte anos depois.
De uma vida que, a partir dali, teve poucos momentos assim, ela pensa.
Mas não diz.
+++
Desde pequena conheci a violência, fala a mulher. E ela fica ouvindo.
A mulher continua a falar.
E diz que, até recentemente, não pensava naquilo como violência. Não sabia definir o que tinha acontecido com ela.
Muitas vezes até duvidava que fosse verdade, achava que era tudo imaginação sua. Depois que conversou com uma psicanalista, passou a acreditar.
Mas a pressão em torno era muito forte para que esquecesse tudo, minimizasse. Algumas vezes foi interrompida, quando tentou revelar.
Termina dizendo, com voz abafada, que o homem, afinal, era seu próprio pai.
E ela pensa: essa mulher nunca superará isso, o impacto é forte demais, insuportável.
Ela sabe muito bem como é.
Não se sente capaz de ouvir mais nada do que a mulher tem para dizer.
E novamente se levanta, novamente vai embora.
+++
O período em que ela ia frequentemente a Petrópolis, quase sempre sozinha.
Seu caso com Marcel tinha terminado.
E, no apartamento minúsculo que comprara através dele, a solidão a impedia de dormir.
Marcel, o dono de uma imobiliária lá. O primeiro homem lindo da sua vida.
Mas, como descobriu um pouco mais tarde, muito bem casado. Uma mulher rica, dois filhos.
Quando comprou o apartamento em Petrópolis, o caso já terminara, mas ela ainda amava Marcel.
(Amor, a palavra é um luxo antiquado, pensa. Mas só saberia usar essa, com relação a ele.)
O pequeno apartamento estava caindo aos pedaços, mas Marcel prometeu ajudar na reforma. Deixou-se influenciar, comprou.
E tudo foi trocado no apartamento, que ficou com um piso de lajotas brancas, paredes pintadas de branco. Colocou dentro dele móveis bem coloridos, que comprou no Rio e mandou entregar lá.
Levou também um pequeno aparelho de som. Ouvia Frank Sinatra cantar “Stranger in the Night.” E Ray Charles, “Georgia on My Mind.”
Mas, depois que escurecia, a solidão a impedia de dormir.
Então, passou a subir para Petrópolis, ficar lá apenas durante o dia, e descer antes de escurecer.
Mesmo assim, gostava. Quando vendeu o apartamento foi que percebeu o quanto.
Suas longas caminhadas através do ar transparente e frio, o céu azul do inverno na serra.
Foi obrigada a vender o apartamento porque estava sem dinheiro. E, embora não o visse há muito tempo, ligou para Marcel.
A venda foi às pressas, muito abaixo do preço. Quem sabe ele recebeu alguma coisa por fora, pensou depois.
Perdeu Petrópolis e suas ilusões sobre Marcel.
Mesmo assim, teria perdoado tudo, se não fosse o quadro. Sim, o quadro que ela pintou e deixou pendurado na parede do apartamento.
Tinha trabalhado a tela a partir de esboços que fez lá em Petrópolis, na Praça da Liberdade, diante do chafariz de mil esguichos.
Disse a Marcel que ele podia ficar com os móveis, fazer com eles o que quisesse.
Mas o quadro, o melhor que já pintara em sua vida, o quadro como jamais pintaria igual, ela queria. E ele não devolveu.
Telefonou para seu escritório, para seu celular, não teve mais resposta.
Não chorou quando seus pais morreram. Não chora por seu dinheiro tão curto.
Mas agora, lembrando o quadro, ela se vira de bruços na cama e explode em prantos, com a cara enfiada no travesseiro, como uma criança.
+++
Sempre se surpreende com as transformações causadas pela passagem do tempo. Um processo que sua mente não consegue apreender.
Na véspera, ficara de joelhos no chão, para procurar um anel que rolou para debaixo da sua cama - e quase não conseguiu ficar em pé outra vez. Teve de fazer muita força, o corpo todo doendo.
Dias antes, tentara subir numa cadeira, para tirar a mala da parte de cima do armário, e quase desabou, as pernas não queriam endireitar-se.
Antes, a mudança parecia mais lenta, agora tem a impressão de que se acelerou.
Recusa a frase dramática que lhe vem à cabeça: “Estou muito velha.”
Faz força para pensar que, apesar do desgaste físico, há a compensação de ter adquirido outro tipo de conhecimento da vida, uma nova lucidez.
Mas não consegue acreditar nisso.

Um comentário:

  1. O conto curto tem sua epifania ou motivo definido pelo ponto exato de sua finitude. Daí que, se fosse ele continuado, o ponto exato, o tal ponto, passaria sem o sentido magistral, único e de conclusão, escolhido pelo autor do conto. Sonia o faz com uma sofisticação impressionante. Seu ponto final é multívoco, porque deliberadamente cediço, frágil, quase um ponto de continuação: um ponto que se estende sobre o leitor, em palavra e reflexão. Um convite ao primeiro parágrafo, sempre.

    Henrique Wagner

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