sobre “Atire em Sofia”
Prosa em dolby
“Atire em Sofia,” o primeiro romance de Sonia Coutinho, é um livro definitivo. Com um estilo aprimorado ao longo de cinco livros (O último verão de Copacabana, Venenos de Lucrécia, Uma certa felicidade, O jogo de Ifá, Nascimento de uma mulher), a contista traduzida na Alemanha e jornalista de O Globo dá o salto qualitativo.
A exemplo de outros escritores da década de 70, Sonia Coutinho está fazendo prosa de sistema dolby: dois canais de linguagens superpostas, cujas associações subliminais soam como música. Através desta técnica de linguagem, a autora corta fundo e de forma indolor, expondo o funcionamento dos mecanismos da estrutura do poder pelo lado de dentro.Dentro de nós. O opressor está aqui dentro. Desconsiderá-lo é crime de lesa humanidade.
O sistema dolby envolve o leitor pelo sentimento, sem exigir referencial de leitura. Naturalmente, quanto mais amplo o referencial, mais o texto se amplia. É a tecnologia do futuro em literatura.
A narrativa do romance insinua-se como um ritual encantatório, ao som dos atabaques do candomblé, trechos de ópera mesclados com versos metálicos da Iron Maiden, a poesia de Homero, frases de jazz, rezas, esconjuros, fundindo-se numa sinfonia profana de maldições. Minando por baixo, despertando criptominésias (memórias sepultadas no inconsciente coletivo), começa o deslocamento no tempo e no espaço.
A estrutura do romance é uma construção “em abismo” em três níveis. Maravilhas da ficção. Chega-se a uma Salvador mítica, semelhante a Alexandria, Tanger ou Gaza. Depois de 20 anos de ausência e com olhos de quem já viu tudo, a jornalista Sofia do Rosário volta à terra natal e descobre uma cidade arcaica onde o tempo é circular, encruzilhada de raças pecados inconfessáveis, preconceitos. Terceiro Mundo.
Neste verão, retorna João Paulo, outro jornalista, viciado em uísque, jazz e Scott Fitzgerald. Um anjo exterminador que decola em Salvador para escrev3er a história de Laura Luedi, ex-miss assassinada num hotel de luxo em Copacabana. Ele delira: “Me chame de Stingo, o apelido pelo qual eu era conhecido naquele tempo, se é que alguém me conhecia.” Contudo, nesta zona fora do tempo, os deuses impiedosos castigam os anjos arrogantes que os desafiam.
A punição chama-se Moira, o destino cego. De fato. É um erro subestimar os “deuses” ou os opressores internos. O que ocorre entre Sofia e João Paulo é um duplo equívoco por sobre seus ombros e à revelia de ambos: “Num gesto rápido, cobre a arma com travesseiro e diz: Que sensação esquisita. Estou dividido em dois. Há um que age e outro observa, lá em cima. Este me ordena ‘Atire na miss.’” É o tênue limite entre o sublime e o ridículo, contudo é neste fio de navalha que se desenrola toda a tragédia humana – esta comédia de erros. É a boa ficção de Sonia Coutinho. Mesmo porque não se trata da questão bizantina homem/mulher. O buraco é mais embaixo: o indivíduo. É ele quem morre, é ele quem mata. Enquanto os demônios no porão continuam donos da casa.
Resenha da primeira edição do “Atire em Sofia”, na revista “Isto é”
CLAUDIUS PORTUGAL,
sobre “Uma certa felicidade”
O sonho de todo autor
Um dos maiores sonhos de todo autor é ter toda a sua obra publicada por uma mesma casa editorial. E isto é o que está acontecendo com a romancista e contista baiana Sonia Coutinho. A editora 7 Letras, com a publicação de “Uma certa felicidade”, fecha o ciclo de edições de todos os livros de contos dessa escritora, nascida em Itabuna, mas residindo no Rio de Janeiro há muitos anos, e também jornalista e tradutora. “Uma certa felicidade”, agora na terceira edição revista e ampliada, com mais um conto, teve sua primeira edição em 1976. São ao todo oito histórias.
Histórias que tratam de temas como a deste início do conto “Essas tardes de maio”:
“ É sinistro um apartamento solitário de noite, ainda mais com o telefone mudo. E para quem poderia eu telefonar, a esta hora? Rodrigo não tem celular, ligar para o seu telefone fixo é impossível, a mulher dele pode atender. Ele ficou de vir, mas até agora não apareceu.
Vou até a cozinha, dou outra olhada no relógio de parede, já são onze e meia. Agora, no banheiro, diante do espelho, retoco mais uma vez, - inutilmente, eu sei – a maquilagem.
Fumo outro cigarro, vou à janela do quarto – e espio, amedrontada, a intransponível muralha de concreto, com seus quadrados já apagados, os prédios de repente imensos erguendo-se silenciosos no escuro, como árvores gigantescas de uma floresta toda metal e cimento, nenhuma umidade ou frescor, estranho mecanismo adormecido, Copacabana.”
Em “Uma certa felicidade,” Sonia Coutinho descreve com originalidade e criatividade o universo feminino da solidão, da necessidade financeira, do mundo do trabalho e das dificuldades em uma cidade grande, nos seus movimentos onde pequenos e novos detalhes se incorporam ao cotidiano, onde personagens aparecem e somem, deixando apenas marcas e lembranças. São as mulheres de hoje e de sempre, com seus enigmas, seus amores, suas histórias de vida.
Autora de seis livros de contos, quatro romances e um livro de ensaio, e tendo recebido prêmios como o Jabuti em 1979 e 1999m e o prêmio Clarice Lispector de Conto, da Biblioteca Nacional, em 2006, e participado de inúmeras antologias no Brasil e no exterior, Sonia Coutinho é hoje uma das mais importantes escritoras que temos no Brasil. Sua obra como contista, agora ao alcance de todos, pode finalmente ser lida. Com isto, a Bahia, sua terra, pode finalmente conhecer e admirar esta escritora. Nunca é tarde, sempre dizemos.
Este texto de Claudius foi lido recentemente em seu programa numa rádio de Salvador
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