Sonia Coutinho
Depois que voltei de São Paulo, várias pessoas me perguntaram: “O que você achou da Bienal?” E respondi: “Adorei.” Sim, vesti a camisa da Bienal. Ou melhor, a camiseta.
Na qual está escrita a pergunta que podem ver na foto: “Como a arte pode mudar a vida?” Os dos 159 artistas com trabalhos expostos no pavilhão Cicilo Matarazzo, no Ibirapuera (em boa parte na casa dos 30, 40 anos), tentam – cada qual à sua maneira – responder a essa pergunta.
Como admitiu o curador Agnaldo Farias, em palestra exclusiva para o grupo de Charles Watson, do qual eu participava, nem todos esses artistas sobreviverão. Mas, no momento, é com eles que estão a pesquisa e a inovação contemporâneas.
Eles representam o que está acontecendo agora pelo mundo, em matéria de arte. Então, a recomendação é: mantenha a disponibilidade interior e deixe de lado os preconceitos, para poder aceitar e apreciar o que mostram esses artistas.
Não vamos entrar na detestável tendência que as pessoas têm, de só gostar de artistas e escritores mortos. A própria Clarice Lispector estava meio esquecidinha no fim da sua vida. Morava num apartamento modesto no Leme e passava dificuldades financeiras, fazendo um jornalismo tardio, para sobreviver.
Postumamente, Clarice chegou afinal a glória, que, em vida, ela dizia que desprezava.
Se não sabe nada sobre arte contemporânea, vá à Bienal como uma criança – e estará por dentro de tudo. Encontrei muitas crianças por lá - e pareciam divertir-se muito.
Seja qual for a reação do público, posso dizer que, nos quatro dias em que andei por lá, todos os andares da Bienal estavam cheios de gente.
É natural uma certa perplexidade diante do que é novo. Eu, aliás, esperava ficar totalmente perplexa. Mas, feliz e até surpresa, não fiquei.
Graças, em boa parte, à minha freqüência, há nada menos de 15 anos, aos cursos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Vi com quase familiaridade os vídeos, filmes, desenhos, gravuras, colagens, fotografias na bienal.
Tem muita gente, neste momento, acotovelando-se para ver a retrospectiva de Monet, no Grand Palais, em Paris. Mas é bom lembrar a rejeição furiosa com que ele foi recebido, no século XIX, quando expôs no Salon des Réfusés, junto com os outros Impressionistas, recusados pelo Salon oficial.
O novo costuma provocar rejeições imediatas e burras. A pior de que me lembro foi a de Monteiro Lobato, a Anita Malfatti.
Sobre as obras dela, influenciadas pelo Expressionismo já vitorioso na Europa, escreveu Lobato: “mistificação ou paranoia”. Vamos evitar o provincianismo, gente.
Fernando Cocchiarale
Passei quatro dias em São Paulo e não fui a outro lugar que não à Bienal. Fiquei encantada com uma tão ampla exposição da nova arte, ainda mais com um tema atraente: a relação entre arte e política.
Em quatro dias, não deu para ver tudo, mas o que vi mexeu com minha cabeça. Trouxe o catálogo e continuo lendo-o.
Outra pergunta que me fazem: “E o Nuno Ramos?”Quando cheguei à Bienal, os urubus, graças a Deus, já tinham sido tirados daquela prisão barulhenta e confinada, longe do ar livre.
Comprei há algum tempo o romance “Ó,” do Nuno, premiado com o Telecom. Mas até agora não terminei de ler o livro, que é muito indigesto.
Mas mexeu com a cabeça de muita gente o fato de Nuno Ramos, artista visual, ter ganho o Telecom. A tendência atual é essa mesma, para uma mistura de ofícios. Para não se fechar apenas em um. É hora de interdisciplinaridade, das redes.
Acho que muitos artistas estão, neste momento, testando sua capacidade para lidar com palavras. O que, aliás, historicamente já tem sido feito. Lembrar, de imediato, alguns trabalhos de Picabia, frases escritas na tela. Os Cubistas.
Victor Arruda está com uma exposição assim na Ana Maria Niemeyer.
No próprio catálogo da Bienal, ao pé de cada página, há trechos de obras literárias famosas.
Outra pergunta que me fizeram, na volta de São Paulo: “E o Gil Vicente?” Achei os trabalhos dele antes de mais nada fracos. Franz Manata admitiu, generosamente: “O desenho é bom.”
Muita coisa na Bienal ninguém identificaria como “política”. Há trabalhos políticos de fato, como os de Cildo Meireles ou Antonio Manuel.
E há outros trabalhos que estão “apenas” no território – outra vez segundo o curador Agnaldo Farias - da política da arte, isto entendido, acredito, como “inovação contemporânea.”
Há um trabalho de Kosuth de que gostei muito. Quatro verbetes de dicionário, correspondentes a norte, sul, leste e oeste, cada um montado numa placa metálica. Abre-se diante de você, em sua cabeça, uma imensa extensão geográfica - é poético.
Explica alguma coisa falar de “conceitual contemporâneo”, em relação à Bienal?
Penetramos num “ninho” de Hélio Oiticica. O percurso do pioneiro Hélio é esclarecedor quanto ao que temos hoje em arte.
A pintura e a escultura “expandidas”, saindo da tela e da materialidade. A ideia de “beleza” mudou muito. A ideia de “contemplação” caiu, substituída pela idéia de “interatividade.”
Tive companhia “da pesada” porque fui visitar a Bienal com um dos grupos do competente e sério Charles Watson (Charles é tão sério que às vezes parece mal-humorado, mas adivinho que ele tem muito humor escocês).
Quando menciono companhia “da pesada”, refiro-me, além do próprio Charles, sobretudo ao brilhante professor e curador Fernando Cocchiarale e ao simpático Pedro França (25 anos), professor de História da Arte na EAV.
Mas acabei, a maior parte do tempo, vagando sozinha pelos meandros da Bienal. Sou meio avessa a grupos – e a ficar em pé, ou sentada no chão, durante 12 horas por dia, ouvindo aulas, como meus companheiros fizeram.
Não podendo falar de tudo o que vi, separo, neste momento, umas coisinhas, ao acaso.Destaque para a obra dos brasileiros já “históricos”, vivos ou mortos, como Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica, Carlos Vergara, Cildo Meireles, Antonio Dias, Lygia Pape (está lá aquele trabalho lindo dela, o imenso pano branco do qual emergem cabeças, e que foi apresentado ainda nos anos 70).
E, numa escolha caprichosa, casual, digo que adorei o trabalho de um artista belga nascido em 1969, David Claerbout, que lida muito poeticamente com o tempo, numa conjugação de fotografia/vídeo/música chamada “The Algiers’ Sections of a Happy Moment.”
Ao som de música, vemos um grupo de rapazes numa espécie de pátio, em Argel, alimenta gaivotas que descem para comer nas mãos deles. Linda, a expressão dos seus rostos, o voo dos pássaros. Claerbout focaliza a luz mutável, denunciando a passagem do tempo.
Ele quer questionar, como disse numa entrevista que li na web, “a substância do tempo.”
Pintava desde os sete anos de idade. Mais tarde, deixou a pintura pela fotografia e o filme, porque acha, partindo para o conceitual, que “a arte não deve consistir apenas de objetos”. Ele mora e trabalha em Antuérpia e em Berlim.
E meu olhar ainda algo nostálgico da pintura em tela bateu nos trabalhos de Rodrigo Lacerda, grandes e belas telas escuras com pontos muito coloridos, perto da entrada.
E nos trabalhos de um negro nascido em Bournemouth, Inglaterra – Kimathi Donkor.
Qual origem da sua família? Não consegui descobrir, nem no catálogo nem na Internet. Mas, pelo tema de algumas das suas telas, acho que ele é de origem haitiana.
Na obra de Kimathi, que vi na web, em telas não expostas na Bienal, ele lida com questões raciais e representa a escravização dos negros no Haiti.
Na Bienal, Kimathi apresenta uma tela sobre a morte do brasileiro Jean Charles, no metrô de Londres. As obras dele são vistosas e com um leve toque surreal, ou “ingênuo”.