quinta-feira, 26 de agosto de 2010

FICÇÃO BAHIA

Estive recentemente em Salvador, onde houve um evento em torno da nova edição do meu romance “Atire em Sofia.”
Fiquei encantada com o grande número de escritores baianos que apareceram na Livraria LDM. Entre eles, alguns cujo trabalho eu ainda não conhecia, mas passei a conhecer, lendo os livros que recebi deles.
É o caso de Carlos Barbosa, Lima Trindade (o criador da revista eletrônica Verbo 21 (http://www.verbo21.com.br/).) e Aramis Ribeiro Costa.
Trago uma mostra da prosa dos três. Um trecho do romance de Carlos Barbosa, “Beira de rio, correnteza,” lançado este ano pela Editora Bomtexto; um conto de Lima Trindade, do volume “Corações blues e serpentinas”, Editora Artepaubrasil, também deste ano; e outro conto de Aramis, do livro “Os bandidos”, lançado pela Imago em 2005. (Hélio Pólvora disse, dos trabalhos de A.R.C: “contos que são contos, na tradição dos clássicos.”
E trago mais: dois minicontos de um autor já meu conhecido, Mayrant Gallo, do livro “nem mesmo os passarinhos tristes,” três por quatro, 2010.


LIMA TRINDADE


O AMOR INCONSÚTIL

A cabeça de André tombou sobre o ombro de Antônio. Não que estivesse morto ou desmaiasse, mas, sim, como quem de súbito se prepara para o que há de vir e espera o pior. Ensaiou a palavra de amor, entreabrindo os lábios curtos e grossos, porém, recolheu-se avaro.
Antônio gostava de sentir o peso da cabeça de André reclinada sobre seu ombro, mas aquela situação de estarem os dois um de costas para o outro incomodava.
Da janela da sala soprava um vento frio de junho que tornava o branco das paredes gelo. Pequenas gotas de suor borbulhavam na testa de André.
Então, sem avisar, Antônio se virou e abraçou aquele corpo robusto, fazendo com que a cabeça do outro repousasse sobre seu colo, os cabelos longos e lisos acariciando-lhe a perna.
- Você me ama?
- O que é amar?
- É me possuir como se eu fosse um cãozinho, protegendo e alimentando...
- Então, eu não te amo.
Lúcio nada lhe cobrava, não pedia amor nem gestos de carinho. Quando falava, era sempre a respeito de coisas não-refletidas, ecos ou cacos sonoros captados pelo acaso. Você viu o último capítulo da novela das oito? Conhece a piada do...? Estou a fim de comprar um carro novo.
Curioso foi André descobri-lo na House of Games. Comprara uma ficha para o Fight of Heroes e perdia vergonhosamente. Lúcio surgiu ao seu lado e começou a lhe dar dicas. Em poucos minutos, jogava por ele. Formamos uma grande dupla. Que tal tomarmos um chope para comemorar?
- O que você viu em mim, garoto?
- Eu?
– É, tu mesmo.
­­– Ah, gostei do seu jeito.
­­­– E como é o meu jeito?
– Sei lá, é teu jeito, oras.
O frio bateu e Antônio se levantou para fechar as janelas. Pequenas folhas secas estalavam enquanto ele pisava o mármore. Era o inconveniente de se ter plantas em casa. Perto do sofá, um livro aberto oscilava de uma página para outra. André nunca lia um livro só, daí que eles se espalhavam pelo chão como migalhas esquecidas de conhecimento.
Tudo era grande demais, distante demais. André não tinha mais ilusões. Estava à deriva.
A mesa da sala era oval e nela estavam depositadas folhas de papel, uma caneta, um jogo de lápis de cor. Antônio, em pé, pegou uma folha em branco e a amassou.
- Por que compramos novos discos se eles estão sempre repetindo tudo o que ouvimos antes?
- Toni, querido!... Nada é... absolutamente igual. O novo não precisa ser completamente novo, basta que seja alguma coisa diferente.
André olhou o relógio. Em seguida, abriu mais a janela. Antônio estava agora deitado sobre o sofá e se encolhia - vestiam somente calções.
- Estou com calor.
- Eu estou com frio. Mas deixe aberta. Sentir frio é bom e nos conscientiza da nossa solidão.
– E eu, não estou aqui?
Antônio não respondeu. Ao invés disso, enfiou o nariz no estofado e tentou não imaginar os longos cabelos grisalhos de André recebendo o vento enquanto ele apreciava a vista lá fora.
- Não sou mais um garoto para você?
- Por que pergunta? Eu é que sou velho demais para você.
- Mas não era quando eu tinha dezessete e você cinqüenta, André. Ou, pelo menos, você não parecia pensar assim – disse num tom triste, mas calmo.
- As coisas mudam.
- Sim, elas sempre mudam. Hoje eu tenho vinte e cinco. Amanhã terei vinte e seis, ano que vem... – calou-se.
André fechou a janela.
- Que idade ele tem?
- O que lhe importa? Você não me ama mais, não gosta mais de sexo.
- Eu te amo mais que tudo, André! O meu amor é um amor sem fronteiras e sem remendos. O que é o sexo perto disso?
Ficaram mudos por muito tempo. Depois, André se vestiu e sem se despedir foi ao encontro de Lúcio. Ele não voltou para pegar os livros.

Lima Trindade é autor de “Supermercado da Solidão” (romance, 2005), “Todo Sol mais o Espírito Santo” (contos, 2005) e “Corações Blues e Serpentinas” (contos, 2007). Integra as antologias “Tempo bom” (contos, 2010), organizada por Sidney Rocha, e “Geração Zero Zero” (contos, no prelo), organizada por Nelson de Oliveira.

MAYRANT GALLO


A DESCULPA

O pai, antes de sair, havia dito: “Neste verão, não quero que você solte pipa.” O motivo eram talvez as torres de alta voltagem recém instaladas no bairro e que, à noite, zumbiam. Mas quando o pai saiu para o trabalho, o menino cortou as varetas de bambu, pegou cola e linha, armou o esqueleto da pipa e colou papel fino. Por fim, pôs a rabiola, amarrou a linha e saiu para o campo. Antes do fim da manhã, estava feito: o menino havia derrubado o sol, mas em meio ao caos que se seguiu – de fim de mundo em filme de Hollywood – só ocorria ao menino dizer ao pai que, ora, o sol estava morrendo mesmo, só fiz abreviar a coisa – e não foi assim que o senhor fez com a mamãe?

O BILHETE SUICIDA

“Um dia diferente: de sol, de trabalho, de dor, mas diferente, singular. Singularidade que está dentro de mim e de cada um de nós, e que, de súbito, sem motivação alguma, nos sobe e nos anima a continuar vivendo, apesar de tudo. Pena que esteja chovendo.”

Mayrant Gallo, nascido em 1962, é escritor e professor de Teoria da Literatura. Publicou “O inédito de Kafka” (2003), “Dizer adeus” (2005), “Dia sim e sempre” (2000), entre outros livros. “Ele traz para os leitores um universo próprio, inconfundível e inquietante, de situações insólitas e seres deslocados,” diz C. Ribeiro na orelha de “nem mesmo os passarinhos tristes.”
PORTAL 2001
Mayrant está com um conto na recém saída revista PORTAL 2001, editada por NELSON DE OLIVEIRA.Vejamos o que diz Nelson, na apresentação da sua instigante revista:
“Não queremos o leitor indiferente e entediado. Queremos a máxima potência da poiesis, da aisthesis e da katharsis. Por isso este portal, como os anteriores, não está disponível a qualquer curioso. Não está à venda. Não é o leitor quem escolhe o portal, é o portal que escolhe seu leitor. Aceite a dádiva. Integre-se nele com reverência e entusiasmo. Deixe-se envolver amorosamente pelo mistério e pela poesia.”


ARAMIS RIBEIRO COSTA



DONA LAURA ESTÁ DORMINDO

Letícia e a filha, Vívian, só conseguiram chegar em casa às 18 horas e 25 minutos. Vinham do salão de beleza e estavam atrasadas. Felizmente saíra tudo como elas queriam, penteados, unhas, maquiagens, estavam ambas muito bonitas e ficariam ainda mais quando colocassem os vestidos comprados com exclusividade para aquela noite. Era uma noite especialíssima: a da formatura de Vívian. Consultando o relógio, Otávio repreendeu-as, ao entrarem:
— Isto são horas? Daqui que vocês se aprontem, vamos chegar atrasados!
— O salão estava cheio — explicou rapidamente Letícia. Em seguida, correu para o quarto.
Vívian também foi direto para o seu quarto. Era a filha única do casal, e a formatura em Direito significava um notável acontecimento para a família. Otávio e Letícia viam aquele dia como uma grande conquista de Vívian, mas também como um triunfo deles próprios, pois tinham conseguido, mesmo com o sacrifício de todos aqueles anos, pagar a caríssima faculdade particular da filha. O mais importante, porém, é que isso fora conseguido sem que nada de essencial faltasse à família, da qual fazia parte a mãe de Otávio, dona Laura, que ficara viúva poucos anos após o casamento do único filho, passando a morar com eles. Era uma senhora nonagenária e enferma que já não saía do quarto, quase não andava e necessitava de cuidados médicos especiais, o que muito pesava no orçamento familiar. A formatura, com todos os seus gastos, principalmente os convites, o bufê do baile e os vestidos de Vívian e de Letícia, também representava um sacrifício financeiro considerável. Mas tudo valia a pena para que a moça, uma ótima filha, uma boa aluna, se formasse com a solenidade e a festa que ela merecia. Otávio e Letícia viam dessa forma, e aquele dia estava sendo para eles tão especial e tão feliz quanto o fora o dia do nascimento de Vívian. Otávio, pronto desde as 18 horas, impecável no seu terno azul-marinho, a gravata de seda pura também azul, os sapatos pretos lustrando, foi até a cozinha, perguntou à empregada:
— Minha mãe já tomou o mingau?
— Já, sim senhor — respondeu Elvira. — E já tomou os remédios.
No comecinho da noite, exatamente às 18 horas, dona Laura tomava apenas um prato fundo de mingau, não conseguiam que ela aceitasse mais nada. Uma noite era de maizena, outra de tapioca. Não gostava de nenhum outro. Tomava no quarto, sentada na sua cadeira de balanço, que ficava diante do televisor que era só dela, um televisor que ela fazia questão que permanecesse ligado, embora quase já não enxergasse, passando pouco depois para a cama. Dormia cedo, e dormia a noite inteira, sem incomodar. Letícia, extremamente dedicada, ajudava-a com o mingau, dando-lhe na boca as colheradas retiradas das bordas, por ser menos quente, com muito cuidado para que ela não engasgasse nem sujasse o vestido, limpando-lhe depois os lábios com um guardanapo. Aliás, era também a nora quem lhe dava banho, trocava-lhe a roupa, punha-lhe pó-de-arroz nas faces, dava-lhe os remédios na hora certa, acomodava-a à noite na cama, enfim, cuidava de tudo que se relacionasse àquela velhinha de cabelos ralos e alvíssimos, o olhar manso e quase apagado, o sorriso apenas esboçado nos lábios muito finos, e por quem ela tinha o carinho e a consideração que teria com a sua própria mãe, se ela ainda estivesse viva. Só quando estava muito ocupada, ou quando precisava sair, é que deixava a empregada tomar conta dela.
Indo e voltando ao comprido da sala, Otávio consultou o relógio, impaciente. Sabia como a mulher e a filha demoravam para aprontar-se. A solenidade estava marcada para as 20 horas, mas tinha de pensar no congestionamento do tráfego até o Centro de Convenções. Além disso, Vívian devia chegar mais cedo. Depois da solenidade, haveria o baile. Mesmo com toda a ansiedade, ao caminhar repetidamente de um lado para outro da sala, naqueles minutos de espera, Otávio repassava, com um misto de ternura e orgulho, todos aqueles anos dos estudos de Vívian, do primeiro dia de escola àquela noite suprema, que simbolizava a realização de um sonho longamente acalentado.
— Ela escolherá o que quer ser — dizia ele a Letícia, quando confabulavam sobre o destino da filha. — Não vamos interferir, nem mesmo influenciar. Contanto que se forme.
— Ela vai se formar — afirmava Letícia. — É inteligente e determinada.
De fato. Vívian mostrou-se, desde o início, uma aluna aplicada, disposta a seguir em frente. Desde cedo, também, decidiu que seria advogada. Nos anos de faculdade, foram necessários alguns sacrifícios, por vezes verdadeiros malabarismos financeiros, para que as matrículas e as mensalidades não fossem pagas com atraso. Mas ali estavam. Dentro de mais algumas horas, Vívian estaria com o diploma nas mãos.
— Dra. Vívian Ferreira Lima, advogada — murmurou ele, com orgulho, como se lesse os dizeres de uma placa na entrada de um escritório de advocacia.
Estava nesses devaneios, quando Letícia e Vívian saíram dos quartos quase ao mesmo tempo e colocaram-se diante dele, como dois manequins numa vitrine.
— Então, estamos bonitas? — perguntou Letícia com um sorriso, orgulhosa dela mesma e da filha. — Muito bonitas — concordou Otávio.
Então Letícia lembrou que as duas deviam ir ao quarto de dona Laura, para que ela as visse vestidas, sobretudo visse a neta no vestido da formatura. Pegando a filha pelo braço, levou-a. Sentada na sua cadeira de balanço diante do televisor ligado, dona Laura cochilava. A cabeça completamente alva pendia para um lado, enquanto as mãos, ossudas e enrugadas, pareciam também adormecer no regaço. Quando as duas se aproximaram da cadeira, ela abriu os olhos, a princípio um pouco assustada, como sempre acontecia quando acordava daqueles cochilos, mas, logo em seguida, fitando-as com o seu olhar manso habitual. Como fizeram com Otávio, as duas postaram-se diante dela, Letícia orgulhosa da filha, Vívian radiante. Letícia perguntou:
— Então, o que a senhora acha? A doutora Vívian está bonita para a formatura?
Dona Laura apertou um pouco os olhos, no esforço de enxergar e, sorrindo para a neta, murmurou:
— Bonita.
Vívian também sorriu, satisfeita.
— Obrigada, vó.
— A senhora parece cansada — disse Letícia, observando a sogra. — Não quer deitar?
Dona Laura fez que sim com a cabeça.
— Eu vou botar a senhora na cama — disse Letícia, desligando o televisor.
— Tchau, vó — disse Vívian, aproximando-se da avó e dando-lhe um beijo na testa.
Precisava telefonar para o namorado, dizer que já estavam saindo. Haviam combinado encontrar-se no salão de entrada do Centro de Convenções, faziam questão de ver-se antes da solenidade, nem que fosse apenas por alguns minutos. Enquanto ela deixava o quarto, afogueada, farfalhando alegremente o seu vestido novo, Letícia segurou dona Laura fortemente com ambas as mãos para ajudá-la a levantar-se. Era um ritual a que ambas já estavam acostumadas. Depois de erguê-la, sustentando com facilidade o peso daquele corpo franzino que a idade devastara, continuou apoiando-a para mantê-la em pé. Então, acompanhando o passinho miúdo e arrastado da anciã, foi conduzindo-a devagarinho até a cama, como fazia todas as noites.
Ao sentá-la na cama, Letícia voltou a achar que dona Laura estava mais cansada do que nos outros dias. Ela arfava.
— A senhora hoje está muito cansada — tornou a dizer Letícia, observando-lhe o semblante abatido, a respiração acelerada. — A senhora está bem?
— Quero deitar — murmurou dona Laura.
— Vamos deitar, sim — concordou Letícia, carinhosa. — Mas, antes, vamos tirar essa roupa, vestir a camisola.
Letícia pegou a camisola no armário e, com a destreza com que fazia aquilo todas as noites, trocou-a rapidamente. Ao terminar, notou que dona Laura tinha uma expressão estranha. Assustada, perguntou:
— A senhora está sentindo alguma coisa?
Mas dona Laura não respondeu. Sentada ainda, deixou tombar a cabeça e o corpo para diante. Letícia apenas teve tempo de segurá-la antes que ela fosse ao chão. Em seguida deitou-a no leito, chamando repetidamente:
— Dona Laura! Dona Laura!
Dona Laura estava de olhos abertos, porém completamente imóvel.
— Dona Laura! Dona Laura! — insistiu Letícia, com a angústia das situações inesperadas e terríveis.
Agoniada, pegou-a, sacudiu-a, tentou perceber nela alguma respiração, algum sinal de pulso, mas a evidência era muito clara: dona Laura estava morta. Largou-a, num ímpeto, o grito na garganta. E já ia desferi-lo, quando se lembrou da formatura de Vívian. Na sala, Otávio e Vívian apenas a esperavam para irem. A formatura de Vívian. A concretização do sonho de toda uma vida. A solenidade. O baile. O bufê. Os vestidos. Os convidados. A alegria. A emoção de tudo aquilo. A noite suprema. Tudo, tudo desfeito de um momento para o outro, como se um grande cataclismo destruísse tudo. Ouviu o grito de Otávio:
— Letícia, vamos embora!
— Mamãe, já estamos atrasados! — completou Letícia.
Não, não, pensou Letícia, aquilo não podia acontecer. Dona Laura não estava morta, estava apenas dormindo. Sim, dona Laura estava dormindo. Trêmula, como se cometesse um crime, fechou aqueles olhos parados e sem vida que pareciam fitá-la, ajeitou o corpo pequeno e flácido ao comprido da cama, na posição em que a sogra costumava dormir, cobriu-a com a sua coberta leve de todas as noites. Agora era ela quem arfava, sufocada, mal conseguindo respirar. Na garganta, no lugar do grito, havia um nó que a trancava; as lágrimas reprimidas teimavam em vir aos olhos. Rapidamente ajeitou tudo, olhou ainda uma vez o corpo de dona Laura imóvel sob a coberta, apagou a luz e saiu do quarto às pressas, encostando a porta.
Na sala, lado a lado, Otávio e Vívian, impacientes, apenas a aguardavam.
— Vamos — conseguiu dizer ela com a voz trêmula.
Otávio notou-lhe a palidez, o tremor na voz, os olhos vermelhos no esforço de conter o choro.
— Você está bem?
Ela fez que sim com a cabeça. Sentia uma vontade enorme de abraçá-lo, de soluçar no ombro dele. Otávio atribuiu aquele estado de Letícia à emoção pela formatura de Vívian, sentiu-se também emocionado.
— Vamos — disse ele, abrindo a porta da rua.
— Espere um pouco — disse Letícia, arquejando, a garganta em fogo.
Foi até a cozinha, bebeu um copo d’água, procurando acalmar-se. As mãos tremiam, toda ela tremia. Antes de sair, avisou à empregada, com voz sumida:
— Já vamos. Dona Laura está dormindo.
— Sim, senhora — respondeu Elvira, sem olhar para ela, sem largar o que estava fazendo.

Ainda muito jovem, Aramis Ribeiro Costa publicou semanalmente fábulas, contos e pequenas novelas na página infantil de “A Tarde”. Foi, nessa época, colaborador desse jornal também em outras páginas, com artigos, crônicas, contos e poemas. Sua ficção curta e seus ensaios têm sido publicados em antologias, jornais e revistas, e seus poemas, particularmente os sonetos, amplamente reproduzidos em blogs, por todo o Brasil e em Portugal. É diplomado em medicina e Letras Vernáculas com Inglês. Pertence à Academia de Letras da Bahia. Entre os seus livros, estão: “Quarto escuro e Espelho partido”, poemas; “A nota de Rosália”, “A assinatura perdida”, “O Mar que a noite esconde”, “Baú dos inventados”, “Os Bandidos” e “Reportagem urbana”, contos; “O Fogo dos infernos” e “Episódio em Curicica”, novelas; “Uma varanda para o jardim”, romance, e outros títulos de literatura infantil.


CARLOS BARBOSA


BEIRA DE RIO, CORRENTEZA

(TRECHO)

“A correnteza. Gero sabia bem da correnteza do rio. Experimentara sua força por mais de uma vez. No Bom Jardim da Rica Flor, não havia quem não possuísse história de enfrentamento, superação ou sucumbência ante a força e a imprevisão da correnteza do rio. A correnteza era ser mutante. Durante o ano, alterava velocidade e empuxo em acordo com o volume das águas do rio; era assim em qualquer rio, por certo, mas no Velho Chico, no rio de Gero, a correnteza possuía qualidades de mando; era imperiosa, manhosa e de caprichos curvilíneos e redemoinhados. Quando as águas subiam e se avermelhavam, a correnteza era inteira, total. Todo o rio era correnteza célere, urgente e desrespeitosa. Barcos e canos mal aportados, casebres ribeirinhos, barrancos escavados, toros e plantas, todo treco deixado à solta, a correnteza arrastava rio abaixo sem apelação. Inclusive animais de criação e silvestres. E também o bicho-homem, de mamando a caducando, pois, como se sabia bem no Bom Jardim, quando mais a pessoa bem nadava mais a correnteza apreciava levá-la consigo para sumidouros. A correnteza se amansava no período da seca. O rio deslizava espelho ao passar pelo Bom Jardim da Rica Flor. Mas aos ribeirinhos não escapava que ela escondia sempre propósitos encantatórios e arrastantes: era traiçoeira, na essência, a danada. Era nessa época que se especializava no disfarce da quietude. A correnteza se ausentava, o rio se tornava bucólico e o banho se impunha pelo atrativo do frescor das águas e pelo calor abusivo do ambiente ribeirinho. Nesse cenário, muitas alminhas se desgarravam de corpos, no repentino de um escorrego nos arrecifes limosos ou na lama do fundo, desequilibravam-se e eram tomados pela até então insuspeitada e ausente correnteza. A cada episódio enfrentado nas águas do rio, Gero sentia mais respeito pela correnteza. Mais que um estado, condição ou possibilidade, pressentia nela uma entidade independente do rio.”

Carlos Barbosa é jornalista e escritor. Seu romance “A dama do Velho Chico” (Bom Texto, 2002), foi selecionado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para o Programa Nacional Biblioteca Escola, 2009.

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