Depois de quase uma semana reclusa, no feriado ela decide sair, afinal, para ir ao supermercado. Mesmo porque isto já se tornou inevitável, não tem mais nada em casa para comer.
Todo esse tempo preferiu evitar a rua com medo de tiroteios entre policiais e traficantes em fuga das favelas próximas, ocupadas.
Como não tem estoque de comida, ficou até sem leite nem pão.
Não há como preparar sequer o café da manhã.
E, sem café, ela não funciona.
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Pouco depois, passando com seu velho carro pela Borges de Medeiros, vê que há pouquíssima gente caminhando ou correndo pela calçada próxima da lagoa.
Inteiramente incomum, para um feriado.
O medo de balas perdidas deixou as ruas quase desertas.
Não foi disparado um só tiro, mas muita gente ainda acha que pode acontecer.
Claro que também está chuviscando, mas só um pingo ou outro, muito de leve. Normalmente, isto não assustaria os caminhantes.
Ela também sentiu muito medo. Mas agora já está calma, então segue na direção do Leblon.
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Estaciona, como de costume, no segundo piso do supermercado e, sempre evitando elevadores, desce por uma rampa até o térreo, vai diretamente para o café.
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Compra a comida em pequenas quantidades, porque assim ela própria pode carregar, não precisa de entregador.
E também porque adora o supermercado e, com isso, tem motivo para vir aqui quase todos os dias.
Passou a conhecer muitos dos funcionários, isto ameniza a solidão, traz uma sensação de pertencer.
Lembra que, já faz algum tempo, nenhum dos seus amigos aparece em seu apartamento.
Está sentindo falta.
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Quantos anos faz que não tem marido? Até perdeu a conta. Filho, nunca teve, e os parentes que lhe restam moram em outro estado.
Sei que sou esquisita, pensa, levando a bandeja com o café e dois pães de queijo até uma mesa. Mas, pelo menos, como todas as mulheres, adoro ir a shoppings e supermercados.
Eles lhe garantem uma certa alegria.
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Este supermercado mudou de dono e passou algum tempo fechado para reformas.
Agora reabriu, e ela está gostando do seu novo novo aspecto.
Principalmente porque não se desfizeram do piano que fica no café. Espera que o mesmo velho ainda venha, às vezes, tocar nele antigas melodias americanas.
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Faz suas compras de alimentos com a segurança de uma Sobrevivente. Depois, pega para levar uma revista de que gosta muito.
Pensa, com satisfação, que depois do almço ficará deitada em sua cama, recostada numa almofada, folheando a revista.
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Logo ao chegar ao seu apartamento, vai ao computador ver se há e-mails para ela – nenhum.
Meio triste, dispõe-se a telefonar para alguém, mas neste momento ouve os estampidos: PAM. PAM. PAM. PAM.
Meu Deus, será que estão acontecendo tiroteios, afinal? Corre para a varandinha e então vem o alívio. Ainda há estrelinhas subindo, foram fogos de artifício que alguém soltou, em comemoração ao Quinze de Novembro, à proclamação da República.
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Pouco depois, cumpre seu projeto e se deita em sua cama, ainda com a roupa da rua.
Recosta-se numa almofada e fica folheando a revista nova.
É quando alguém toca a campainha da porta.
Meu Deus, e o porteiro não avisou a chegada de ninguém!
Deve ser ele! Nem espia pelo olho-mágico para ver quem é, tem certeza de que é o Brad Pitt.
E então, a surpresa:
- Robert! Robert Pattinson! É você!
É a primeira vez que ele vem; mas, mal ela abre a porta, Robert vai entrando, sem cerimônia.
Afrouxa o nó, tira a gravata, depois o paletó, os sapatos e as meias, vai pondo tudo em cima e ao lado de uma poltrona.
Fica apenas com a camisa social aberta ao peito e as calças jeans.
- Vamos para a cama – diz.
E, vendo seu ar inseguro – é a primeira vez com ele – declara:
- Não se preocupe, Sei do que você gosta, querida. Os outros já me explicaram tudo. Ficaremos apenas um ao lado do outro, nos abraçando e acariciando como se fôssemos irmãos. Você não quer?
Mas claro que sim, ela quer.
O que ele disse corresponde inteiramente à verdade. É isso mesmo que ela costuma fazer com todos eles, quando aparecem.
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Antes de dormir, ela pensa: hoje, 15 de novembro de 2011. Um dia notável. Porque é ...exatamente hoje. Porque é... exatamente agora.
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O que lhe resta da vida
Quase todo dia ela sai do Catete e vai a um shopping elegante, na Zona Sul do Rio. Tem mais de 60 anos, não precisa pagar o ônibus. É um grande prazer para ela ir a esse shopping - e tudo fica quase de graça. Vive em busca de coisas assim, em seu esforço para “aproveitar o que lhe resta da vida”, mesmo com o pouquíssimo dinheiro da sua aposentadoria.
Desce do ônibus exatamente às dez na frente do shopping. É a hora em que ele abre. Uma pontualidade que lhe vem da repetição diária do percurso. Vê que há uma porção de gente já à espera para entrar. O Natal está próximo e o o shopping anda muito cheio.
Entra junto com as pessoas aglomeradas, quase se acotovelando com elas, e começa a caminhar pelos corredores do térreo.
Este andar tem mais restaurantes do que lojas. Mas aqui fica a banca sofisticada onde ela sempre compra o jornal e aproveita para dar uma olhada nas revistas. E aqui fica também a lanchonete onde todo dia ela toma um café pingado e come um pãozinho de queijo. A balconista coloca a xícara na bandeja com um biscoitinho no pires e mais um pequeno copo plástico com água gasosa. Ela mesma carrega a bandeja para uma das mesas.
Bebericar o café, dando pequenas mordidas no pão, traz-lhe uma sensação de imenso relaxamento. Quando acaba, sobe a escada rolante para o segundo andar. Aqui, sim, há várias vitrinas interessantes.
Entra numa loja de produtos femininos orientais. Gosta da bijuteria exótica, que espia longamente. Quando a moça lhe pergunta se pode ajudar, ela responde que “se precisar de alguma coisa te chamo, querida”.
Continua a caminhar, mas já se sente um pouco cansada. Não é mais tão fácil para ela como antes percorrer os três andares do shopping. Segue um pouco mais devagar e logo vai sentar-se num sofá próximo.
São muito convenientes esses conjuntos de sofás e poltronas de couro falso, mas bonito, colocados, em todos os andares, no corredor mais largo onde ficam as escadas rolantes. Permanece sentada quase meia hora num sofá preto, sabe que ninguém a tirará daí.
Não tem o menor medo de que os seguranças vestidos com bons ternos escuros a incomodem. Fica olhando um deles. São uns sujeitos grandes e mal-encarados, sempre de prontidão nos cantos mais discretos.
Não tem motivo para temer. Não é uma compradora e sim uma penetra, que vem mais para espiar roupas, objetos, pessoas. Mas às vezes até que leva as coisinhas baratas que vai descobrindo.
E vem sempre vestida inteiramente de acordo, cuida muito disso. Seu dinheiro é mínimo, mas considera esta uma despesa indispensável, mesmo que sacrifique a comida.
Não faz mal repetir roupas, mas precisam ser de boa qualidade, neutras e informais. Assim se vestem as mulheres que moram ali perto e quer ser confundida com elas.
Esse aspecto minuciosamente correto lhe garante a aceitação. Passa despercebida. Poderia ficar aí sentada horas, folheando seu jornal. Mas prefere continuar a caminhar, e pouco depois se levanta. É quando vem a boa surpresa do dia.
Numa bancada de venda de produtos para surfistas, vê, entre camisetas e relógios, pequenos chaveiros diferentes e engraçados. Adora chaveiros, tem uma porção deles enfiados numa grande argola de plástico azul, que carrega sempre na bolsa. Aproxima-se e fica manuseando os chaveiros, sob o olhar amável da vendedora sorridente.
Seu coração dá um salto, quando ela encontra um chaveiro que é uma pequena sandália havaiana azul, esmaltada em cima, com borboletas amarelas.
- Quanto é este? – pergunta à moça.
E ouve a maravilhosa resposta:
- Dez reais.
Meu Deus, dez reais, que bom, é barato, ela pode levar.
Puxa sua carteira da bolsa, tira de dentro os dez reais, paga, diz que não é preciso embrulhar o chaveiro e volta para o sofá com ele. Quer transferir imediatamente para o chaveiro novo as chaves do seu apartamento, que estão em outro, já velho, meio enferrujado.
Voltará para o Catete com mais um dos seus pequenos objetos dispensáveis, às vezes sem nenhuma utilidade, mas que gosta tanto de comprar. Maravilha!
Claro que está velha. Claro que é pobre. E claro que passará mais um Natal e fim de ano sozinha: seu marido morreu, nunca teve filhos, seus pais também morreram e o que resta da sua família mora em outra cidade, muito longe.
Mas, neste momento, ela esquece de tudo isso. Ganhou seu dia. Já pode ir para casa. Decide não comer um sanduíche, como almoço, no shopping mesmo.
Preparará alguma coisa para almoçar quando chegar em casa, assim o dia sairá mais em conta.
Fica mais algum tempo no sofá, depois se levanta, adiante joga o chaveiro velho num recipiente para lixo, e segue para a escada rolante, a saída do shopping, chega ao ponto do ônibus.
Sabe que, com seu novo pequeno objeto para olhar e apalpar, com seu brinquedinho, não haverá nenhum problema pelo resto do dia.
Durante a tarde inteira, enquanto não começam as novelas que a anestesiam até a hora de dormir, evitará aquela angústia desesperada, não pensará outra vez em se atirar pela janela e não precisará de nenhuma dose extra do seu remédio forte.
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Presente, ausente
Acordou, saiu rapidamente da cama.
Foi até a cozinha, pegou o interfone, ligou para a portaria do prédio. A resposta do porteiro veio rápida: não, ninguém deixara pacote algum para ela.
Desligou com um nó na garganta, os olhos cheios de lágrimas. Caminhou vagarosamente, encurvada, para sua cadeira de balanço.
Mas que idiota tinha sido. Claro que já deveria saber. Era tarde demais, estava com 79 anos.
Sim, tardíssimo! Como chegara a imaginar que ainda seria possível? Tinha de encarar a realidade. Não havia como fugir disso.
Ninguém lhe daria outra vez, nunca mais, um ursinho de pelúcia de presente de Natal.
ESTES TRÊS CONTOS SÃO INÉDITOS
Prezada Sonia
ResponderExcluirÉ um prazer encontrá-la por aqui.
Lúcia Leiro
Sonia
ResponderExcluirA palavra "novo" aparece duas vezes, uma após a outra, no primeiro conto. Foi intencional, uma ênfase?
Abraços
Lúcia