segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A ESCRITA COMO NECESSIDADE DE VIDA

Entrevista de Sonia Coutinho a Lima Trindade



Sonia Coutinho nasceu em Itabuna-BA. Aos oito anos passou a viver em Salvador e, em 1968, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se tornou jornalista, tradutora e escritora. Traduziu cerca de cem livros. É uma das mais importantes escritoras brasileiras em atividade. Conquistou o Jabuti por duas vezes, o Status, para literatura erótica, e, pela Biblioteca Nacional, o Prêmio Clarice Lispector de contos. Participou de diversas antologias no Brasil e no exterior e teve quase toda a sua obra reeditada pela 7Letras.

Lima Trindade: Como se deu sua aproximação com a literatura, quais os primeiros livros que leu? Gostaria que falasse um pouco de sua formação como escritora. Você cresceu num ambiente de leitura e estímulo ao pensamento?

Sonia Coutinho: Meu pai era um intelectual. Formado em Direito, tornou-se político e foi eleito deputado estadual em três legislaturas. Escrevia poesias e traduziu poemas, por exemplo, de Baudelaire. Tínhamos muitos livros em casa e bons livros. Desde muito pequena eu adorava ler e pulei das histórias de fadas para os livros adultos do meu pai. Lembro de ter lido, ainda menina, os contos completos de Guy de Maupassant e um livro de contos de Katherine Mansfield, que amei: “Felicidade”. Meu irmão também é um intelectual, embora não da área de literatura e sim de ciência política. Meus primeiros contos foram as redações de português, na escola. Os professores me encorajavam muito. Mas, fora desse belo quadro que acabei de traçar, não posso dizer que tenha recebido estímulo para me tornar uma escritora. Sofri uma grande pressão, por parte da família, para não abandonar os modelos estabelecidos. Houve muitos e dolorosos conflitos. Mesmo assim, continuei e continuo escrevendo. O jornalismo e a tradução, minhas duas atividades profissionais, acho que foram muito importantes em minha formação de escritora. Também, com certeza, as viagens que tive a oportunidade de fazer e o grande número de pessoas do meio literário e artístico com as quais entrei em contato, nesse percurso. O lado pior para a literatura, em tudo isso, é que nunca tive o tempo necessário e ainda não tenho, para me dedicar detidamente a ela ou a outras atividades artísticas que me dão prazer. Mesmo a esta altura, preciso continuar traduzindo para sobreviver.

LT: A mudança para o Rio de Janeiro, em função do contato com editores e escritores, favoreceu sua carreira literária, deu-lhe maior visibilidade? Considera que possa ter causado também algum tipo de perda no plano artístico?

SC: Não vim para o Rio apenas em função desses contatos que você menciona. Na Salvador dos anos 60, eu vivia uma situação pessoal que sentia como sufocante e limitadora, em vários planos. Vir para o Rio e fazer jornalismo na grande imprensa foi uma experiência muito enriquecedora para mim. Alarguei minhas fronteiras humanas. Claro que o Rio também foi duro, sob vários aspectos. Mas acho que não havia outra saída e que o saldo foi positivo. Hoje, tudo mudou e não sei se uma atitude como a que tomei seria ainda necessária. Talvez já seja possível ficar aí (Salvador) numa boa, sem diferença nenhuma. Com relação à literatura, acho que, se minha vida se alargou, o mesmo deve ter acontecido com meus escritos. E estando no Rio, mais perto da imprensa dita “nacional”, claro que tive mais visibilidade.

LT: Enxerga diferenças no lugar que mulher e homem ocupam dentro da literatura brasileira? A crítica especializada guarda algum tipo de preconceito, velado ou explícito?

SC: Não creio que, quando um resenhista escreve sobre um livro de autor que ele não conhece, faça alguma diferença se é homem ou mulher. Mas ainda vejo, sim, uma diferença na questão do reconhecimento, da validação final do trabalho. É mais fácil para um homem ser reconhecido do que para uma mulher. Você constata isso comparando, por exemplo, a diferença de número entre escritores dos dois sexos que ocupam cadeiras na Academia Brasileira de Letras. As mulheres entraram, mas são comparativamente poucas. Em eventos literários importantes, sempre são convidados muito mais autores homens. O número de escritores homens que aparecem na mídia é bem maior, embora muitas mulheres estejam escrevendo e publicando. E vai por aí. Poucas escritoras conseguem entrar no panteão dos Grandes, no Brasil. Ou em toda parte...

Kátia Borges: A Bahia aparece em seu romance “Atire em Sofia” como um lugar sombrio, uma Salvador sem nome, mas com as características da cidade. Por que essa espécie de sublimação?

SC: Embora eu guarde uma grande nostalgia de Salvador, a ponto de nunca ter me afastado inteiramente da cidade, foi aí que tive as experiências mais duras da minha vida. Fiz mais de vinte anos de análise para tentar descartar esses traumas e não sei se consegui inteiramente. A cidade que aparece no “Atire em Sofia” tem mais a ver com essas experiências pessoais profundas do que com qualquer cidade real, embora apresente características de Salvador. Talvez por isso eu não dê nome a esse lugar sombrio, cheio de aparições e assombrações e onde acontece um crime...

LT: Sua produção de livros de contos e romances é muito equilibrada. Tem alguma definição pessoal para o conto? O que busca hoje num romance, seja seu ou de outro escritor?

SC: No momento, estou sem nenhum projeto de escrever um romance. Há muito tempo escrevo apenas contos e não com a frequência que desejaria. Talvez porque, de dez anos para cá, tenha enfrentado novos problemas que interferiram com minha criação literária. Está difícil realizar projetos que exijam mais planejamento, mais horas de computador, como é o caso de um romance. Quanto à segunda parte da sua pergunta, não tenho uma “definição” para o conto. Poderia falar em tendências que tenho observado. Nos últimos anos, apareceram cada vez mais os contos curtos. E “contar uma história”, no sentido convencional, saiu de cena por completo, a não ser como um jogo. Vejo também, no conto hoje, uma descrença total no “realismo”, digamos assim. O autor fala diretamente com o leitor, os personagens tiram suas máscaras. Num romance de outro autor, não busco nada específico, a não ser, talvez, que ele alargue, de alguma forma, minha percepção da vida... Quanto aos meus romances, nunca tive expectativa prévia. Nasceram ao sabor do que ocupava minha cabeça.



Mayrant Gallo: Qual o seu livro que você mais aprecia? Qual o seu conto que você considera perfeito? E por quê?

SC: Escrever literatura sempre foi para mim uma atividade penosa, embora também “salvadora”. Escrevo por uma forte necessidade interior, mas não diria que “por prazer”. Não “lambo a cria”, como se diz. Assim, fica complicado dizer que livro meu mais aprecio. E não considero “perfeito” nenhum conto meu. Essa idéia de perfeição nem me passa pela cabeça. O que quero é botar para fora algo que está dentro de mim, pedindo para sair – e completar o processo, o que nem sempre acontece. Muita coisa fica pela metade, inacabada.

MG: Como monta seus personagens? De modelos da vida real ou de modelos imaginados?

SC: Minha literatura sempre esteve bem próxima da vida, nunca foi uma coisa “de gabinete”. Parto de uma experiência vivida, de um episódio de que participei, ou de uma pessoa de verdade que, de alguma maneira, me impressionou. Mas tudo é transformado e, no final, ficam apenas fiapos do que vi ou vivi. O problema é que as pessoas encontram esses indícios e acham que tive, integralmente, experiências que nunca aconteceram.

MG: Você escreveu “Rainhas do crime”, o que nos leva a crer que é uma leitora do gênero policial. Como explica o fato de que, no Brasil, o gênero policial que, pelo mundo, gerou grandes livros, como “O longo adeus”, ou “Santuário”, seja ainda considerado subliteratura?

SC: Não vejo pessoas considerando o policial subliteratura, pelo menos no meio em que transito. O que se pensa do policial é que se trata de um gênero específico. Quanto a mim, embora simpatize com o gênero, nunca fui, na verdade, grande leitora de policiais, salvo durante os três anos em que preparei uma pequena dissertação de mestrado que foi publicada com o título “Rainhas do crime”. O que me levou ao policial foi mais a questão da autoria feminina. Não havia escritoras policiais entre nós, quando escrevi a dissertação, salvo Maria Alice Barroso, autora de “Quem matou Pacífico?”, na verdade mais um romance regionalista. Nesse período, anos 80-90, começou a surgir, nos Estados Unidos, o chamado “romance policial feminista”, criado, entre outras autoras, por Sara Paretski, de quem traduzi três romances. Paretski põe em cena uma detetive mulher, Warshawski, bem diferente da Miss Marple da Agatha Christie. Warshawski traz a imagem da mulher sozinha na metrópole, da mulher que trabalha e se sustenta, uma figura que começava a se impor no Brasil. Isso me interessou e então propus, na Escola de Comunicação da UFRJ, fazer minha dissertação sobre autoria feminina no policial. Por outro lado, naqueles anos 90, havia um grande interesse pelo policial entre nós. O autor mais cultuado era Rubem Fonseca, que justamente aboliu a fronteira entre literatura “culta” e “de massa”, escrevendo romances “eruditos” com fortes elementos do policial. Depois da pesquisa para o “Rainhas do crime”, escrevi um romance que é quase um policial, “Os seios de Pandora”. Criei uma repórter que funciona como detetive, Dora Diamante. Em seguida, por uma série de fatores, eu me desinteressei do policial e hoje não leio quase nenhum. Mas respeito o gênero.

KB: O que acha de alguns críticos, que afirmam que o romance acabou?

SC: Confesso que não gosto muito de ler crítica literária. Sempre senti que aprendo muito mais lendo o que os outros escritores escrevem. Mas gosto de ler ensaios sobre arte contemporânea. E lembro que um estudioso de arte, Arthur Danto, já falou, há alguns anos, no fim da arte... Mas a arte continua a ser feita e os romances continuam a aparecer aos montões nas livrarias.

KB: Como é sua relação com a literatura feita hoje em Salvador? Sente-se em “obrigação” com a produção de sua terra, a exemplo de vários autores que se tornam espécie de embaixadores, ou esta é uma visão provinciana e que a incomoda?

SC: Não acho que é visão provinciana, mas não tenho poder para me tornar “embaixadora” de alguma coisa. O máximo que consigo, enfrentando muitas dificuldades, é tocar adiante minhas coisas. Sinto, no entanto, uma simpatia natural pela literatura feita na Bahia. Tenho sempre vontade de me tornar amiga dos escritores baianos. Afinal, continuo sendo uma escritora baiana.

KB: Você atua também como tradutora. Quais os maiores desafios que enfrentou?

SC: Sou tradutora profissional, traduzo porque preciso ganhar dinheiro. Então, vou cumprindo as tarefas que as editoras me passam, os desafios têm sempre de ser vencidos. Não posso pensar em traduzir nesses termos de “desafio”. Mas diria que não existe tradução fácil. Todas desafiam, têm problemas, exigem pesquisas, consultas a dicionários, à internet.

LT: O surgimento da net, em sua opinião, estimula a formação de novos leitores? A experiência como blogueira tem sido positiva? Contribui para a aproximação entre escritor e leitor?

SC: Sim, acho que a net estimula a formação de novos leitores e, mais ainda, o surgimento de novos escritores. Cada um pode ter seu blog e escrever – e muita gente está fazendo isso. Faço o Sidarta há quase dez anos, com interrupções, e gosto imensamente. Entro em contato com grande número de pessoas interessadas no que ponho em meu jornal eletrônico. E acredito que muita gente procurou meus livros depois de ler meu blog.

LT: A conquista de dois prêmios Jabuti ajudou a consolidar seu nome? Acha que sua obra obteve o reconhecimento que merecia?


SC: Ter ganho dois Jabutis com certeza me ajudou a me firmar como escritora, mas o grande público toma pouco conhecimento disso. Também ajudou, embora fosse pouco divulgado, ganhar o Prêmio Clarice Lispector de Conto da Biblioteca Nacional, com “Ovelha negra e amiga loura,” de 2006. Quanto a reconhecimento, pergunto: o que é isso? Se me responderem que ser reconhecido é ganhar bastante dinheiro, obter larga simpatia e muitas amizades, direi que não tenho o reconhecimento que desejava. Queria muito mais, não importa se mereço ou não...

LT: Existe algum segredo para manter vivo o interesse pela escrita, após tantos livros publicados?

SC: Literatura para mim é vida. Manter aceso o interesse pela escrita corresponde a manter aceso o interesse pela vida. E não acho que eu tenha tantos livros publicados, não. Poderia ter escrito muito mais e muito melhor, se tivesse conseguido mais tempo livre e mais apoio.


Esta entrevista foi postada originalmente na revista eletrônica Verbo 21, de Lima Trindade, e teve a participação de outros intelectuais baianos, como entrevistadores.

Um comentário:

  1. Sonia Coutinho

    Li dois livros seus dos quais gostei muito. Esta entrevista só realça o valor que já vi nos seus contos. Parabéns.

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