sexta-feira, 30 de abril de 2010

CADERNO DE POESIA

RUY ESPINHEIRA FILHO



CINCO POEMAS DE SOB O CÉU DE SAMARCANDA

(Bertrand Brasil, 2009)


CANÇÃO DO EFÊMERO
COM PASSARINHO E BRISA


É tudo mesmo bem pouco,
pois só há pouco me vi
chegando aqui e encontrando
o que nunca compreendi
— tanto que, perplexo, tanto
duvidei de estar aqui.
E nunca acreditaria
se não fosse um passarinho
afirmando: bem-te-vi!

Ainda escuto o seu trinado
garantindo-me o existir.
Mas precária garantia,
como aprendi com a brisa
de que se compõe o dia:
se o tempo passar um pouco,
nada mais que um pouco, logo
não estarei mais aqui.


EPIFANIA

Alguns anos não consigo
deixar nas águas do Lete:
os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete.
Muitas coisas se afogaram,
e rostos, e pensamentos,
e sonhos, e até paixões
que eram imortais...
Porém,
os meus magros dezessete
e os teus catorze morenos
não entram nem em reflexo
nesse Rio do Esquecimento.

Que magia nos levou
a um espaço e a um momento
para que de nós soubéssemos:
tu, meus magros dezessete;
eu, teus catorze morenos?
Que astúcia do Imponderável
nos abriu aqueles dias
que permanecem tão claros
como quando nos surgiram?
Eu não sei. Mas sei que a vida
nunca mais me foi vazia.

Como não foi fácil, nunca,
por tanto me visitarem
os Arcanjos da Agonia.
Pois, se fui iluminado
por estarmos lado a lado
— os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete —,
seria fatal que também
viesse a sentir a alma
em chagas multiplicadas
por setenta vezes sete.

Ah, os teus catorze morenos
e os meus magros dezessete!...
Quanto sofrimento fundo
— mas quanto sonho profundo
e alto!
Que belo mundo
foi-me então descortinado,
porquanto me era dado
o privilégio preclaro
de penar de amor no claro,
no escuro, em todas as cores,
em todos os tons da vida,
dia e noite, noite e dia,
varrido ao vento das asas
dos Arcanjos da Agonia
(que eram, por algum prodígio,
os mesmos da Alegria!...).

Ah, que por mim chorem flautas,
pianos, violoncelos,
as cachoeiras, os céus
comovidos dos invernos...
Chorem, chorem, que mereço
essas lágrimas, porque
tudo sofri no mais pleno
de paraísos e infernos.
Que chorem...
Mas eu, eu mesmo,
não choro... Como chorar,
se mereci essa dádiva
de um amor doer na vida
por setenta vezes sete
mais que qualquer outra dor,
mais que qualquer outro amor?
Só me cabe agradecer,
pois a vida perderia
(e, o que ainda é mais cruel,
sem nem saber que a perdia...)
se não provasse os enredos,
insônias, febres, venenos
que em meus magros dezessete
acendeu a epifania
dos teus catorze morenos!


OS HERDEIROS

Os de antes do asteróide
(ou do cometa, talvez)
deixaram seus grandes ossos
como uma vasta memória.

Nós, não deixaremos nada.

Porque a vida que vier
(como a que remanescer)
não terá arqueologias,
paleontologias e afins.
Como não tem a barata
como não tem o lagarto,
como não tem a lacraia,
nem o grilo, o gato, o rato,
a minhoca, o percevejo,
o ornitorrinco e o pato,
ainda menos a ameba,
entre outros mansos de espírito
que herdarão toda a Terra.

Assim, nada falará
desses milhares de anos
de agitações tão insanas
— inúteis, cruéis, humanas.
E tudo será apenas
vida a viver-se sem Tempo,
sem deuses, sem alma, sem
leste, oeste, norte, sul
— na esfera que vai girando,
girando... Ainda mais azul.



SONETO DO NOME


A noite vem do mar cheirando a cravo.

Sosígenes Costa


A noite vem do mar e traz teu nome,
que há muito tempo já não pronuncio.
Sonoro, ele revoa no vazio
de mim, sobre meus lábios. O teu nome

vem do mar nesta noite e me consome
mais uma vez. Reinventa, em chama e frio,
uma cidade em que nada é vazio,
pois em tudo há o perfume do teu nome.

E agora a lua vem beijar-me o rosto,
e é também teu perfume, que consome
a treva em minhas velas de sol-posto.

Sob esta luz o mundo inteiro some:
só há o luar compondo em mim teu rosto,
e o mar, que arde no aroma do teu nome.



SONETO DO SINO E DO TEMPO

Ouvir um sino é como abrir o tempo.
O tempo nítido de uma cidade
ornada de andorinhas e silêncio.
Um tempo que se estende desde o alto

das casuarinas às vagas colinas
em que morre o horizonte e onde um tesouro
de esperanças oferta-se em caminhos
vastos de amores, glórias, ilhas de ouro.

Respirar esse tempo é azul e calma
sobre quintais, varandas, cães, meninos
e meninas serenas e de tranças,

e sonhos de distâncias e destinos
em nós adormecidos e acordados
por esse dia aberto à luz de um sino.


KÁTIA BORGES



Cantiga

Minha avó era cega. Dela, herdei a capacidade
de ver sem usar os olhos. E a paixão por uns sambas antigos.
Minha avó era alta. Os cabelos muito lisos e compridos envolviam a cintura. Eram penteados com cuidado, todas as tardes,
e presos em um coque. Os vestidos, de tecido barato, quase cobriam os pés.
Minha avó contava histórias de assombrar, ensinava a amar certas canções e fazia predições todo final de ano. Eu fugia com medo do futuro, e me escondia no quarto. O presente me bastava com seus fantasmas e as notícias do mundo no Fantástico.
Minha avó gostava de beber aperitivos, de mascar fumo e de me ouvir cantar uma música de um português chamado Hermes Aquino.
Poucos se lembram dele. Poucos se lembram dela. Poucos se lembrarão de mim.
Minha avó era cega. Dela, herdei a capacidade de ver sem usar os olhos


HENRIQUE WAGNER



A história decalcada

Era branco de medo e tímido sorria,
os olhos desbotavam atrás da vidraça.
Mal começava a noite e era bem-vindo o dia,
como quem espera a vida e por sobre ela passa.

O tempo medicava enquanto o sol gemia,
e as coisas só viviam onde havia praça.
Portanto, minha casa era grande e vazia,
e apenas uma voz crescia, firme: “Faça

isto! Não faça aquilo!”. E eu não fazia nada.
Viver era somente espirrar, quando inverno,
e todos me pediam, alto, que sorrisse.

Coloria meus olhos a história contada
nos livros de aventura. E eu enchia o caderno
com os diversos tamanhos – alados – de Alice.


Volta às aulas

Acabo de voltar a minha casa.
É tudo o que aprendi, é o que mais faço:
voltar e dar mil voltas. E se atrasa
o trânsito a partida, apresso o passo.

E ainda que meu corpo um dia jaza:
no meio do caminho faz-se um paço,
a volta ao mundo vivo, ardente, em brasa,
do corpo despelado e sem cansaço.

Parece que lá fora não sou mais
que um mísero passante que não faz
senão buscar as horas em seu pulso.

Parece que o que faço é andar atrás
do aluno tão correto que jamais
da escola conseguira ser expulso.


De olhos fechados

A escuridão de não poder te ver
parece feita de uma estranha luz:
de muita dor e de irreal prazer,
que à imensidão e a meu papel conduz.

Escrevo tudo o que me faz reler
em cada verso de canções azuis,
a natureza de um real Monet
e a tua ausência, que inda me seduz.

Pois foi por ti que me guiei no escuro,
e se é verdade que inda te procuro
é porque vives, bem no fundo, em mim.

Se nesta febre de viver aceso
eu me encontrar a ti, eterno e preso,
é que cheguei por onde outrora vim.


Tua casa

Primeiro o muro alto,
depois as gelosias.
Então as gárgulas de pedra,
a aldrava,
a porta.
Mísulas queimando a noite
com seus cinábrios vermelhos
a despertar o verde
musgo do vestíbulo.
Até entrar em tua casa,
o sentimento novo
de que se trata de um antigo casarão
que eu supunha conhecer.
Dentro da casa descubro teus seios
e as pedras lavradas em estilo gótico,
com ogivas rosáceas entalhadas.
Respiro na relva
o cheiro de bicho caçado
- e a casa se enche
de interiores.


O baiano Henrique Wagner é poeta e contista, e faz jornalismo cultural, escrevendo sobre atividades várias, como cinema, música erudita, literatura, artes visuais. Publicou os livros de poemas O grande Pássaro (1996) e As horas do Mundo (2001), este pelo Selo Letras da Bahia. Em 2005 lançou o livreto A linguagem como estética do pensamento, ensaio sobre a filosofia da linguagem em Lacan, a partir de Wittgenstein. O livro foi editado pelas Edições Paideuma. Nasceu em Salvador, Bahia, ao dia 16 de maio de 1977. Atualmente assina duas colunas sobre arte no site www.expoart.com.br Autodidata, diz que sua formação tem sido a leitura dos clássicos e a convivência com os anônimos personagens da vida cotidiana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário