Conto de Sonia Coutinho
Fotomontagem de Sonia Coutinho
A progressiva experiência da invisibilidade.
Que começou para ela certa tarde, durante uma conversa com um velho amigo, com quem costumava beber Martinis.
Enquanto observavam a arrebentação, num bar de praia no Leblon, ela pegou sua bebida, levou-a em direção aos lábios.
Foi quando olhou casualmente para sua mão e percebeu que segurava a taça com um polegar invisível.
Apenas o polegar, verificou, depois de um rápido e aterrorizado exame em todas as partes do seu corpo não cobertas pelas roupas. A outra mão continuava perfeita, assim como os braços.
Também o rosto, que ela espiou no espelhinho do estojo de pó compacto, tirado rapidamente da bolsa. Olhos, boca, nariz, tudo no mesmo lugar e bem visível.
Quanto ao polegar, se não o sentisse, se não visse que cumpria diligentemente sua função de segurar a taça de Martini, ela diria que fora cortado com o cuidado de um cirurgião, sobrando apenas o coto.
Mas não ousou, de imediato, fazer nenhum comentário a respeito com seu amigo, talvez fosse algum tipo de ilusão sua. Ficou à espera de que ele próprio notasse alguma coisa – ou não.
Para sondá-lo, estendeu as duas mãos em cima da mesa, aguardou, mas o amigo lançou para elas apenas um olhar distraído, sem dizer nada. Será que ele estava vendo seu polegar? Será que o dedo era invisível apenas para ela?
Ou o amigo, simplesmente, não notara o sumiço por causa da sua proverbial distração? Ela preferiu não investigar mais nada.
Decidiu esquecer, pelo menos momentaneamente, o vazio no lugar do seu dedo. É apenas um polegar invisível, disse mentalmente a si mesma, tentando consolar-se. Não significava tanto assim.
Apenas um polegar, e continuava cumprindo sua função, repetiu para si mesma, mais tarde, já de volta ao seu apartamento.
Imaginou se procuraria ou não um médico, no dia seguinte. Ou seu psicanalista. Talvez um sacerdote, de que tipo de culto não sabia.
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No dia seguinte, quando se levantou da cama e foi ao banheiro, reparou imediatamente que seu seio esquerdo também desaparecera.
Cambaleou até o sofá da sala, onde permaneceu o resto da manhã cogitando.
Não almoçou e, à tarde, quando afinal tomou coragem e se aproximou da parede coberta de espelho da sala, viu que seu olho direito também sumira.
Percebessem os outros ou não, não tinha coragem de sair de casa se sentindo assim, concluiu, num relance.
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O desaparecimento completo do que ainda sobrava do seu corpo aconteceu à noite, enquanto dormia.
Na manhã seguinte, quando foi mais uma vez até o grande espelho na parede da sala, viu refletida apenas a camiseta de malha com que dormira, flutuando solta no ar.
Em seu desespero, decidiu fazer um teste – precisava saber se a invisibilidade era um problema só da sua visão, ou não.
Tirou a camiseta e pediu pelo interfone, que subisse ao seu apartamento alguém da portaria, precisava trocar uma lâmpada.
Minutos depois, ouviu a campainha tocar, abriu a porta – e o homem fez uma cara perplexa. Entrou, deu alguns passos, uma olhada geral no apartamento. Depois, bateu cuidadosamente a porta e se foi. Pelo olho-mágico, viu quando ele entrou no elevador.
Alguns minutos depois, o interfone tocou, devia ser o porteiro, ligando de baixo, para saber se havia algo anormal, mas ela não atendeu e ele não insistiu.
Mas então era verdade, tornara-se mesmo invisível.
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Sentada outra vez no sofá, meditou tristemente sobre os possíveis motivos da sua invisibilidade. Uma tendência antiga fez com que logo atribuísse a culpa de tudo a si mesma.
Claro que a responsabilidade só podia ser sua. Isolou-se demais, tinha esse gosto incurável de ficar olhando o próprio umbigo.
Ainda mais ultimamente, desempregada, vivendo de algumas economias, sem nada que a obrigasse a sair de casa.
E essas coisas não são vividas assim gratuitamente.
Um dia a pessoa pode acordar e verificar, por exemplo, que seu braço direito se tornou invisível.
Sim, a pessoa continua a sentir o braço, como se estivesse exatamente no lugar, a pessoa é capaz de usar os dedos da mão, pegar qualquer objeto com ela – mas está tudo apagado.
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Nos dias seguintes, permaneceu trancada em seu apartamento, sem que ninguém aparecesse para tirá-la dali. Com a família inteira morando em outra cidade, sem namorado, pouquíssimas amigas, ninguém veio procurá-la.
O telefone continuava a tocar, mas não atendeu. Chegaram e-mails, nada urgente, respondeu a alguns.
Tinha um suprimento de comida que duraria pelo menos uma semana, então ficou cozinhando no apartamento mesmo, em vez de sair para comer em restaurantes a quilo, como costumava fazer.
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Na terça-feira, quando a faxineira tocou a campainha, ela continuou imóvel no sofá. Ouviu-a tocar repetidas vezes, até que, afinal, desistiu.
De baixo, o porteiro chamou pelo interfone – e depois, silêncio.
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O tempo passava, longas horas lembrando seu cotidiano nos tempos em que podia ser chamada de uma mulher normal. Sim, humilde e alegremente, uma mulher solitária, sem nenhuma importância, mas visível.
E agora, assim invisível, estaria morta? Será que a invisibilidade era a morte? Teria entrado em estado de fantasma?
Lembrou as pessoas que conhecia e morreram; mas, na verdade, de uma forma ou de outra sempre evitara aprofundar-se no assunto.
Com a típica má fé humana que costumamos empregar para continuar a nos divertir um pouquinho nesta vida, ela conseguia sempre ausentar-se.
Pouco antes de morrer de câncer, houve um dia em que ela chorou diante da família inteira. Mas ela, menina ainda, virou o rosto e logo seus pais a levaram de volta para casa.
E quando morreu a velha empregada que a criara, e que tinha trabalhado para sua família de uma geração a outra, ah, ela estava em outra cidade, o máximo que aconteceu foi ter uma rápida explosão de choro e acabou esquecendo ou quase.
Então o problema era que, agora, nem sabia direito como era estar morta.
Mas logo concluiu que invisível, sim; morta, não. Claro que ela continuava viva e tinha até tanto apetite, comia incansavelmente o que restava na geladeira, e ia ao banheiro fazer suas necessidades, continuava capaz de falar. Morta, não.
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No entanto eu já fui visível, no entanto eu era até bonita, pensou, desesperada, em seu quinto dia de invisibilidade. No entanto, houve homens que me disseram que eu era linda, a única mulher que amaram em suas vidas.
Num súbito impulso, foi ao telefone, ligou para o escritório de um daqueles homens e disse de um só jato que aquela sua antiga oferta de amor fora maravilhosa, lástima não ter podido aceitar.
Desligou deixando-o ainda mudo de espanto e foi até a varandinha da sala, pensando se não seria melhor atirar-se lá embaixo e acabar com aquilo.
Mas logo se conteve e fechou a porta de vidro.
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Tirou toda a roupa e se deitou no chão da sala.
Viu, de repente, dezenas de gatos que saíam da porta da cozinha e se aproximavam dela.
Eram de várias raças, algumas requintadas – gatos persas, angorás – mas também havia simples gatos vira-latas, embora bem alimentados e com o pêlo brilhante e limpo.
Vinham miando baixinho, cada qual num tom diferente, os olhos arregalados. Chegavam até seu corpo invisível, esbarravam nele e começavam a miar mais alto, lamentosamente.
Batiam as patinhas contra seu corpo, sondando o obstáculo invisível, que acabavam por lamber, com suas linguinhas ásperas.
E mais gatos entravam pela porta da cozinha, atropelando-se. Deviam ser centenas, calculou, ali estirada no chão, vendo a sala através do reflexo na parede de espelhos.
Os gatos acabavam por contornar seu corpo espichado e nu, iam aglomerar-se embaixo da mesa envernizada de verde, subiam no sofá, ou ficavam agitando as persianas verticais. Depois, seguiam pelo corredor, invadiam o resto do apartamento.
E agora, de repente, como se atendessem a um silencioso aviso, todos os gatos voltaram correndo para a cozinha, comprimindo-se uns contra os outros, e desapareceram.
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Levantou-se, caminhou pelo apartamento vazio, foi até sua escrivaninha, pegou um cigarro e o acendeu, tentando reencontrar sua identidade quase perdida, depois de tantos dias sem rosto. (Um CD, no aparelho de som, trazia uma sinfonia de Mahler.)
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Depois de uma semana de reclusão, num abafado domingo de sol, ela ficou um longo tempo espiando, da sua varanda, a nuvem amarela de calor que cobria quase inteiramente a Pedra da Gávea, ao longe, deixando porém a descoberto o estranho cume em forma de martelo.
E então virou-se para a sala – e reviu na parede de espelho, com um susto de redescoberta, seu magro corpo nu e um rosto pálido e envelhecido, um rosto afivelado em cima de muitos outros, como a penúltima máscara. Um rosto já feio, talvez, mas era o seu, então o recebeu de volta, com uma gratidão triste.
Seu velho rosto visível, portanto foi até o banheiro, pintou os lábios de um vermelho vivo, pôs os brincos de pingente, penteou o cabelo e se sentou por alguns instantes à mesa da cozinha, para fumar mais um cigarro, antes de sair, afinal, para dar uma volta, depois daquelas férias trancada em casa.
Pegou o elevador, desceu até a garagem do prédio, entrou em seu carro e seguiu para tomar um Martini no Leblon, onde a praia estava cheia como nunca, naquele tedioso domingo de visibilidade, como tantos outros.
sexta-feira, 30 de abril de 2010
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