segunda-feira, 7 de março de 2011

ORQUÍDEAS PARA CLARICE


Conto de Sonia Coutinho

Conto com minhas palavras a história de Vera, tal como ela me contou, no dia em que foi internada.
Acorda muito cedo, como costuma fazer agora. Sim, agora que estou quase velha, pensa Vera, com uma naturalidade que jamais imaginaria alcançar, apenas poucos anos atrás, com relação a esse assunto. Mas, de repente, numa longa situação de divorciada sem filhos, está chegando aos 57 anos.
(E, o pior, sem se livrar dos resíduos de uma Dolorida Paixão por um homem dez anos mais novo e casado, o belo Henrique.)
Ainda está escuro, Vera acende a luz do abajur. Dá uma rápida olhada no despertador, cuja campainha jamais toca (ela sempre acorda antes da hora), e vê que são quatro da madrugada.
Na mesinha de cabeceira, junto do relógio, está o romance “A maçã no escuro” e, com a ponta presa embaixo dele, um pedaço de papel com anotações feitas por ela, dias atrás.
Vera pega o papel, lê:

“Encontrei Van Gogh, esta manhã, no Jardim Botânico.
Foi perto do Rio dos Macacos, que corre paralelo à Pacheco Leão. Dali dá para ver os carros passando na rua, mas não há nenhum ruído de trânsito, apenas o doce murmúrio da água correndo.
Fiquei algum tempo de olhos fechados, ouvindo.
Quando abri os olhos, levei um susto: havia um homem parado à minha frente. À primeira vista, não o identifiquei.
Vi apenas que era um tipo estranho e estrangeiro: pele muito clara, nariz adunco, barba ruiva, usando um chapéu com as abas bem voltadas para cima.
Quando fixei a atenção em seu olho direito, ligeiramente arregalado, o olho que ele usou como eixo de vários dos seus auto-retratos, tive a certeza: era Van Gogh.
Usava um casaco de um azul escuro mas vivo, resplandecente; e, notando que eu o observava, Van Gogh disse:
- O azul cobalto é uma cor divina, não há nada tão belo para colocar em torno dos objetos.
E prosseguiu, como se divagasse:
- Já o carmim é o vermelho do vinho, e é quente e estimulante como o próprio vinho.”

Vera esconde rapidamente o papel entre as páginas do livro.
E pergunta a si mesma se deve conversar a respeito com o Dr. Fabiano. Vai ao consultório dele na próxima quarta-feira. Talvez deva tomar coragem, afinal, e contar tudo. Sim, sobre as aparições.
A leitura da anotação sobre Van Gogh a deixou com uma sensação esquisita, como se saísse de um sonho pesado – sim, esse sonho intenso que chamam de realidade, pensa Vera.
Dá um pulo da cama e, usando apenas uma velha camiseta comprida, vai até o quarto que chama de “meu gabinete” e se senta diante do computador. Acessa a internet, mas não há e-mails novos, o que aumenta sua sensação de solidão.

Segue para a cozinha, prepara um café com leite, pega umas torradas do tipo que já vem pronto e embalado e uma caixa de queijo cremoso. Enquanto toma o café, pensa outra vez em Henrique. Não é um pensamento saudável, mas não consegue evitá-lo.
Na véspera, um pintor de paredes lhe falara dele.
Uns dois anos antes, Seu Simão tinha pintando o teto do seu banheiro, que a umidade deixara cheio de bolhas e descascado. Foi indicado por Henrique, para quem costumava trabalhar.
Vera agora chamara Seu Simão para conversar sobre a pintura da sua sala, manchada por um vazamento.
Fora um vazamento esquisito. Ela estava no quarto, deitada, quando sentiu aquele repentino cheiro de coisa molhada. Correu ao banheiro, viu que havia um líquido escuro no piso. Na sala, uma parede já estava coberta por grandes borrões avermelhados.
Agora, quando acorda antes do amanhecer e vai até a sala, tem certeza de que são manchas de sangue. Sim, alguém foi assassinado no apartamento de cima e seu sangue escorreu rapidamente do teto até o chão da sua sala.
- Quero toda branco neve - ela disse a Seu Simão.
Estava praticamente tudo combinado, quando ele perguntou:
- E o Doutor?
Com um choque, Vera percebeu que se referia a Henrique.
Como ousava? Mas concluiu que devia ser por causa do indevido tom afetivo com que tratava aquele pintor, e só porque ele fora indicado por Henrique.
Enquanto pintava seu banheiro, Seu Simão encontrara Henrique mais de uma vez em seu apartamento - e devia ter tirado suas conclusões. Embora ultrajada, Vera respondeu à pergunta dele.
- Não falo com Henrique há muito tempo.
Diante disso, o pintor, animado, continuou:
- Trabalhei para ele no mês passado. Henrique deixou a mulher, está morando com uma moça bonita, muito nova. – E acrescentou: - Ela tem o mesmo nome que a senhora, Vera.

Desde que pararam de fazer amor, sempre doía um pouco pensar em Henrique, mas não uma dor tão forte como ela sentiu com a revelação do Seu Simão.
A paixão por Henrique fora substituída por uma amizade-capaz-de-provocar-lágrimas. As palavras do pintor foram como uma punhalada, de punhal-que-não-pode-ser-arrancado.
Vera voltou atrás quanto à pintura da sala, mentiu que talvez os proprietários do apartamento de cima, que pagariam tudo, já tivessem falado com outro pintor.
Verificaria isso e telefonaria para Seu Simão no dia seguinte, disse - já abrindo rapidamente a porta para que ele fosse embora.

Quando acaba de tomar o café, aproxima-se da mesa da sala, onde está todo o seu material de artesanato.
Tubos de tinta, pincéis enfiados numa garrafa plástica cortada pela metade, godês, pequenos recipientes, um trapo. Desde que se aposentou como professora de francês, é o que anda fazendo. E seu apartamento deixou de ter um aspecto civilizado, transformou-se num desarrumado ateliê.
Senta-se perto da mesa, na cadeira de plástico branco onde trabalha, o chão coberto por jornais estendidos.
Pega uma caixa de madeira crua e começa a lixá-la.
Depois, despeja um pouco de tinta branca PVA numa tigela e, com um pincel e um rolinho, vai pintando a caixa e alisando a tinta.
Separa tubos de tinta - azul ftalocianina, azul turquesa, rosa meio lilás, amarelo limão, laca gerânio, sombra natural.
Na tampa, colará o xérox da foto de Clarice Lispector.
Na caixa anterior, tinha usado a reprodução de um auto-retrato de Frida Kahlo.

A esta altura, o dia já clareou, Vera apaga as luzes.
Põe a caixa meio trabalhada na mesa, em cima de um plástico. Termino quando voltar do Jardim Botânico, pensa.
Quer chegar cedo para sua caminhada diária, para aproveitar enquanto aquilo não está cheio de gente.
Toma um banho rápido, enfia umas calças de moleton, uma camiseta, uns tênis, desce pela escada mesmo até a garagem, entra em seu velho carrinho. Com o trânsito escasso das seis da manhã, chega ao Jardim em dez minutos.
Tem sempre o mesmo espanto, quando entra aqui. É lindo.
O frescor da manhã, o canto dos pássaros.
Vai caminhando.
No Jardim Japonês, espia as gordas carpas, manchadas de vermelho, branco e preto.
Mas sua favorita é a dourada, que procura com o olhar.
Segue adiante, pisando nas folhas avermelhadas, porque é outono, que cobrem a terra batida das veredas.
Parada agora na margem do Lago, observa a água caindo perpetuamente da jarra que a estátua de Tétis tem nas mãos.
Agora, está bem embaixo de um grupo de macacos, que pulam de um galho para outro. São bichos saudáveis, pêlos limpos e luzidios, suas caras quase humanas.
Quando chega ao orquidário, a porta está inesperadamente aberta, embora o guarda que fica ali de vigia ainda não tenha chegado. Aproxima-se da porta e, antes mesmo de entrar, vê uma mulher lá dentro, em meio às orquídeas.
Na vazia solidão da manhã, a mulher magra, elegante, o rosto bem maquilado, com as maçãs salientes. Seu vestido de seda estampada com pequenas flores, Vera observa. Decote quadrado, cintura justa, saia na altura dos joelhos, parecidos com os que sua mãe usava, lá pelos anos 60.
Ficam as duas ali, se encarando.

Claro, é ela, pensa Vera, é ela com a aparência que tinha, quando era jovem e casada com um diplomata.
- Clarice... – diz Vera, num sussurro.
Aproxima-se da outra com uma sensação de encontro inevitável, que mais cedo ou mais tarde teria de acontecer.
E Clarice diz, com sua voz rouca, que parece ter um leve sotaque estrangeiro (mas Vera sabe que a alteração é causada por um defeito em sua língua):
- Não se sabe de onde se vem, nem se sabe para onde se vai, mas que experimentamos, experimentamos! E é isto o que temos.
- Eu queria tanto entender – diz Vera.
- É tolice não entender – responde Clarice. - Só não entende quem não quer. Porque entender é um modo de olhar. Porque entender, aliás, é uma atitude. Como se, estendendo a mão no escuro e pegando uma maçã, a gente a reconhecesse, nos dedos tão desajeitados pelo amor uma maçã. Não peço mais o nome das coisas. Basta reconhecê-las, no escuro. E me rejubilar, desajeitada.
- Você sente esse júbilo, essa alegria? – pergunta Vera.
- Às vezes me basta tanto ser uma pessoa que acorda de manhã. Bastam-me a terra enevoada e as árvores frescas. A corrente da graça é forte, de manhã, e ter um corpo que vive me basta. Apesar de tudo, morremos estranhamente felizes: submissos à perfeição que nos usa.
Vera pronuncia palavras ao acaso.
- Amor, morte, mistério.
E Clarice diz:
- Quem aceita o mistério do amor aceita o da morte; quem aceita que um corpo que se ignora cumpra o seu destino, então aceita que o nosso destino nos ultrapassa, isto é, morremos.
Clarice se cala e Vera percebe que ela se movimenta, vagarosamente, em direção à saída do orquidário.
- Clarice... – fala Vera, baixinho, com uma vontade imensa de lhe oferecer algumas orquídeas, escolhendo amplamente entre as brancas, amarelas, lilases, pintalgadas, de todos os formatos.
Mas fica paralisada, muda. E, quando sai do orquidário, vê que Clarice desapareceu.
Caminha para o estacionamento do Jardim, entra em seu carro e segue para seu apartamento, onde o cotidiano se reinstala.

Vera volta a pensar em Henrique.
Uma longa história. Que se passou, mais do que em qualquer outra parte, em sua imaginação mesmo.
Agora, tem um forte impulso e nem pensa em resistir - vai até o telefone e liga para o celular dele, o que não fazia há muito tempo.
Pergunta:
- É verdade que você se separou da sua mulher e se casou de novo?
- Mas que idéia, de onde você tirou isso? – diz Henrique.
- Seu Simão, o pintor, me contou.
- Ele não sabe do que está falando.
- É com aquela moça com quem vi você, outro dia, em Ipanema, que está casado agora?
- Ora, quer saber de uma coisa? Quem me dera que eu estivesse mesmo casado com ela!
Vera desliga, arrasada. E claro que jamais saberá se é verdade ou mentira, Henrique nunca lhe deu sequer seu endereço, tem apenas o número do seu celular.

Vera vai para a cadeira de plástico branco, junto da mesa com o material de artesanato.
Dá uns últimos retoques na pintura da caixa e depois cola na tampa o xérox de uma foto de Clarice Lispector.
Mais tarde, antes de dormir, abre as últimas páginas de “A maçã no escuro” e lê: “E, quem sabe, a sua seria a história de uma impossibilidade tocada. Do modo como podia ser tocada: quando dedos sentem no silêncio do pulso a veia.”
Não, claro que não dirá nada sobre isso ao Dr. Fabiano, quando for ao consultório dele, na quarta-feira.

Este conto está aqui a pedido, de pessoas que leram um trecho dele no Facebook. É inédito em livro.

3 comentários:

  1. Acho um luxo ter conto seu inédito! Adorei o reencontro com Clarice (ele é de todas nós). Um belo presente, minha Escritora. Estive no passeio, vislumbrei a paisagem, a orquídea. Mergulhei no telefonema, na distância, no deswejo de pintar. Belo conto!!!!! Obrigada! Rita Santana

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  2. Belíssimo conto, Sonia. A sua linguagem é tocante.
    O FALCÃO está comemorando cinco meses de vida. Apareça por lá! Será um prazer!
    Abraço bom,

    www.ofalcaomaltes.blogspot.com

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  3. ...traigo
    sangre
    de
    la
    tarde
    herida
    en
    la
    mano
    y
    una
    vela
    de
    mi
    corazón
    para
    invitarte
    y
    darte
    este
    alma
    que
    viene
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    SONIA

    CON saludos de la luna al
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    poesía...




    ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE CHAPLIN MONOCULO NOMBRE DE LA ROSA, ALBATROS GLADIATOR, ACEBO CUMBRES BORRASCOSAS, ENEMIGO A LAS PUERTAS, CACHORRO, FANTASMA DE LA OPERA, BLADE RUUNER ,CHOCOLATE Y CREPUSCULO 1 Y2.

    José
    Ramón...

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