segunda-feira, 7 de março de 2011

DOIS CONTOS DE ANDRÉ GIUSTI

André Giusti

Domingo, 20 anos depois.

Rique
Afundado na poltrona encardida que me coube na partilha do divórcio, consigo ver as horas: faltam oito minutos para acabar o dia do meu aniversário de quarenta anos.

Cansados os dedos no controle da TV, acabei parando num desses seriados que fazem tanto sucesso hoje em dia. É esse tal em que um bando de gente tenta sobreviver numa ilha, ou babaquice que o valha. Jamais gastei meus olhos vendo um capítulo sequer. Conheço de ouvir falar, do que pesco das conversas dos jovens lá do trabalho. Embromam o serviço, de quinze em quinze minutos vão ao cantinho do café falar desses seriados, da vida dos personagens. E contam também uns aos outros sobre festas, lugares, shows, planos e sonhos. Dão gargalhadas, vibram; há os que se emocionam, e todos mostram que acreditam mesmo no que estão falando, no que poderão fazer, no que querem que aconteça. Eles têm o tempo da convicção, Rique. Veja como são belos esses jovens pulando com aqueles penduricalhos eletrônicos no pescoço nos anúncios de celular, passando no metrô com uns grampos no nariz e nos supercílios. Eles baixam posts, Rique, trocam piadas, confidências, declarações de amor pelo twitter, criam comunidades, gostam de samba-jazz-pop-rock-baião-tecno, vão para a Austrália aprimorar o inglês e morar na casa de uma família que nunca viram. A vida lhes pertence, como um dia, lá por 1986 ou 7, nos pertenceu.

Mas hoje, Rique, a única coisa que temos é quarenta anos, não nos sobrou muito mais do que essa incógnita meia-idade, casamentos desfeitos e um ou outro episódio de alcoolismo. O passado é alguém que ri ou chora no quarto dos fundos, Rique, e eu não tenho saco nenhum para quem adora seriados de TV.

Ano após ano foi diminuindo o número de pessoas que me ligavam no dia do meu aniversário. No último, foram uma ou duas, se bem lembro, até que este ano a coisa zerou: faltam sete minutos para a meia-noite e ninguém ligou no dia do meu aniversário de quarenta anos. E certamente será mais fácil que algum dos idiotas desse seriado consiga fugir da bosta dessa ilha do que esse telefone tocar daqui para a meia-noite.

Até que acordei bem, fiz barba, tomei banho, pus roupa nova, uma camiseta e uma bermuda. A camiseta foi minha filha quem deu, veio aqui na quinta-feira com o pretexto de que não poderia vir hoje, que viajaria prum mato escondido do mundo com sei lá quem ou para quê. Ficou dez minutos protocolares, obrigatórios, atendeu duas vezes o celular, não perguntou nada da minha vida, não me falou nada sobre a dela. A bermuda foi minha irmã, mandou que uma afilhada comprasse e viesse aqui entregar. Velha e diabética, não sai de casa porque tem síndrome de pânico; surda, não telefona porque não ouve quem fala do outro lado da linha.

Ainda animado, preparei um almoço razoável aqui em casa. Fui à padaria, comprei um frango. Da rua trouxe também nhoque. Bebi até vinho. Depois de duas taças, senti que me tocavam a alma umas certas expectativa e esperança, no quê e em quê, não sei dizer. Há sentimentos que com o passar dos anos tornam-se intrusos na alma como forasteiros em uma cidade inóspita. E como eram mesmo absurdas, já foram embora, Rique, a expectativa e a esperança. Seguiram a euforia da leve embriaguez do vinho, tomaram o rumo da tarde rosada de outono, não esperaram a noite acender as lâmpadas econômicas de minha casa, me deixaram feito mães desesperadas que abandonam no lixo filhos recém-nascidos.

O som da TV continua se perdendo no nada da minha cabeça, como água corrente que cai em uma gruta sem fundo. O filme vai e volta do comercial no mesmo espaço de tempo em que a digital do relógio salta duas vezes avançando o domingo para o fim. Feito um helicóptero que dá rasantes em um campo devastado pela guerra, me volta à lembrança a idéia que fiz deste meu aniversário de quarenta anos na época em que eu, você, tínhamos apenas vinte.

Se contássemos, pareceria inverossímel aos meninos que vêem esses seriados que um dia tivemos vinte anos. Besta que eu era, pensei que num dia como hoje eu ganharia festa surpresa, amigos tantos acendendo as luzes, dando vivas aos berros no momento em que eu, inocente, abrisse a porta de casa, uma grande e moderna casa de estilo e bom gosto num bairro de classe-média elegante. Batendo espantado a porta atrás de mim, eu jogaria nas costas de uma cadeira de palha meu paletó de fino corte, deixaria também de lado minha pasta executiva de couro bom e receberia logo teu abraço, heróico amigo de fidelidade concretada pela alegria e pela tristeza. Abriria, então, os braços para receber outros afagos, mas no fundo achando previsível que me aprontassem uma daquelas, porque afinal eu seria um jornalista consagrado, expoente de minha geração, repleto de boas e influentes relações, e como tal me ladeavam pessoas do mesmo quilate, tão influentes quanto eu e você, colecionadores de discípulos e admiradores.

Recompondo-me feliz do baque, alguém de nosso séquito pediria então que nos ombreássemos para a foto eterna do dia do meu aniversário de quarenta anos. Queriam ver lado-a-lado os dois jornalistas que derrubaram um presidente, trouxeram à tona os horrores da ditadura militar, revelaram esquemas cruéis do narcotráfico na América Latina, tal como se fôssemos, transportados para a realidade, personagens encarnados de Frederick Forsyth. Lembra, Rique? Dossiê Odessa, que compramos juntos e dividimos a leitura, um dia eu, um dia você, para resumir e entregar como trabalho de faculdade.

Ao passo que devorava as páginas, ficava claro em minha mente trouxa que sairíamos de uma história de Forsyth para a vida real: destemidos repórteres atravessando uma noite de natal obtendo informações sigilosas da fonte mais importante, a peça crucial do elo entre o corrupto ditador chileno e o governo brasileiro no plano para desenvolver a bomba atômica. Da redação varando a madrugada escrevendo linhas bombásticas, iríamos para casa com as primeiras luzes do dia, sabendo que o país já não era mais o mesmo tendo chegado às bancas o jornal com nossa reportagem. No sossego do ninho, Maria Lúcia aflita, tua mulher aflita, esperam com um resto da ceia aqueles homens exaustos e felizes, insones cumpridores do dever, no aguardo sempre de ir atrás de uma investigação na França, revelar uma missão secreta no Cairo, embarcar numa incursão ao Marrocos.

Não desestabilizei governos, não abalei qualquer estrutura. Sequer fui ao Paraguai alguma vez em minha vida. Alcancei, no máximo, ser por algum tempo manejo barato dos barões da imprensa a troco do aluguel e do colégio da filha. Também não casei com Maria Lúcia, o que, na minha certeza embotada de ilusão, aconteceria. Ela e seu garbo de Lady of Lake, porte aristocrático de quem viveu na Irlanda no século treze ou na Inglaterra em 1964, bem a tempo de ver um show dos Beatles. Maria Lúcia brincou comigo de princesa, de fadinha dois ou três anos, me desprezou quando eu tinha uns vinte e um e acendeu pela primeira vez uma luz de advertência de que meus sonhos de otário poderiam não ter sido concretizados quando eu tivesse quarenta anos.

É breve o tempo em que repasso essas algumas coisas que a vida não me deu. Ao menos possuo uma certa tristeza resignada, que chega a me trazer uma quase paz.

Pouco mais de outro minuto já foi embora, aproximando mais do passado o dia do meu aniversário de quarenta anos. Da poltrona onde atravessei inerte a noite, acompanho com os olhos baços o facho decrépito de luz da TV incidindo justamente sobre o livro de Forsyth. Ele acabou ficando comigo, depois que a frustração desbotou todo o imaginário da nossa juventude, e como castigo por eu ter sonhado demais, me transformou em tolo funcionário da empresa de água e esgoto, sem admiradores e séquito de discípulos, sem ninguém que apareça de surpresa nesse quarto-e-sala, o único canto que deu para comprar no subúrbio de onde jamais consegui sair.

Meia-noite, Rique. Acabou o dia, os babacas não acharam a saída da ilha nem você ligou.

Ano que vem faço quarenta e um anos.

O Corredor

Gravura de Sante Scaldaferri

O cardiologista então respondeu que mesmo as pessoas que fizeram eletrocardiograma recentemente e não apresentaram qualquer problema não estão livres de ter um enfarte de uma hora para outra. Sei, sei, fez o apresentador da rádio. O médico prosseguiu explicando que homens de trinta e cinco a quarenta e cinco anos devem redobrar os cuidados. Certo, certo. Nesses, o chamado enfarte do miocárdio pode ser fulminante, em questão de segundos, sem tempo para socorro. Claro, claro, pontuava o homem do microfone.

Puxou o cadarço do tênis com força para firmar bem o calçado no pé direito, mas antes de dar o laço parou um momento, esperando que falassem mais sobre homens de sua idade. Aos trinta e seis anos começou a fazer exames regularmente, hemograma, eletro. Só que há mais de um ano sequer ia ao médico, desde que perdera o direito a plano de saúde.

Sei, sei, e o médico lembrou que o pior horário para se morrer do coração era aquele mesmo, nove, dez da manhã, as artérias estavam mais contritas. E na hora em que o doutor ia explicar o resto, ele esticou o cadarço do outro pé do tênis, dessa vez com mais força que o necessário. Arrebentou. Após o barulho seco de matéria partindo, metade do cordão ficou pendente de sua mão para o nada. Irritado, perdeu a resposta do médico e acabou desligando o rádio.

Outro dia, na mesma estação, também disseram que um tênis de corrida aguenta no máximo quinhentos quilômetros. Ele corria de cinco a dez todos os dias e o tênis era o mesmo há mais de um ano. Por isso aquele cadarço se desfazendo e o solado totalmente gasto, principalmente nas bordas externas por causa de sua pisada acentuada nas laterais. Os especialistas diziam que um tênis velho e gasto traz problemas às articulações, provoca dores nos joelhos. Mas como não sentisse nada, seguia correndo com seu tênis desbeiçado, o emblema da Nike se desprendendo.

Tirou o cadarço partido para aproveitá-lo de acordo com o tamanho que ficou. Ficaram faltando uns dez centímetros. Conseguiu acertar um nó grotesco. Era ver se ele não desatava com o ritmo das passadas.

Esticou a perna no parapeito da cozinha, alongou a parte de trás da coxa. Repetiu o movimento com a outra perna e depois foi para o degrau baixinho da porta que levava ao pequeno quintal. Ali, apoiava apenas a ponta do pé, deixando que o peso do corpo desabasse sobre os calcanhares, alongando as panturrilhas. Fez mais duas ou três posições, mas perdeu apenas quinze segundos em cada uma. Geralmente gastava o dobro, gostava de sentir os músculos bem esticados antes de correr, mas é que em cima da mesa repousava a lista e o dinheiro da mulher para o supermercado, a letra dela complementando o bilhete: pegar as crianças, o banho, o almoço delas, e já eram quase dez da manhã.

Bateu a porta de casa, meia-água da casa grande dos sogros, depósito de tralhas que a família foi juntando ao longo dos anos. As tralhas tomaram o rumo da caridade quando ele, a mulher e as crianças foram viver ali há mais de um ano. Ele precisou aceitar o favor que o livrou da angústia do aluguel e o jogou nos braços de outra, a do próprio favor de morar sem poder pagar, de enfrentar nos almoços de domingo a condenação disfarçada nos olhos dos cunhados. Engolia essa última porque ao menos ela não vinha com ameaça de despejo.

Passou beirando a casa principal e logo chegou à rua. Tentou ser rápido para evitar o encontro com qualquer um que fosse, mas a sogra olhava o tempo na varanda. Disse que depois iria lá, levar umas roupinhas para as crianças, que papel de vô e vó é esse mesmo, ajudar quando se precisa. O problema da frase é que ela tinha outro significado, outras palavras vestidas daquelas: ajudar porque o pai não anda, não resolve, não deslancha. A sogra calou, ficou vendo-o bater o portão, ganhar a esquina depois de virar mancha confusa o mesmo short largo de sempre com a camiseta desbotada do time. Uma vez, assim que o portão bateu, ela disse, ele ouviu mesmo que carros passassem na hora: se saísse assim todo o dia correndo atrás de emprego…

Há mais de um ano mantinha o mesmo horário de acordar, para que ao menos isso não falassem, que acordava tarde, o imprestável. Deixava a mulher um pouco mais na cama e ia fazer o café, aprontar as crianças. Quando todos saíam e ele se via sozinho, era aí que desembestava pelas ruas do bairro. A sogra não desconfiava que ele corria era do desespero. Calçava o tênis e batia a porta, senão o enlouqueceria o telefone que em mais de um ano jamais tocou com alguém dizendo que tinha trabalho para ele. Se as folhas de todos os currículos que espalhou se rebelassem, deixassem as gavetas onde dormiam ou as latas de lixo em que foram jogadas e virassem pássaros, o sol seria encoberto e uma imensa sombra tomaria toda a cidade. Chegou a ser chamado para uma entrevista. Por engano. Foi o que descobriu quando a mocinha do RH olhou seu rosto já vincado, seus muitos cabelos grisalhos e disse apenas: desculpe, procuramos alguém com menos de trinta anos.

Era por essas e outras que fincava com decisão os pés pelas ruas do bairro, cortando o vento e muitas vezes a chuva. Com o coração aos saltos nas subidas mais íngremes, ouvia a respiração mais forte até mesmo do que o motor dos carros. Nos últimos tempos, muito perguntou a si mesmo se deveria desistir. Um veneno, um salto, uma arma, mesmo um dos caminhões passando rente. Mas naquela dor que começou de repente do lado esquerdo, acompanhada do formigamento no braço e do enjoo, nunca havia pensado. Era óbvio que se acelerasse a marcha, a dor aumentaria. Dez da manhã, o último eletro há mais de um ano, 35, 45 anos, o tempo do socorro.

No final da subida, a pontada foi maior, das vistas turvas sumiu a rua, as pernas não o sustentaram mais. Foi direto com a testa em uma mureta pontuda, e pôde sentir o sangue encobrir os olhos, a saliva espumando escorrer do canto da boca. No peito, a dor aguda feito lança irradiava pelo braço. Nela, nunca havia pensado.


André Giusti é carioca, nascido em maio de 1968. Seu livro de contos mais recente, o quarto, é “A liberdade é amarela e conversível”, da 7 Letras. André é jornalista e mora em Brasília.

4 comentários:

  1. O André tem aquele tipo de escrita que pulsa, salta aos olhos. Uma escrita nostálgica, enigmática. Que convence e faz pensar. Ás vezes, nos permite até desconfiar. Mas e daí, desconfiar pode ser bom. Desconfiar instiga e André instiga o leitor a querer saber sempre o que vem depois. Depois da vírgula, depois do ponto, depois, simplesmente depois. O que virá depois? Não é possível saber se em seus contos ele fala dele ou de outro, sabemos apenas que fala e isto a mim já basta. Ler seus escritos é voltar ao passado, caminhando de mãos dadas com o futuro na doce e íngreme estrada chamada presente.

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  2. André,
    Bem que tentei, mas não consigo ver um homem de 40 no conto "Domingo, 20 anos depois". No século XXI, esse homem teria no mínimo 50 anos, e olhe lá... Isso não pode ser autobiográfico. ;) A propósito, em que mês e ano significativos você nasceu!
    Apesar desse "detalhe", gostei muito. E me identifiquei com as referências ao seriado, pelo qual jamais consegui me interessar.

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  3. Reli e gostei como tudo o que você escreve, sua linguagem é poética e carrega uma angústia que parece muito real e confundimos sem saber se é real ou ficção ...

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  4. André, seus contos são admiráveis. E eu, loira como estou e distraída como sempre fui, nem percebi que o convite era para os SEUS contos e não de Sônia. Lis os dela e deixei os seus de lado. Quanta indelicadeza, logo com você, que verdadeiramente compreendeu as minhas fraquezas. De ler e reler seus textos só me enfio numa angústia - minha vida ainda não me pertence.Por fim, esclareço, em breve descubrirei os tais 40 anos sem ter pertencido a nenhuma outra idade.
    Um abraço afetuoso, da sua amiga que não voltará a ser indelicada, por distração ou por cosmética.
    Renata Gonzaga

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