AS CERTEZAS E AS PALAVRAS
Se excluirmos a morte, ao nascermos, duas outras certezas nos acompanharão: a de que seremos filhos frustrados, num determinado momento, e pais inseguros, em outro.
Cássio sabia disso e coçava a cabeça quando essas certezas o afligiam, certeiras, e mesmo com as insistentes reprovações de Sarah, o incerto Cássio coçava e coçava, e por entre seus finos cabelos, se bem perscrutássemos, as feridas existiam. Cássio também tinha a certeza de que não choraria no enterro de seu pai. Não me surpreendo. Nunca o vi chorar nesses quinze anos em que o conheço, nem uma lágrima, sequer um brilho etéreo nos olhos, apenas um campo vasto e esverdeado nas pupilas. Ele se culpa por não nutrir nenhum sentimento, nenhum mesmo, pelo pai, nem amor, nem ódio, eu não entendo e ele não consegue me explicar. Ele acha que não sabe educar os filhos, mas eu lhe digo, e quem sabe? Quando me mostrou sua coleção de tampas de caneta, pensei que nada mais pudesse me surpreender nele, mas Sarah, sua esposa, me confidenciou algo. Cássio tem fixação por uma palavra da qual eu nem sabia o significado, mas descobri: afinal, era o sétimo verbete da terceira coluna da página 2.072 do Dicionário Houaiss. Segundo Sarah, ele se diverte criando historietas com a palavra “opróbrio”. Pelo que eu sabia, Cássio era um ágrafo e suas obras completas poderiam se resumir a suas assinaturas no talão de cheques. Também não me lembro de Cássio ter lido um livro sequer na vida, e fiquei ainda mais surpreso quando certo dia Sarah me entregou uma de suas histórias num guardanapo: "Há na palavra opróbrio algo de indecente, até mesmo de pornográfico, talvez seja a exposição indecorosa das três letras o, sugerindo um casal e o filho assassinado com uma facada nas costas, ou ainda um casal e seu filho punk. Não consigo vislumbrar nada em prol desta palavra, tampouco brio, em duas sílabas espremidas entre vogais, sufocadas, reticentes, impróprias. Dentre as palavras com oito letras, ela é, sem sombra de dúvida, a mais perigosa. Esconde em suas letras a simbologia do assassinato: o p matou o r com a ajuda do o e uma faca aguda, e ainda com a ajuda de b jogaram o corpo no rio. Reparem que este é um momento revelador da língua portuguesa, talvez até o Holanda e o Houassis possam se levantar de seus túmulos; afinal, não é sempre que descobrimos que um substantivo masculino é, na verdade, um substantivo maldito, e que esconde um caso de amor entre duas palavras do mesmo sexo, e vizinhas: p e r".
Disse para Sarah que isso tinha um nome: - Obra-prima?, perguntou. - Esquizofrenia!, disse eu. Não levamos a sério meu diagnóstico. Afinal, ele havia me ensinado uma palavra nova. Nunca cheguei a comentar isso com ele, nem poderia. Mas gostaria, pois estava ficando chateado por, toda vez que conversava com Cássio, ele retomar o assunto das certezas. E eu tinha que engolir em seco minhas duas certezas, que não podiam ser compartilhadas. A primeira, de que ele era um corno; a segunda, de que o terceiro filho dele, de apenas dois anos, era na verdade meu filho. Ele me ensinou uma palavra, mas fui eu quem ensinou a Sarah o último verbete da terceira coluna da página 2.079 do Dicionário Houaiss: orgasmo. A verdade dói mais do que as palavras. Ambas são mortais. E prefiro, muitas vezes, me abster dessas armas, pois se amo o cheiro que emana dentre as pernas de Sarah, amo sobretudo a mim, e também a Cássio, meu primeiro, e talvez único amigo. E se algum dia meu telefone tocar e uma voz gritar inúmeras vezes a palavra opróbrio, só restará aos meus pulsos o beijo frio da lâmina de barbear.
Este conto integra o livro com o mesmo título lançado este ano pela Editora da Casa. Carlos nasceu em Trombudo Central, no interior de Santa Catarina. Estreou na literatura em 1998 com a novela “O publicitário do diabo” (Manjar de Letras), e desde então já lançou quase uma dezena de livros, entre eles os romances “A rosa verde” (Editora da UFSC, 2005), “Ensaio do Vazio” (7 Letras, 2006). Em 2009, foi contemplado pelo Edital Elisabete Anderle, do Governo do Estado de Santa Catarina, com recursos para publicar uma antologia de suas peças de teatro. Ainda em 2009, foi um dos escritores catarinenses selecionados para representar o estado na Feira do Livro de Porto Alegre. Em 2010 ,foi agraciado com a Bolsa Funarte de Criação Literária, do Governo Federal, para pesquisa e conclusão de seu romance “A mulher sem qualidades”. Desde 2007 é cronista fixo (escreve todos os sábados) dos diários “A notícia” e “O correio do povo”. Participa de várias antologias de contos.
Cássio sabia disso e coçava a cabeça quando essas certezas o afligiam, certeiras, e mesmo com as insistentes reprovações de Sarah, o incerto Cássio coçava e coçava, e por entre seus finos cabelos, se bem perscrutássemos, as feridas existiam. Cássio também tinha a certeza de que não choraria no enterro de seu pai. Não me surpreendo. Nunca o vi chorar nesses quinze anos em que o conheço, nem uma lágrima, sequer um brilho etéreo nos olhos, apenas um campo vasto e esverdeado nas pupilas. Ele se culpa por não nutrir nenhum sentimento, nenhum mesmo, pelo pai, nem amor, nem ódio, eu não entendo e ele não consegue me explicar. Ele acha que não sabe educar os filhos, mas eu lhe digo, e quem sabe? Quando me mostrou sua coleção de tampas de caneta, pensei que nada mais pudesse me surpreender nele, mas Sarah, sua esposa, me confidenciou algo. Cássio tem fixação por uma palavra da qual eu nem sabia o significado, mas descobri: afinal, era o sétimo verbete da terceira coluna da página 2.072 do Dicionário Houaiss. Segundo Sarah, ele se diverte criando historietas com a palavra “opróbrio”. Pelo que eu sabia, Cássio era um ágrafo e suas obras completas poderiam se resumir a suas assinaturas no talão de cheques. Também não me lembro de Cássio ter lido um livro sequer na vida, e fiquei ainda mais surpreso quando certo dia Sarah me entregou uma de suas histórias num guardanapo: "Há na palavra opróbrio algo de indecente, até mesmo de pornográfico, talvez seja a exposição indecorosa das três letras o, sugerindo um casal e o filho assassinado com uma facada nas costas, ou ainda um casal e seu filho punk. Não consigo vislumbrar nada em prol desta palavra, tampouco brio, em duas sílabas espremidas entre vogais, sufocadas, reticentes, impróprias. Dentre as palavras com oito letras, ela é, sem sombra de dúvida, a mais perigosa. Esconde em suas letras a simbologia do assassinato: o p matou o r com a ajuda do o e uma faca aguda, e ainda com a ajuda de b jogaram o corpo no rio. Reparem que este é um momento revelador da língua portuguesa, talvez até o Holanda e o Houassis possam se levantar de seus túmulos; afinal, não é sempre que descobrimos que um substantivo masculino é, na verdade, um substantivo maldito, e que esconde um caso de amor entre duas palavras do mesmo sexo, e vizinhas: p e r".
Disse para Sarah que isso tinha um nome: - Obra-prima?, perguntou. - Esquizofrenia!, disse eu. Não levamos a sério meu diagnóstico. Afinal, ele havia me ensinado uma palavra nova. Nunca cheguei a comentar isso com ele, nem poderia. Mas gostaria, pois estava ficando chateado por, toda vez que conversava com Cássio, ele retomar o assunto das certezas. E eu tinha que engolir em seco minhas duas certezas, que não podiam ser compartilhadas. A primeira, de que ele era um corno; a segunda, de que o terceiro filho dele, de apenas dois anos, era na verdade meu filho. Ele me ensinou uma palavra, mas fui eu quem ensinou a Sarah o último verbete da terceira coluna da página 2.079 do Dicionário Houaiss: orgasmo. A verdade dói mais do que as palavras. Ambas são mortais. E prefiro, muitas vezes, me abster dessas armas, pois se amo o cheiro que emana dentre as pernas de Sarah, amo sobretudo a mim, e também a Cássio, meu primeiro, e talvez único amigo. E se algum dia meu telefone tocar e uma voz gritar inúmeras vezes a palavra opróbrio, só restará aos meus pulsos o beijo frio da lâmina de barbear.
Este conto integra o livro com o mesmo título lançado este ano pela Editora da Casa. Carlos nasceu em Trombudo Central, no interior de Santa Catarina. Estreou na literatura em 1998 com a novela “O publicitário do diabo” (Manjar de Letras), e desde então já lançou quase uma dezena de livros, entre eles os romances “A rosa verde” (Editora da UFSC, 2005), “Ensaio do Vazio” (7 Letras, 2006). Em 2009, foi contemplado pelo Edital Elisabete Anderle, do Governo do Estado de Santa Catarina, com recursos para publicar uma antologia de suas peças de teatro. Ainda em 2009, foi um dos escritores catarinenses selecionados para representar o estado na Feira do Livro de Porto Alegre. Em 2010 ,foi agraciado com a Bolsa Funarte de Criação Literária, do Governo Federal, para pesquisa e conclusão de seu romance “A mulher sem qualidades”. Desde 2007 é cronista fixo (escreve todos os sábados) dos diários “A notícia” e “O correio do povo”. Participa de várias antologias de contos.
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