segunda-feira, 29 de novembro de 2010

RÓDTCHENKO E MAIAKÓVSKI NO INSTITUTO MOREIRA SALLES

Ródtchenko e sua mulher Varvara Stiepânova

Os trabalhos de Ródtchenko expostos no Instituto Moreira Salles, por si mesmos já altamente instigantes, crescem ainda em interesse quando se conhece o contexto em que foram produzidos: o período da virada russa do Construtivismo, nas décadas de dez e 20 do século passado, pouco antes e pouco depois da Revolução de Outubro de 1917.
Foi o momento em que uma geração de artistas renovadores, experimentais, que viviam também uma revolução nos costumes, criou uma arte de vanguarda, identificada com as mudanças sociais.
Vimos aqui no Rio, ano passado, no CCBB, a mostra “Virada russa,” com as obras de muitos desses artistas. Um destaque: o grande Kazimir Malievitch, que pertenceu a uma ala do Construtivismo designada como “estética”. Já Ródtchenko fica na ala do Construtivismo dito “ideológico”, junto com Vladimir Tátlin.

Cartaz de Ródtchenko

Rodtchenko foi pintor importante mas, dominado por sua característica inquietação e busca do novo, deixou a pintura pela fotografia, fotomontagem, colagens, cartazes – o material que agora o Instituto Moreira Salles expõe.
O brilho da arte russa desse período se apaga com a consolidação do regime de Josef Stalin.
Stalin subiu ao poder em 1922, mas o endurecimento da sua política se faria sentir com mais peso na década de 30. No primeiro congresso de escritores comunistas, em 1934, o Realismo Socialista foi decretado arte oficial.
Enfrentando obstáculos e desprestígio, muitos artistas da vanguarda russa deixaram a então União Soviética. Os que ficaram, como omo o prteriores deixaram a entrda das distas, em 1934, o Realismo Socialista foi decretado a forma de arte oficial.
Rodtchenko e Maliévitch, foram discriminados e desprestigiados.
Rodtchenko é um grande pioneiro da fotografia. Inventou planos originais, angulares. Gostava de fotografar de baixo para cima, ou vice versa.
E traz para nós, agora, no Moreira Salles, com seu olhar original, uma Moscou que a passagem do tempo torna inesperadamente poética – o balé, o circo, os grandes desfiles, os esportes, o povo nas ruas, os prédios dos grandes jornais.

SOBRE FOTOGRAFIA

(Frases de um texto escrito por Ródtchenko em 31 de outubro de 1934, para a revista “Soviétskoe Foto” – “A Fotografia Soviética”)

Uma fotografia feita por Ródtchenko

A fotografia deixou de ser secundária e de imitar técnicas de gravura, pintura ou tapeçaria. Ao encontrar caminho próprio, ela floresce, e o vento fresco traz um perfume peculiar à fotografia. Novas possibilidades se descortinam.
Os contrastes das perspectivas. Os contrastes da luz. Os contrastes da forma. Pontos de vista impossíveis no desenho ou na pintura. Pontos de vista com encurtamentos exagerados e a impiedosa textura do material.
Momentos inéditos de movimento, gente, animais, carros.
Momentos antes desconhecidos ou, se conhecidos, certamente despercebidos, como o voo de uma bala.
Composições que ultrapassam, em ousadia, a imaginação dos pintores. Tão carregadas de formas que Rubens fica para trás. Com padrões tão intrincados que japoneses ou holandeses não têm mais nada a dizer.
Depois vem a criação de momentos fotográficos inexistentes, por meio da montagem.
A fotografia se desenvolve rapidamente e conquista todos os campos.
É preciso incentivar o amor pela fotografia, para que as fotos sejam colecionadas, para que se criem fototecas e aconteçam exposições fotográficas em grande escala.
Precisamos publicar livros e revistas de fotografia. A fotografia tem todo o direito.
Merece atenção, respeito e reconhecimento como a arte de hoje.
...
Desfile em Moscou, foto de Ródtchenko

OS OLHOS DE MAIAKÓVSKI

SONIA COUTINHO

“Morrer não é difícil. Difícil é a vida e seu ofício.”
Maiakóvski

Estou na exposição de Aleksandr Ródtchenko. Fotografias, colagens, capas de livros.
Na sala com fotos que ele tirou de seus parentes e amigos, levo um susto.
Ah, eu me lembro! Vivi ali, naquele tempo. Sim, na Rússia, um pouco antes e um pouco depois da Revolução de Outubro.
E convivi com essas pessoas.
Vejo as fotos com os rostos tão familiares do próprio Ródtchenko e de sua mulher, Varvara Stiepânova. E aqui estão as do crítico de arte Óssip Brik e da mulher dele, Lilia.
Agora, paro diante das fotografias de Vladimir Maiakovski. Seu rosto belo, intenso e sombrio, um rosto de louco, talvez, está voltado para diretamente para mim, num reconhecimento.
O que foi feito de você, Nora? Ouço-o perguntar.
Por que me chama assim?
Que sensação estranha! O que era Maiakóvski para mim? Um irmão, amigo, amante?
Os olhos dele me sugam, me arrastam.
Segundos depois, verifico que continuo aqui, numa sala do Instituto, mas em que outra dimensão?
Ouço um leve ruído, percebo que há alguém atrás de mim. E me viro bruscamente, esperando deparar-me com Vladimir.
Mas não é ele, e sim Lilia Brik.
Por que sinto tanto ciúme dela? Lilia não é propriamente bonita. Mas tem rosto doce, agradável, muito feminino. E um corpo bem modelado.
Todos diziam que ela era o grande amor de Vladimir Maiakovski.
Ela me toma pelo braço e me conduz para a área externa do Instituto.
No caminho, passamos por uma parede de espelho, no corredor – e me vejo, de relance. Minha imagem não é mais a de Sonia Coutinho.
Sou outra mulher, que identifico de repente.
Sim, Nora Polonskaia, atriz, casada.
Uma das três mulheres da vida de Vladimir. A outra era uma russa branca, Tatiana Iacovleva, que morava em Paris e a quem ele dedicou um poema.
Lilia Brik me puxa pelo braço, agora, com uma raiva mal disfarçada, para que eu me afaste do espelho e continue a andar com ela.
Lembro de tudo, cada vez mais claramente. Aos 22 anos, tive um caso com Maiakovski.
Mas ele se suicidou, continuo a lembrar, agora cheia de dor, enquanto eu e Lilia seguimos para a piscina da bela casa onde funciona o Instituto.
Ah, sim! Fui eu quem passou com Vladimir sua última noite vivo.
Eu e Lilia nos sentamos a uma das mesas em torno da piscina. Em frente, um painel de azulejos de Portinari. Adiante, o oceano de mata que cerca e invade o Rio.
Ainda é cedo, este lugar está vazio, não há ninguém, nas outras mesas, que pudesse estranhar nossas roupas de época e a conversa em russo.
Lilia me diz:
- O que você está fazendo aqui? Por que voltou? Era a mim que ele amava, não a você. O tempo inteiro, era a mim que ele amava. Infelizmente, quando Vladimir morreu, eu estava em Londres, com Óssip. Se estivesse em Moscou, quem sabe impediria que se suicidasse. Já tinha impedido duas vezes, antes.
- Claro, você estava com Óssip. Não quis deixa-lo para ficar com Vladimir, como ele lhe pediu. Ele me contou que queria casar-se com você – cheia de espanto, ouço a mim mesma responder.
Faço uma pausa, mas continuo:
- Você sempre o colocou em segundo plano. E, quando me conheceu, foi a mim que ele passou a amar. Vladimir também me pediu em casamento. Mas fui fraca, tive medo. Tinha medo até de que alguém descobrisse meu caso com ele. Ah, eu queria aceitar seu pedido, devia ter aceito, mas não tive coragem. Tinha uma boa situação, com meu marido. Vladimir era sedutor, mas tão instável. Quem podia adivinhar o que ele faria no dia seguinte?
Lilia me olha com raiva crescente.
- Nunca senti ciúmes de você, como não sentia de Tatiana Iácovleva. Dizem que ele também a pediu em casamento. Mas era tudo para tentar fugir de mim. Era a mim que Vladimir queria. Mas eu não conseguiria separar-me de Óssip. Quando o conheci, eu tinha 13 anos. Nosso relacionamento não era o de um homem e uma mulher, ia muito além disso. Óssip não tinha ciúmes de mim. Vladimir, sim. Óssip sabia que eu nunca o deixaria.
...
Da esquerda para a direita, Óssip, Lilia e Maiakóvski

- Vocês três vivendo juntos, na mesma casa, um ménage à trois que causou algum escândalo, mesmo na Moscou liberada da moral burguesa.
- Não houve ménage à trois. Quando me tornei a mulher de Vladimir, deixei de ser a mulher de Óssip, continuamos apenas irmãos.
- Lilia, você pode tentar enganar a quem quiser, a mim não engana. Você e sua irmã, Elsa Triolet, sempre foram umas coquetes, mulheres fáceis, que ostentavam um verniz de cultura apenas para seduzir os intelectuais e artistas e viver livremente no meio deles, dormindo com quem quisessem.
- Elsa se casou com Aragon e ela o amava – responde Lilia, ofendida. - Polonskaia, eu não tive ciúmes de você, mas uma coisa não lhe perdôo. Você passou a noite com Vladimir e o abandonou na hora da sua morte.
- Eu já tinha saído do quarto, quando ouvi o tiro. Estava no corredor daquele maldito prédio da Travessa Lubiánski. Sabia que não adiantava voltar, estava tudo encerrado. Já antes, vez por outra, ele falava em suicídio. O revólver só tinha uma bala, mas ela se alojou bem em seu coração. Vladimir deve ter ensaiado muitas vezes aquele gesto final. Seu bilhete de despedida talvez tenha sido escrito com antecipação. “Como se diz, o caso está encerrado. Estou quite com a vida.” Mais ou menos isso. Não voltei ao quarto, não queria que ninguém soubesse do nosso caso. Só mais tarde me contaram os detalhes. Eu era tão jovem, tinha apenas 23 anos. E ele 36. O suicídio de Vladimir acabou para sempre com a minha felicidade.
- Ele parecia disposto a atender ao chamado de outro suicida, o poeta Iessenin: “Até logo, até logo companheiro,/Guardo-te no meu peito e te asseguro:/O nosso afastamento passageiro/É sinal de um encontro no futuro.”
Lilia se cala, ficamos ambas em silêncio. De dentro do Instituto vem uma voz de homem que grita o nome dela. Eu a reconheço, é a voz de Vladimir.
Ela se levanta e vai correndo para dentro.
Fico sentada por mais alguns instantes, olhando a piscina. Depois também sigo para dentro. Ao passar pela parede espelho, no corredor, é Sonia Coutinho quem devolve meu olhar, no Rio de Janeiro, no final do ano de 2010.
Estou meio zonza, antes de voltar para casa decido tomar um café no restaurante do Instituto.
Peço um expresso pingado, acompanhado de uma deliciosa bolinha de chocolate com pequenas abas, parecendo um chapéu.
Depois, vou até o estacionamento, entro em meu carro, dirijo de volta para meu apartamento, onde abro o catálogo da exposição, que comprei.
Torno a examinar as fotos tiradas por Rodtchenko. Detenho-me em Maiakovski.
Os olhos dele se encontram com os meus e ainda me chamam, mas agora resisto.
Vou ler tudo o que puder a respeito dele, decido. E quero saber sobre os anos finais da vida de Lilia Brik. Sobre o casamento dela, depois da morte de Óssip, com V. Katanian, o biógrafo de Maiakovski.
E sobre o suicídio da própria Lilia, aos 86 anos.
De noite, sem conseguir dormir, leio em voz alta, para mim mesma, poemas de Maiakovski traduzidos por Augusto e Haroldo de Campos.

CADERNO DE POESIA

LÚCIO AUTRAN

Lúcio em Barcelona

AZUL

Uma bolha azul
(gelatina
água?)
membrana intangível

Queria afogar a todos
em silêncio
em assepsia
em dias inodoros

A todos tingia
de azul
os homens.
Sem paz contudo

Bolha: azul
de anomia,
impediu a noite
que prometia.

Todavia o dia não devolveu
(mas a face dupla do nada)
Nem era líquido. (Na verdade
havia esperança de um rio

que se rompesse, à cidade lavando,
levando a todos em redemunho)

Não era rio
não era líquido...

era um tempo gelatinoso nos retendo em azul

e paralisia.


VENEZA, LÍNGUA SUBMERSA
(o pesadelo do tempo e o exílio)

Após Mallarmé
um copo de dados
uma copa de dias
um náufrago bienal

Por que
rumei
ao exílio
voluntário?
Porque vi

iluminado
sob um prisma de vidro
e aço:
um copo
de sangue.

(O autor
esperava aplausos
orgulhoso
de seu copo
e de seu sangue)

É esta a língua
do meu tempo?
Lorca! Lorca! Gritei.
(Era só fio de esperança
lembrança de uns versos
não um prenúncio de estética)

“¡Oh sangre dura de Ignácio!
¡Oh ruiseñor de sus venas!
No.
¡Que no quiero verla!
Que no hay cáliz que la contega”

Gritei mesmo por Neruda, poeta
que nem desnuda minhas veias,
secas e vazias: “un plato para el obispo,
un plato de sangre de Almería. Un plato negro,
un plato de sangre de Almería. Un plato destrozado,
desbordado, sucio de sangre pobre”

Era vão:
demais sonoridade
não estaria ali.
Não queria mais ver.
Silenciei para sempre.

Tudo aconselhava a mudez
forma possível
frente à clausura
daquela forma surda.
Caminhei e calei:

Clausura.
Queria apenas sonhar
e acordar com palavras
(inevitável e seminal poesia)
Era minha, a clausura.

Ao exílio voluntário, pois.
Nada a falar ou ouvir.
Não há mais silêncio
(há só silêncio, de uma estridência
que corta a cicatriz da forma)

Perdi a voz na fala dos homens,
via ali senão e apenas
um copo, um signo vazio:
nada é signo, mensagem
tout signe est message?

um copo
em estado de dicionário:
“do latim poculum
vaso para beber
(ou nem isso)

ordinariamente sem asas”
O que lhe dava ares
de falsa ave, vôo nenhum,
composição galiforme
um copo

“Com que os jogadores
de dados
os lançam jogando”
un coup de dés
jogo perdido.

Impossíveis dados
num copo de sangue
SOIT
que
l’Abîme

(que se abriu entre mim
e o gesto
e a língua dos homens)
plane désespérément
era o vácuo sob mim
Caía
por ver esfacelado o piso
do simbólico.
A estética possível.
Cada vez mais só.

Resistira até então
não por reação,
mas por tragédia
de cette conflagration
de l’horizont unanime

Como conflagrar
reagir
à unanimidade ?
Estamos sós, cada vez mais
sós

Como o albatroz
de Charles:
Exilé sur le sol
au milieu
des huées

Ainsi que le fantôme d’un geste
que não é meu
(não me simplifiquem,
o sangue? apenas o acho ridículo
mais do que um copo vazio)

N’ABOLIRA
a ebulição que enlouquece
a abolição
das palavras
do verso pouco que me resta

Estas palavras
dans quelque proche tourbillon d’hilarité et d’horreur
que garimpo na vocação da voz e do silêncio,
onde germinam
à surdez condenadas

Os olhos cansados da voz dos homens
me deparei
com essa língua
que nem do silêncio é digna
une stature mignonne ténébreuse de um copo inútil,

porque cheio de sangue.
Sangue de quem pensava
que isso aboliria
LE HASARD.
Inútil

Toute Pensée émete
un Coup
de
Dés
Maldita poesia

Un coup de dés
n’abolirá
jamais
le hasard.
Maldita poesia

Num copo de sangue
se abriu entre mim
e a língua dos homens
o silêncio.
Maldita poesia
E o sangue...
o sangue
.
.
.

Coagulou-se
.
.
.
como as idéias
.
.
.
Uma cicatriz
sobre a pele

da estética.

Lúcio Autran estreou em 1985, com o livro “O piloto Antônio”. Tem um total de seis livros de poesia publicados, sendo o mais recente “Centro.” Figurou em antologias poéticas. Muito ligado às artes visuais, Lúcio preparou vários catálogos para exposições. Os poemas aqui postados integram o livro "Fragmentos de sonhos e outros ciclos menores", a sair.


NARLAN MATOS TEIXEIRA

Narlan na frente do famoso Café Vesúvio, em San Francisco, onde se reuniam os Beatnicks.


VERSOS ENCANTADOS DESDE LA HABANA

Eu cometo versos
Como quem caminha de madrugada por uma calle de la Habana
e avista sobre um muro debruçadas magnólias
materializadas como se fossem estrelas do mar
ao seu redor ramas verdes lhe guardam da escuridão
outras flores brancas caladas as observam

eu cometo versos
como quem dedilha uma guitarra cigana na Plaza de España em Sevilla
numa tarde onde uma árvore toureia o vento lento
e uma dançarina de flamenco desenha pássaros com seus gestos
(sob sua sombra fresca dorme a poesia)

eu cometo versos
como quem lê Florbela Espanca numa quinta de Lisboa
repousado entre o branco marfim da cidade e o vermelho do sol
na mesa de uma taberna ao lado de uma garrafa de vinho tinto
descubro e me enamoro da musa e da brisa e do sal do mar
ao longe a praia aguarda pelos marinheiros que nunca se foram

eu cometo versos
como uma ilha chilena atenta à espera de um náufrago
como colheres de prata ao sol matinal de Madrid
a desconfiança da liberdade ante um campo florido
como quem vê com alma e por isso não precisa mais dos olhos

Eu cometo versos
Como quem nasce de repente como quem avista a Andaluzia
Como quem brinca com a luz sobre a pele das coisas
Como o vento cochichando com o porto e com as velas brancas
Como quem busca sereias e tesouros em mares perdidos

Eu cometo versos
Como amantes ensandecidos pela beleza ardem numa tarde de Andorra
Como os suicidas que partirão ao amanhecer na carruagem do indizível
Sem cartas nem bilhetes suicida

Eu cometo versos
Como quem comete um crime e aguarda pelo castigo dos deuses.

Nascido em Itaquara, no interior da Bahia, Narlan ensina atualmente na Universidade do Illinois, em Urbana-Champaign, onde também está concluindo seu Doutourado.
Ele obteve o título de Mestre na Universidade do Novo México, com dissertação sobre a Tropicália.Em suas andanças pelo mundo, Narlan conquistou amigos e admiradores na Eslovênia, conheceu os beatniks Lawrence Ferlinghetti e Robert Creeley e participou de uma oficina literária com Derek Walcott, Nobel em 1963. Last but not least, Narlan foi admirador e amigo de Waly Salomão, que o incentivava muito. O poema aqui postado já figurou no famoso blog Madame K, da poeta e jornalista Kátia Borges.


HENRIQUE WAGNER

EM MEMÓRIA DE ILDÁSIO TAVARES
Ildásio Tavares

A VOLTA PARA CASA

De costas para o mar, voltamos à terra,
com seus telefones, carros e postes em movimento.
O corpo se pondo, resolve, provisoriamente,
nossa elegante superfície. Voltamos estupidamente mais vivos,
os olhos cheios d’água, como se quiséssemos afogar,
com toda a segurança de um mar antigo, nossa vista
de sobre o precipício dos ombros de nossos desassossegos.
Voltamos. O corpo buliçoso e cansado dos que lamentam,
praguejam, resolvem. As lojas da cidade continuam abertas
e vendem cartões de aniversário e roupas de verão. As nuvens destoam.
O trânsito é confuso porque obedece à lógica dos dias – não das noites.
Há, no entanto, um silêncio que brota das coisas que têm odor,
feito o cheiro de um nariz envelhecido; e parece velar, contrito,
a imensidão dos pássaros de asas abertas.
Olho para o céu e vejo, sobre o azul de indústria dos seres humanos,
a imensa flor amarela cultivando a terra, agora cheirando
a cágado, folhas de outono e ventania.
...
No dia 31 de outubro passado, o poeta, ficcionista, letrista e professor Ildásio Tavares nos deixou. Grande figura, ninguém como ele entendia de Bahia e de candomblé: era membro da alta hierarquia do Axé Opô Afonjá. O poeta Henrique Wagner nos mandou este belo poema dedicado a ele. Henrique, que já figurou no Sidarta, faz jornalismo cultural e é autor de dois livros de poemas, “O grande pássaro” e “As horas do mundo,” os dois publicados pela editora Letras da Bahia. Recentemente, ele foi premiado por um ensaio sobre cinema.

COMENTÁRIO CRÍTICO


LUCINDA PERSONA,

sobre "OVELHA NEGRA E AMIGA LOURA"


É necessário que as histórias já se tenham passado", escreveu Thomas Mann enquanto explicava as razões do seu romance A Montanha Mágica. E é nesse clima, de tempo ideal decorrido, que se inicia um dos doze contos do mais recente livro de Sonia Coutinho, justamente o que dá o título: Ovelha negra e amiga loura (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006).

As criações de Sonia Coutinho revelam mais do que tudo as vicissitudes do homem comum, os instantes de desenlace e as sacudidelas que a vida confere. Privilegiam a paisagem circundante, povoada pela memória, seja de um fato imediato ou longínquo. À medida que o leitor se reconhece, ele também se envolve com as sutilezas, com a natureza cíclica dos relatos e com a habilidade da autora em costurar experiência e expressão. A adesão é imediata aos enredos e personagens, todos eles gente como a gente. A escrita é franca e ágil, ocorrendo captação certeira da tragédia cotidiana e da atmosfera de indiferença que às vezes envolve tudo.

As narrativas fluem com um sentido crítico profundamente realista, evidenciando a figura feminina em várias de suas dimensões: mãe, filha, amiga. E também em muitas condições diferentes, como na solidão e maturidade.

Os contos de Sonia Coutinho, como expressão da realidade contemporânea, expõem personagens num itinerário de necessidades, amarguras veladas, desafetos, estarrecimentos, fraquezas, decisões dolorosas e fatais. As vidas são duras e flutuam entre o temor e a coragem, entre o trivial e o absurdo. O conto "Às vezes venta, de madrugada", protocoliza as agitações próprias desse mundo regido por deuses devoradores, como é o caso do tempo. "D de descoberta" é uma história que manifesta a tensão emocional da protagonista, guardiã de uma verdade inquietante, cuja confissão mergulha profundamente na sensibilidade do leitor.

A presença da escritora na prosa brasileira é das mais significativas, tanto por um processo expressivo impecável, engenhoso, quanto pelo volume da obra, sendo detentora de vários prêmios e, por duas vezes, do Prêmio Jabuti.

Nascida em Itabuna, Bahia, Sonia Coutinho vive há anos no Rio de Janeiro, cenário pleno de sentidos e muito freqüente em sua escrita, ambiente para o qual levou sua experiência de vida anterior, e onde plasma seu universo de ficções, paradoxalmente pleno de veracidade, valendo-se de uma prosa comunicativa e intensa.

E num tempo de leitura, de conto a conto, a oportunidade de se perceber que a escritora confirma não somente sua experiência e intimidade com a escrita, mas seu encanto por essa atividade de encanto inigualável.


*Lucinda Persona é poeta e professora da Universidade de Cuiabá - UNIC

TODA A VERDADE SOBRE A TIA DE LÚCIA

Conto de Sonia Coutinho


O escritor decide escrever a história que lhe ocorreu hoje, mesmo sendo triste. Decide escrever essa história que, além de triste, é incômoda. Está constrangido, prestes a pedir desculpas. Mas não pede. Apenas pensa: pena que eu não consiga fazer de outro jeito.
“Claro que eu preferiria escrever histórias alegres. Mas, à minha revelia, sempre saem tristes e incômodas,” ele admite para si mesmo, um segundo antes de se sentar e começar a escrever “Toda a verdade sobre a tia de Lúcia.”

“Preciso falar com alguém sobre essa tia antes que ela morra e sua história se torne definitiva, antes que sua história se transforme, para mim, num epitáfio,” pensa Lúcia.
É o primeiro parágrafo que o escritor escreve. E continua.
Sentada em sua cama, Lúcia observa uma fotografia da sua velha tia Lina, que acabou de descobrir numa gaveta do seu armário, num maço de fotos antigas, tiradas ainda em Solinas. Nesta, além da tia, aparecem ainda ela própria, em menina, e sua mãe.
A tia, de quase 90 anos, mora em Solinas. Ela e Ramiro, o filho de Lúcia, que também ainda mora lá, são os únicos parentes próximos lhe restam. Como Lúcia não se casou novamente e, de uns tempos para cá, seus relacionamentos amorosos cessaram, sua solidão se tornou radical.
Nem amizades de verdade ela tem: jamais se entendeu bem com as pessoas, no Rio, e continua mais ligada, interiormente, às antigas amigas de Solinas.

Lúcia teve de deixar o filho com sua mãe, quando se separou do marido e veio trabalhar no Rio. (Preciso descobrir o motivo grave e secreto para essa separação, pensa o escritor. Lúcia foi embora de repente, sem tratar nem de pensão do ex-marido.)
No início, ela levou Ramiro, mas era difícil conseguir alguém que tomasse conta dele, quando Lúcia saía. Ela ficava muito preocupada com o que poderia acontecer com menino, não conseguia nem trabalhar direito. E, quando voltava, Ramiro dizia sempre que queria ir para Solinas, morar com sua avó. O que acabou acontecendo.

Depois da morte da mãe de Lúcia, Ramiro, a essa altura já um engenheiro, disse a ela: “Agora que minha avó morreu, não quero mais ter o desprazer de ver sua cara na minha frente. Se ainda via você, era porque ela pedia.”
Uma completa mentira, Lúcia tinha certeza. A velha jamais pediria ao seu filho que continuasse seu amigo. Ao contrário, sempre fez tudo para separar os dois. Seu golpe de mestre foi o testamento que deixou, deserdando Lúcia em favor de Ramiro.
Isso provocou a ruptura definitiva entre mãe e filho.

Inesperadamente, o carinho que tia Lina lhe demonstra se tornou muito importante para Lúcia.
A tia usa frases de uma bondade antiga: “Nossa Senhora cubra você com seu manto de luz.” Repete: “Você é uma filha para mim, uma verdadeira filha.” E continua a chamá-la de Lucinha, como ninguém mais chama, há muito tempo.

Quando fala com tia Lina pelo telefone, Lúcia visualiza com ternura sua imagem: os óculos de lentes grossas, os cabelos já inteiramente brancos e ralos, a bengala que ela usa para caminhar.
Mas não consegue deixar de lado suas dúvidas quanto à sinceridade da tia – o carinho não será um engodo? Tia Lina, afinal, era tão unida com a irmã dela, a mãe de Lúcia.
E, se de fato a tia a ama, como diz, por que não lhe contou do testamento, quando a família inteira sabia de tudo e só ela, Lúcia, foi apanhada de surpresa?
Lúcia, às vezes, acha o discurso da tia parecido com o pranto das carpideiras, tudo fingimento treinado.Mas está tão carente de qualquer tipo de carinho que se deixa envolver, de qualquer forma.

Hoje, bem cedo, Lúcia recebeu um telefonema da tia. Em seguida, como de costume, chorou um pouco. Por que chora, todas as vezes em que fala com tia Lina? Talvez porque afeto, para ela, está associado com sofrimento, pensa.
Logo depois do telefonema, Lúcia se lembrou de uma certa fotografia. Onde estaria? Teve uma intuição, foi abrir a gaveta do armário - e lá a encontrou.
Sim, essa foto que ela agora observa, demoradamente, antes mesmo de tomar o seu café e trocar de roupa para ir trabalhar.
Tia Lina, sua mãe e ela estão na margem de um rio, em Solinas, onde há uma fileira de árvores finas e altas.
A tia usa um penteado antigo, com um grande pimpão, e Lúcia lembra, num relâmpago, que esse pimpão era feito com um enchimento de pano que ela vira, certa vez, na casa da tia Lina.
Agora, olha para sua mãe: linda, como sempre. Muito mais bonita do que Lúcia jamais fora. Menina, como aparece na foto, ela era feia, magríssima e com uns dentes tortos.
Já sua mãe parece uma estrela de cinema, num filme de depois da Segunda Guerra Mundial: batom escuro, saia justa na altura dos joelhos, de um tecido quadriculado, miúdo e escuro, e uma blusa de seda branca com mangas compridas e fofas e punhos abotoados.

Lúcia se levanta, vai até o banheiro, pega uma tesoura. Volta para a cama e corta a fotografia pela metade, separando a imagem da sua mãe, que rasga em pedacinhos e vai jogar no saco de lixo.
Foi demais o que a mãe fez com ela com aquele testamento, pensa, cheia de raiva. E fez isso mesmo sabendo das suas dificuldades financeiras, do seu novo emprego mal pago.
O testamento está obrigando Lúcia a fazer economias do tipo que distorce a alma de uma pessoa. Ela se tornou alguém que não pode mais comprar uma blusinha nova nem um CD de harpas celtas.
Resta decidir, agora, o que fará com a outra metade da foto, a parte em que ela aparece com tia Lina.

Num arquivo diferente, em seu computador, o escritor faz um resumo da vida de Lúcia, para usar em sua história.
O pai, que tinha uma boa situação financeira, morreu quando ela era ainda pequena. Todos os bens da família ficaram com sua mãe.
Mais tarde, já adulta, Lúcia não pensou em reivindicar direitos, achou que não era preciso, sendo filha única.
Não tinha feito um curso universitário porque sua mãe achou que não valia a pena, era bobagem, “melhor seria arrumar um empreguinho enquanto esperava marido.”
Lúcia, que naquele tempo era fraca e tola, deixou-se levar e arrumou um emprego que detestava. Então, nem essa saída ela teve, a de uma profissão rendosa.
Seria por causa da fuga de Lúcia para o Rio que sua mãe quisera castigá-la? Indaga-se o escritor. Mas não, ele conclui.
Lúcia tem certeza, ele escreve, de que o ódio da sua mãe era coisa mais antiga. Imperdoável, para mãe de Lúcia, era o próprio fato de ela ter nascido.
Sua mãe a odiava por causa do pai dela, escreve em seguida o escritor. Tinha repulsa pelo marido, uma repulsa que se estendeu à filha, continua ele a escrever.
Depois, de volta ao arquivo principal, o escritor passa a palavra à própria Lúcia, que conta seus primeiros tempos no Rio.

“Logo que cheguei, fiquei numa pensão no Catete, usando algumas economias que tinha. Procurei uma Antiga Amiga de Solinas e, a conselho dela, que conseguira seu emprego assim, esquadrinhei muitas páginas de Classificados.
Afinal, consegui ficar como secretária de uma firma importadora. Sempre gostei de estudar inglês, foi o que ajudou. Além, claro, da boa aparência que eu já tinha, aos 30 anos.
O salário deu para alugar um quarto-e-sala em Copacabana e então meu filho veio e ficou uns tempos comigo, antes de voltar. Mas férias e feriados, sempre eu sempre visitei Ramiro em Solinas.
Mais tarde, na casa dos 50, fui demitida, tive de me contentar com outro emprego de salário inferior.
O pior de tudo, meu pai morreu. Ele, que sempre me dizia: ‘Se precisar de alguma coisa, é só pedir.’”

O escritor, que é jornalista free-lancer, depois de um período desocupado recebe uma porção de pedidos de matérias.
E pára temporariamente sua história. Deixa Lúcia imóvel, sentada na cama, com os olhos voltados para a velha fotografia.
...

Estranhamente, sem nenhum motivo aparente, mesmo estamdp muito ocupado, nesse período o escritor começa a pensar em anjos.
Primeiro, vem uma imagem que parece de sonho, embora ele esteja acordado: anjos voam de um lado para outro, despejando flores em cima de um farol.
Num estado quase de transe, o escritor, que às vezes pinta, faz um pequeno quadro onde aparecem o farol, uma lua imensa, estrelas douradas e muito anjos.
Pensa: são anjos misteriosos como num quadro surrealista. Anjos sérios, graves, como no filme “Asas do desejo,” de Wim Wenders.
E recita as “Elegias de Duíno”, de Rilke : “Quem, se eu gritasse, me escutaria, entre as hierarquias dos anjos...”
Depois de algum tempo, já com menos trabalho, o escritor volta à história de Lúcia e da sua tia.

Claro que tia Lina não é nenhuma santa, argumenta Lúcia consigo mesma, tentando racionalizar uma relação que assume proporções imprevistas e a faz pensar em voltar para Solinas.
Na verdade, não apenas por causa da tia Lina, mas pela falta de dinheiro. O que mais Lúcia teme é ser obrigada a sair de Copacabana, ir para a Zona Norte.

O escritor escreve que Lúcia vai agora para a cozinha, tira da geladeira um mamão papaia, coloca duas torradas no forno, põe água para ferver. Tem de tomar logo seu café e se preparar para ir trabalhar, não deve chegar novamente atrasada, adverte a si mesma.
Mas, enquanto isso, continua a julgar mentalmente sua tia Lina.
Claro que a tia sabia do testamento, mas não lhe contou nada. E o imenso apartamento da sua mãe e os investimentos dela, que vinham do tempo do marido vivo, e um terreno, e uma casa de praia, tudo passou diretamente para Ramiro.
Surgiu até, Lúcia não sabia como, um documento forjado em que ela concordava com os termos do testamento.

Rasgará ou não a foto da tia Lina?
Lúcia toma rapidamente seu café. Tem medo de ser novamente demitida. Na véspera, já chegara atrasada ao trabalho.
Está cansadíssima de ser secretária e, atualmente, uma secretária mal paga. Mas, se parar de trabalhar, o que será dela?
Seria bem melhor, pensa, lavando a xícara e o prato, se acreditasse mesmo no amor da tia Lina.
Seria bem melhor se pudesse, sem dúvidas nem temores, continuar a ouvir a voz doce e cantante da tia, que vem pelo telefone, consoladora, lá de Solinas.
Resistirá ela a uma vida inteiramente sem amor? É o que Lúcia se pergunta, neste momento, antecipando com um arrepio a solidão arrasadora de uma existência assim.

Tenho de enxergar a realidade, tia Lina escondeu o testamento de mim, pensa Lúcia outra vez.
Mas, imediatamente, torna a perdoar a tia, lembrando de um presente dela, que recebeu dias atrás, pelo correio: uma camiseta com a imagem de Nossa Senhora da Glória.
Olhando para aquele objeto ingênuo e tosco, Lúcia chorou novamente, e agora com força. Pensou, com raiva, que era de propósito que tia Lina lhe mandava presentes assim, patéticos.
Só parou de chorar quando lembrou do advogado lhe dando, pelo telefone, a notícia do testamento.
Prevendo a pobreza na velhice, Lúcia uivava: “Não, não, não, não.” Mas era “sim,” e o advogado foi muito objetivo, quando explicou os detalhes.

O escritor reflete se vale a pena incluir em sua história pelo menos um resumo da vida da tia Lina. Decide que sim.
Ingênua e acomodada, Claudelina no entanto se casou por paixão com um tipo meio aventureiro, um forasteiro em Solinas. Ao contrário da mãe de Lúcia, que fez um casamento rico e sem amor.
Previsivelmente, o desastre foi completo, o marido de Lina logo a abandonou. E ela, depois da separação, Jamais Teve Outro Homem.
Felizmente, era funcionária pública. Tinha seu dinheirinho e o apartamento dos seus pais para morar. Agora, com uma minúscula aposentadoria, continua a viver lá, mesmo já sozinha.
O escritor pensa: é interessante duas criaturas com trajetórias tão diferentes, Lina e Lúcia, estarem agora lançadas numa situação parecida. Sim, de solidão, falta de dinheiro e envelhecimento, em maior ou menor grau.
É uma história horrorosa, conclui. Pelo menos, repete para si mesmo, com certeza colocarei anjos nela.

Lúcia tenta ainda decidir se rasga ou não a fotografia de tia Lina. Como pôde a tia silenciar, sabendo do cruel testamento? Como pôde concordar com o castigo que sua mãe lhe infligira?
Se, pelo menos, Lúcia tivesse levado, no Rio, algum tipo de “vida alegre”, como diria sua mãe. “ Mas, na verdade,” pensa Lúcia, “os dias da minha vida foram todos consumidos pelo trabalho duro. Só que, claro, moro em Copacabana e o pessoal de Solinas acha que isto aqui é uma espécie de covil da devassidão.”
Comentário da sua mãe, que lhe foi contado por alguém, ela não se lembra mais quem: “Lúcia sempre se deu muito bem com coisas dela, mas agora se dará muito mal”.
“Com tanto ódio em redor de mim, uma hora dessas fico sem dinheiro nem comer,” pensa ela, desesperada.

Quando acaba de tomar seu café, Lúcia torna a se sentar na cama e a olhar a fotografia cortada pela metade, agora só com sua tia e ela, na margem do rio, entre as árvores finas e altas.
Mas a tia é humilde, diz Lúcia a si mesma, tentando salvar seu último afeto. Com certeza, ela não contribuiu, de nenhuma maneira, para que o testamento fosse feito.
Por um instante, decide ficar com a metade da foto. “Amanhã vou comprar um porta-retrato para esta parte,” pensa, quase feliz.
Mas logo muda de idéia e tem um pensamento muito doloroso sobre tia Lina. Pensa que ela vive bajulando todo mundo, tirando casquinhas aqui e acolá, fazendo permanentemente o papel de boa, mas não é sincera. Tudo é fingimento, imagina Lúcia.

É quando o escritor sente que precisa pôr um ponto final em sua história. Não chegou a inventar o motivo para a separação de Lúcia e seu marido, o motivo grave e secreto que ele sabe que existiu, mas não podia ser revelado a ninguém e ela aceitou a culpa.
E o escritor sente que não disse tudo o que era preciso sobre Lúcia e sua tia. Mas não agüenta continuar, precisa parar.
Dispõe-se, então, a responder à pergunta: Lúcia rasga ou não a fotografia da tia Lina?
Em arquivo separado, ele coloca duas possibilidades.
A) Lúcia conclui que, sejam quais forem os defeitos da sua tia, ela ainda é a coisa mais próxima de uma mãe que conhece. E decide não rasgar a fotografia e continuar retribuindo o amor da Tia Lina.
B) Lúcia decide rasgar a foto. Sua tia estava muito próxima da sua mãe e sabia de tudo. Impossível uma pessoa que a amasse não lhe contar sobre o testamento, talvez ainda a tempo de Lúcia evitar que a crueldade se consumasse.
A decisão do escritor vem inesperadamente rápida. O correto é a possibilidade B, ele conclui.

Lúcia rasga a foto da sua tia e, como fez com a da sua mãe, joga os pedacinhos no saco do lixo.
Todo o seu amor neste mundo tinha sarado, ela sentiu, como uma ferida que cicatriza e não deixa nenhuma dor. Não chorará mais.
Segue para o banheiro, toma um banho, arruma-se para ir trabalhar. É melhor chegar atrasada do que não comparecer.

E, nos dias seguintes, Lúcia se movimenta pela vida a fora de maneira aparentemente normal: dorme sem insônia e acorda com coragem para dar um pulo da cama e seguir adiante.
Mas é apenas uma trégua, reflete o escritor. Desacreditar do amor da tia Lina está além da capacidade de Lúcia para suportar.
Sem a tia, só lhe resta aguardar a chegada dos Anjos.

Poucos dias depois. Lúcia começa a ver Anjos em toda parte. Anjos imensos e sombrios voam por cima do aglomerado dos prédios de Copacabana; um por um, descem, pousam no peitoril da sua janela e conversam com ela.
Deixou de ir ao trabalho, já não sai mais de casa, sempre esperando por eles.
Quando os anjos não aparecem, ela os invoca, com palavras que não sabe de onde vêm: MEBAHEL, HARIEL, HEKAMIAH!

Anjos cabalísticos, com nomes hebraicos, pensa o escritor, acabando de escrever a história que lhe ocorreu hoje.
Mesmo sendo triste.
Está prestes a pedir desculpas, mas não pede.
Apenas pensa: pena que eu não consiga fazer de outro jeito.
Pelo menos, conclui, coloquei anjos nela.