sábado, 30 de outubro de 2010

29ª BIENAL DE SÃO PAULO

COMO A ARTE PODE MUDAR A VIDA?
Sonia Coutinho

Depois que voltei de São Paulo, várias pessoas me perguntaram: “O que você achou da Bienal?” E respondi: “Adorei.” Sim, vesti a camisa da Bienal. Ou melhor, a camiseta.
Na qual está escrita a pergunta que podem ver na foto: “Como a arte pode mudar a vida?” Os dos 159 artistas com trabalhos expostos no pavilhão Cicilo Matarazzo, no Ibirapuera (em boa parte na casa dos 30, 40 anos), tentam – cada qual à sua maneira – responder a essa pergunta.
Como admitiu o curador Agnaldo Farias, em palestra exclusiva para o grupo de Charles Watson, do qual eu participava, nem todos esses artistas sobreviverão. Mas, no momento, é com eles que estão a pesquisa e a inovação contemporâneas.

Agnaldo Farias
Eles representam o que está acontecendo agora pelo mundo, em matéria de arte. Então, a recomendação é: mantenha a disponibilidade interior e deixe de lado os preconceitos, para poder aceitar e apreciar o que mostram esses artistas.
Não vamos entrar na detestável tendência que as pessoas têm, de só gostar de artistas e escritores mortos. A própria Clarice Lispector estava meio esquecidinha no fim da sua vida. Morava num apartamento modesto no Leme e passava dificuldades financeiras, fazendo um jornalismo tardio, para sobreviver.
Postumamente, Clarice chegou afinal a glória, que, em vida, ela dizia que desprezava.
Se não sabe nada sobre arte contemporânea, vá à Bienal como uma criança – e estará por dentro de tudo. Encontrei muitas crianças por lá - e pareciam divertir-se muito.
Seja qual for a reação do público, posso dizer que, nos quatro dias em que andei por lá, todos os andares da Bienal estavam cheios de gente.

Charles Watson

É natural uma certa perplexidade diante do que é novo. Eu, aliás, esperava ficar totalmente perplexa. Mas, feliz e até surpresa, não fiquei.
Graças, em boa parte, à minha freqüência, há nada menos de 15 anos, aos cursos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Vi com quase familiaridade os vídeos, filmes, desenhos, gravuras, colagens, fotografias na bienal.
Tem muita gente, neste momento, acotovelando-se para ver a retrospectiva de Monet, no Grand Palais, em Paris. Mas é bom lembrar a rejeição furiosa com que ele foi recebido, no século XIX, quando expôs no Salon des Réfusés, junto com os outros Impressionistas, recusados pelo Salon oficial.
O novo costuma provocar rejeições imediatas e burras. A pior de que me lembro foi a de Monteiro Lobato, a Anita Malfatti.
Sobre as obras dela, influenciadas pelo Expressionismo já vitorioso na Europa, escreveu Lobato: “mistificação ou paranoia”. Vamos evitar o provincianismo, gente.

Fernando Cocchiarale

Passei quatro dias em São Paulo e não fui a outro lugar que não à Bienal. Fiquei encantada com uma tão ampla exposição da nova arte, ainda mais com um tema atraente: a relação entre arte e política.
Em quatro dias, não deu para ver tudo, mas o que vi mexeu com minha cabeça. Trouxe o catálogo e continuo lendo-o.
Outra pergunta que me fazem: “E o Nuno Ramos?”Quando cheguei à Bienal, os urubus, graças a Deus, já tinham sido tirados daquela prisão barulhenta e confinada, longe do ar livre.
Comprei há algum tempo o romance “Ó,” do Nuno, premiado com o Telecom. Mas até agora não terminei de ler o livro, que é muito indigesto.
Mas mexeu com a cabeça de muita gente o fato de Nuno Ramos, artista visual, ter ganho o Telecom. A tendência atual é essa mesma, para uma mistura de ofícios. Para não se fechar apenas em um. É hora de interdisciplinaridade, das redes.
Acho que muitos artistas estão, neste momento, testando sua capacidade para lidar com palavras. O que, aliás, historicamente já tem sido feito. Lembrar, de imediato, alguns trabalhos de Picabia, frases escritas na tela. Os Cubistas.
Victor Arruda está com uma exposição assim na Ana Maria Niemeyer.
No próprio catálogo da Bienal, ao pé de cada página, há trechos de obras literárias famosas.
Outra pergunta que me fizeram, na volta de São Paulo: “E o Gil Vicente?” Achei os trabalhos dele antes de mais nada fracos. Franz Manata admitiu, generosamente: “O desenho é bom.”

Pedro França

Muita coisa na Bienal ninguém identificaria como “política”. Há trabalhos políticos de fato, como os de Cildo Meireles ou Antonio Manuel.
E há outros trabalhos que estão “apenas” no território – outra vez segundo o curador Agnaldo Farias - da política da arte, isto entendido, acredito, como “inovação contemporânea.”
Há um trabalho de Kosuth de que gostei muito. Quatro verbetes de dicionário, correspondentes a norte, sul, leste e oeste, cada um montado numa placa metálica. Abre-se diante de você, em sua cabeça, uma imensa extensão geográfica - é poético.
Explica alguma coisa falar de “conceitual contemporâneo”, em relação à Bienal?
Penetramos num “ninho” de Hélio Oiticica. O percurso do pioneiro Hélio é esclarecedor quanto ao que temos hoje em arte.
A pintura e a escultura “expandidas”, saindo da tela e da materialidade. A ideia de “beleza” mudou muito. A ideia de “contemplação” caiu, substituída pela idéia de “interatividade.”

Charles
e Cocchiarale


Tive companhia “da pesada” porque fui visitar a Bienal com um dos grupos do competente e sério Charles Watson (Charles é tão sério que às vezes parece mal-humorado, mas adivinho que ele tem muito humor escocês).
Quando menciono companhia “da pesada”, refiro-me, além do próprio Charles, sobretudo ao brilhante professor e curador Fernando Cocchiarale e ao simpático Pedro França (25 anos), professor de História da Arte na EAV.
Mas acabei, a maior parte do tempo, vagando sozinha pelos meandros da Bienal. Sou meio avessa a grupos – e a ficar em pé, ou sentada no chão, durante 12 horas por dia, ouvindo aulas, como meus companheiros fizeram.
Não podendo falar de tudo o que vi, separo, neste momento, umas coisinhas, ao acaso.Destaque para a obra dos brasileiros já “históricos”, vivos ou mortos, como Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica, Carlos Vergara, Cildo Meireles, Antonio Dias, Lygia Pape (está lá aquele trabalho lindo dela, o imenso pano branco do qual emergem cabeças, e que foi apresentado ainda nos anos 70).
E, numa escolha caprichosa, casual, digo que adorei o trabalho de um artista belga nascido em 1969, David Claerbout, que lida muito poeticamente com o tempo, numa conjugação de fotografia/vídeo/música chamada “The Algiers’ Sections of a Happy Moment.”
Ao som de música, vemos um grupo de rapazes numa espécie de pátio, em Argel, alimenta gaivotas que descem para comer nas mãos deles. Linda, a expressão dos seus rostos, o voo dos pássaros. Claerbout focaliza a luz mutável, denunciando a passagem do tempo.
Ele quer questionar, como disse numa entrevista que li na web, “a substância do tempo.”
Pintava desde os sete anos de idade. Mais tarde, deixou a pintura pela fotografia e o filme, porque acha, partindo para o conceitual, que “a arte não deve consistir apenas de objetos”. Ele mora e trabalha em Antuérpia e em Berlim.
E meu olhar ainda algo nostálgico da pintura em tela bateu nos trabalhos de Rodrigo Lacerda, grandes e belas telas escuras com pontos muito coloridos, perto da entrada.
E nos trabalhos de um negro nascido em Bournemouth, Inglaterra – Kimathi Donkor.
Qual origem da sua família? Não consegui descobrir, nem no catálogo nem na Internet. Mas, pelo tema de algumas das suas telas, acho que ele é de origem haitiana.
Na obra de Kimathi, que vi na web, em telas não expostas na Bienal, ele lida com questões raciais e representa a escravização dos negros no Haiti.
Na Bienal, Kimathi apresenta uma tela sobre a morte do brasileiro Jean Charles, no metrô de Londres. As obras dele são vistosas e com um leve toque surreal, ou “ingênuo”.

MINICONTOS DE SONIA COUTINHO

QUATRO TEMPOS

Tela de Garouste

Os dois tomaram o trem em Frankfurt.
Pessoas acenaram calorosamente da plataforma, em despedida, como nunca mais ninguém acenara para ela, em sua vida. Eles acenaram em resposta, por trás do vidro da janela.
O trem seguiu pela margem do Reno e viram castelos muito antigos em cima das colinas.
Ela começou a falar sem parar, enquanto ele ouvia, gentilmente.
Era um homem muito gentil.
E ela era jovem e bonita, sabia que podia falar o quanto quisesse e seria aceita.
Quando chegaram a Colônia, havia outras pessoas da organização à espera deles, na estação.
Uma recepção muito amistosa, não sabia que nunca mais seria recebida assim.
Devia ser tudo para o homem gentil que a acompanhava, e não para ela, conclui agora.
Aquele homem tão gentil e inteligente que, depois da viagem, ela nunca mais viu.
Mas, na ocasião, não lhe ocorreu disso.
Apenas apertou com força as mãos estendidas.
E, de repente, erguendo os olhos para o teto de vidro da estação ferroviária, viu uma torre da Catedral de Colônia.
Então começou a rir, gargalhava com a boca bem aberta, sem tentar esconder, como habitualmente fazia, seus dentes ligeiramente tortos.
“Foi um dos momentos mais felizes da minha vida,” ela conta, vinte anos depois.
De uma vida que, a partir dali, teve poucos momentos assim, ela pensa.
Mas não diz.
+++
Desde pequena conheci a violência, fala a mulher. E ela fica ouvindo.
A mulher continua a falar.
E diz que, até recentemente, não pensava naquilo como violência. Não sabia definir o que tinha acontecido com ela.
Muitas vezes até duvidava que fosse verdade, achava que era tudo imaginação sua. Depois que conversou com uma psicanalista, passou a acreditar.
Mas a pressão em torno era muito forte para que esquecesse tudo, minimizasse. Algumas vezes foi interrompida, quando tentou revelar.
Termina dizendo, com voz abafada, que o homem, afinal, era seu próprio pai.
E ela pensa: essa mulher nunca superará isso, o impacto é forte demais, insuportável.
Ela sabe muito bem como é.
Não se sente capaz de ouvir mais nada do que a mulher tem para dizer.
E novamente se levanta, novamente vai embora.
+++
O período em que ela ia frequentemente a Petrópolis, quase sempre sozinha.
Seu caso com Marcel tinha terminado.
E, no apartamento minúsculo que comprara através dele, a solidão a impedia de dormir.
Marcel, o dono de uma imobiliária lá. O primeiro homem lindo da sua vida.
Mas, como descobriu um pouco mais tarde, muito bem casado. Uma mulher rica, dois filhos.
Quando comprou o apartamento em Petrópolis, o caso já terminara, mas ela ainda amava Marcel.
(Amor, a palavra é um luxo antiquado, pensa. Mas só saberia usar essa, com relação a ele.)
O pequeno apartamento estava caindo aos pedaços, mas Marcel prometeu ajudar na reforma. Deixou-se influenciar, comprou.
E tudo foi trocado no apartamento, que ficou com um piso de lajotas brancas, paredes pintadas de branco. Colocou dentro dele móveis bem coloridos, que comprou no Rio e mandou entregar lá.
Levou também um pequeno aparelho de som. Ouvia Frank Sinatra cantar “Stranger in the Night.” E Ray Charles, “Georgia on My Mind.”
Mas, depois que escurecia, a solidão a impedia de dormir.
Então, passou a subir para Petrópolis, ficar lá apenas durante o dia, e descer antes de escurecer.
Mesmo assim, gostava. Quando vendeu o apartamento foi que percebeu o quanto.
Suas longas caminhadas através do ar transparente e frio, o céu azul do inverno na serra.
Foi obrigada a vender o apartamento porque estava sem dinheiro. E, embora não o visse há muito tempo, ligou para Marcel.
A venda foi às pressas, muito abaixo do preço. Quem sabe ele recebeu alguma coisa por fora, pensou depois.
Perdeu Petrópolis e suas ilusões sobre Marcel.
Mesmo assim, teria perdoado tudo, se não fosse o quadro. Sim, o quadro que ela pintou e deixou pendurado na parede do apartamento.
Tinha trabalhado a tela a partir de esboços que fez lá em Petrópolis, na Praça da Liberdade, diante do chafariz de mil esguichos.
Disse a Marcel que ele podia ficar com os móveis, fazer com eles o que quisesse.
Mas o quadro, o melhor que já pintara em sua vida, o quadro como jamais pintaria igual, ela queria. E ele não devolveu.
Telefonou para seu escritório, para seu celular, não teve mais resposta.
Não chorou quando seus pais morreram. Não chora por seu dinheiro tão curto.
Mas agora, lembrando o quadro, ela se vira de bruços na cama e explode em prantos, com a cara enfiada no travesseiro, como uma criança.
+++
Sempre se surpreende com as transformações causadas pela passagem do tempo. Um processo que sua mente não consegue apreender.
Na véspera, ficara de joelhos no chão, para procurar um anel que rolou para debaixo da sua cama - e quase não conseguiu ficar em pé outra vez. Teve de fazer muita força, o corpo todo doendo.
Dias antes, tentara subir numa cadeira, para tirar a mala da parte de cima do armário, e quase desabou, as pernas não queriam endireitar-se.
Antes, a mudança parecia mais lenta, agora tem a impressão de que se acelerou.
Recusa a frase dramática que lhe vem à cabeça: “Estou muito velha.”
Faz força para pensar que, apesar do desgaste físico, há a compensação de ter adquirido outro tipo de conhecimento da vida, uma nova lucidez.
Mas não consegue acreditar nisso.

TRÊS MULHERES EM DESTAQUE

CRISTINA BAHIENSE


O projeto que a artista visual Cristina Bahiense enviou para o Centro Cultural da Justiça Federal foi aprovado e ela exporá seus trabalhos lá no ano que vem.
Cristina foi minha colega em dois cursos teóricos, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage: Teorias da Arte, com Fernando Cocchiarale, e Arte como conhecimento, com Franz Manata.
Cristina participou da primeira e célebre exposição que a chamada Geração Oitenta fez no Parque Lage em 1984, com curadoria de Marcos Lontra.
E continua a trabalhar, agora com peças em 3D, usando acrílico e folha de alumínio. Mas também faz colagens.
Cristina me mostrou fotos de algumas das suas colagens e pedi que me enviasse uma, para o Sidarta. Ela enviou também um dos seus trabalhos em folha de alumínio.
Além de fotos rasgadas e coladas, ela usa, nesta colagem, uma fita do mesmo material, superposta e também colada.

Pergunta a Cristina : Pode dizer algumas palavras sobre seu processo criativo? Como é que você utiliza desenho e colagem?
Resposta: O desenho funciona como um projeto onde o pensamento plástico se estrutura; nas colagens, esse pensamento é executado, mas de forma sempre sempre aberta às novas descobertas. Os materiais industriais que uso, como telas plásticas, tecidos, folhas transparentes em acrílico, etc, dialogam com meu processo criativo, muitas vezes sugerindo os caminhos a tomar.

Alguns dados recentes do currículo de Cristina Bahiense:
2010 - Projeto Zona Oculta – “Entre o público e o privado”.
Coletiva no CEDIM, SESC (Rio)

2009 - Percursos - individual Galeria do Centro Cultural IBEU - RJ.
- Fotolaje – EAV – Projeto Foto Rio 2009
- Construct.com - coletiva do Centro Cultural Candido Mendes - Centro RJ
- Curso de Arte Contemporânea – Fernando Cocchiarale – P.O.P
- Curso Teorias da Arte - Fernando Cocchiarale - EAV

2008 – Superfícies Latinas - individual no SESC Teresópolis – RJ.
- Curso de Arte Contemporânea – Paulo Sérgio Duarte – P.O.P
Passagens e Persistências

2007 – Novíssimos 2007 - Galeria IBEU – Rio de Janeiro.

URÂNIA TOURINHO PERES

Urania com Emilio Rodrigué

Fui colega de escola de Urânia, hoje uma conceituada psicanalista baiana, mas passamos muito tempo sem contato. Recentemente, nos reaproximamos. E verifiquei que ela continua em plena ação, muito jovem.
Não era nada comum, para as moças da nossa geração, apostar com tanto empenho numa atividade profissional. Mas Urânia fez isso – e o resultado é uma atuação profissional competente e reconhecida, que inclui a organização de seminários, palestras em várias cidades e a publicação de diversos livros.
Urânia me deu alguns deles. “Frida Kahlo: dor e arte” (Colégio de Psicanálise da Bahia, Coleção Memorar), reune artigos sobre a saga de sofrimentos de Frida, sob a ótica psicanalítica. Outro, “Depressão e melancolia”, da série “Psicanálise passo a passo”, da Editora Zahar, aborda de forma bem pessoal o tema indicado pelo título.
Ela organizou também um livro com ensaios sobre seu grande amigo, o psicanalista argentino Emilio Rodrigué, que foi morar em Salvador e lá teve uma atuação muito admirada e influente.
Rodrigué morreu há poucos anos.
Diz Urânia, em depoimento sobre ele:
“O destino trouxe Emilio à Bahia, onde viveu o período de maior riqueza afetiva e intelectual. Ele disse: ‘Acho que a Bahia me tornou um homem notável e estou pensando em termos de sabedoria. Foi aqui que, seguindo o Eclesiastes, começou a hora da colheita. A Bahia foi o tempo de colher os frutos’. Emilio amou Salvador-Bahia como poucos amantes sabem fazê-lo: intensa e fielmente. Para ele, a sua vida dividiu-se entre um antes e um depois, e ele confessou que um sussurro vindo da boca do mar de Ondina disse-lhe: ‘Fique aqui!’ E ele ficou.”
Urânia é casada com o poeta Fernando da Rocha Peres, membro da famosa Geração Mapa, que incluiu, entre outros, o cineasta Glauber Rocha.

SONIA PEÇANHA


Penso sempre em Sonia Peçanha com carinho especial porque, alguns anos atrás, ela foi minha aluna numa oficina literária, de curta duração.
Sonia, junto com Alexandre Brandão, Cristina Zarur, Marilena Moraes, Miriam Mambrini, Nilma Lacerda e Vânia Osório estão em “Amores vagos”, recém-lançada coletânea de contos.
O livro é uma celebração. Antes de mais nada, da própria literatura. Mas também dos 25 anos de um grupo de criação literária formado pelos autores, o “Estilingues”. http://estilingues.wordpress.com/
A orelha de “Amores vagos” é de Luiz Ruffatto, que diz: ...“Desse encontro... nasceu uma grande amizade, edificada em interesses comuns e admiração mútua. Vencendo as vicissitudes dos dias – e foram tempos difíceis, e foram tempos complicados -, eles mantiveram-se unidos e lá se vão 25 anos! Em 1991, publicaram ‘A palavra em construção’, a primeira coletânea a reunir os contos do grupo, do qual ‘Amores vagos’ é desdobramento e coroamento. O leitor perceberá, neste livro, que, embora não necessariamente comunguem ideias estéticas (afinal, distante está a época das ‘profissões de fé’), podemos detectar alguns procedimentos convergentes, como a preponderância do espaço urbano, o realismo da narrativa, a linguagem coloquial. ‘Amores vagos’, enfim, é uma declaração de princípios, que tem como corolário a reafirmação da literatura e a reafirmação da amizade num mundo que vem refutando uma e menosprezando a outra. E é também um convite: um convite para que nós, leitores, partilhemos esse momento de trégua e reflexão.’” O volume, de 141 páginas, foi publicado pela Editora Alternativa, de Niteroi.

COMENTÁRIOS CRÍTICOS

MÁRCIA DENSER,
sobre “Atire em Sofia”


Prosa em dolby

“Atire em Sofia,” o primeiro romance de Sonia Coutinho, é um livro definitivo. Com um estilo aprimorado ao longo de cinco livros (O último verão de Copacabana, Venenos de Lucrécia, Uma certa felicidade, O jogo de Ifá, Nascimento de uma mulher), a contista traduzida na Alemanha e jornalista de O Globo dá o salto qualitativo.
A exemplo de outros escritores da década de 70, Sonia Coutinho está fazendo prosa de sistema dolby: dois canais de linguagens superpostas, cujas associações subliminais soam como música. Através desta técnica de linguagem, a autora corta fundo e de forma indolor, expondo o funcionamento dos mecanismos da estrutura do poder pelo lado de dentro.Dentro de nós. O opressor está aqui dentro. Desconsiderá-lo é crime de lesa humanidade.
O sistema dolby envolve o leitor pelo sentimento, sem exigir referencial de leitura. Naturalmente, quanto mais amplo o referencial, mais o texto se amplia. É a tecnologia do futuro em literatura.
A narrativa do romance insinua-se como um ritual encantatório, ao som dos atabaques do candomblé, trechos de ópera mesclados com versos metálicos da Iron Maiden, a poesia de Homero, frases de jazz, rezas, esconjuros, fundindo-se numa sinfonia profana de maldições. Minando por baixo, despertando criptominésias (memórias sepultadas no inconsciente coletivo), começa o deslocamento no tempo e no espaço.

A estrutura do romance é uma construção “em abismo” em três níveis. Maravilhas da ficção. Chega-se a uma Salvador mítica, semelhante a Alexandria, Tanger ou Gaza. Depois de 20 anos de ausência e com olhos de quem já viu tudo, a jornalista Sofia do Rosário volta à terra natal e descobre uma cidade arcaica onde o tempo é circular, encruzilhada de raças pecados inconfessáveis, preconceitos. Terceiro Mundo.
Neste verão, retorna João Paulo, outro jornalista, viciado em uísque, jazz e Scott Fitzgerald. Um anjo exterminador que decola em Salvador para escrev3er a história de Laura Luedi, ex-miss assassinada num hotel de luxo em Copacabana. Ele delira: “Me chame de Stingo, o apelido pelo qual eu era conhecido naquele tempo, se é que alguém me conhecia.” Contudo, nesta zona fora do tempo, os deuses impiedosos castigam os anjos arrogantes que os desafiam.
A punição chama-se Moira, o destino cego. De fato. É um erro subestimar os “deuses” ou os opressores internos. O que ocorre entre Sofia e João Paulo é um duplo equívoco por sobre seus ombros e à revelia de ambos: “Num gesto rápido, cobre a arma com travesseiro e diz: Que sensação esquisita. Estou dividido em dois. Há um que age e outro observa, lá em cima. Este me ordena ‘Atire na miss.’” É o tênue limite entre o sublime e o ridículo, contudo é neste fio de navalha que se desenrola toda a tragédia humana – esta comédia de erros. É a boa ficção de Sonia Coutinho. Mesmo porque não se trata da questão bizantina homem/mulher. O buraco é mais embaixo: o indivíduo. É ele quem morre, é ele quem mata. Enquanto os demônios no porão continuam donos da casa.

Resenha da primeira edição do “Atire em Sofia”, na revista “Isto é”

CLAUDIUS PORTUGAL,
sobre “Uma certa felicidade”


O sonho de todo autor

Um dos maiores sonhos de todo autor é ter toda a sua obra publicada por uma mesma casa editorial. E isto é o que está acontecendo com a romancista e contista baiana Sonia Coutinho. A editora 7 Letras, com a publicação de “Uma certa felicidade”, fecha o ciclo de edições de todos os livros de contos dessa escritora, nascida em Itabuna, mas residindo no Rio de Janeiro há muitos anos, e também jornalista e tradutora. “Uma certa felicidade”, agora na terceira edição revista e ampliada, com mais um conto, teve sua primeira edição em 1976. São ao todo oito histórias.
Histórias que tratam de temas como a deste início do conto “Essas tardes de maio”:
“ É sinistro um apartamento solitário de noite, ainda mais com o telefone mudo. E para quem poderia eu telefonar, a esta hora? Rodrigo não tem celular, ligar para o seu telefone fixo é impossível, a mulher dele pode atender. Ele ficou de vir, mas até agora não apareceu.
Vou até a cozinha, dou outra olhada no relógio de parede, já são onze e meia. Agora, no banheiro, diante do espelho, retoco mais uma vez, - inutilmente, eu sei – a maquilagem.
Fumo outro cigarro, vou à janela do quarto – e espio, amedrontada, a intransponível muralha de concreto, com seus quadrados já apagados, os prédios de repente imensos erguendo-se silenciosos no escuro, como árvores gigantescas de uma floresta toda metal e cimento, nenhuma umidade ou frescor, estranho mecanismo adormecido, Copacabana.”
Em “Uma certa felicidade,” Sonia Coutinho descreve com originalidade e criatividade o universo feminino da solidão, da necessidade financeira, do mundo do trabalho e das dificuldades em uma cidade grande, nos seus movimentos onde pequenos e novos detalhes se incorporam ao cotidiano, onde personagens aparecem e somem, deixando apenas marcas e lembranças. São as mulheres de hoje e de sempre, com seus enigmas, seus amores, suas histórias de vida.
Autora de seis livros de contos, quatro romances e um livro de ensaio, e tendo recebido prêmios como o Jabuti em 1979 e 1999m e o prêmio Clarice Lispector de Conto, da Biblioteca Nacional, em 2006, e participado de inúmeras antologias no Brasil e no exterior, Sonia Coutinho é hoje uma das mais importantes escritoras que temos no Brasil. Sua obra como contista, agora ao alcance de todos, pode finalmente ser lida. Com isto, a Bahia, sua terra, pode finalmente conhecer e admirar esta escritora. Nunca é tarde, sempre dizemos.

Este texto de Claudius foi lido recentemente em seu programa numa rádio de Salvador

POESIA - BAHIA

WLADIMIR SALDANHA


REGISTRO GERAL

O número é o mesmo, desde o dia
em que o recebi, sem questionar.
Meu número: sem numerologia,
grudou-se, grudou-se em mim! Sorte? Azar?

Não sei. Sei que me lembro das mãos pretas
com que fiquei, tão sujas!, pra deixar
as minhas digitais nas tabuletas
e que não foi “poeta” – ao perguntar

a profissão, o que lhe declarei
- àquela, também ela, funcionária...
E lá estou... Aguardo Wladimir

- o novo, numerado, menos pária!
Aquele que não vem, mas o que hei
de ser quando depois chegar a vir.

ÁGUA-VIVA

Difícil é saber
o que, sendo translúcido,
é ácido

o que, sendo flébil,
é açoite

o que, sendo nado,
bruxuleia

porque, sendo nada,
é vida.

Wladimir é contista e poeta. Formado em Direito pela UFBA, atua profissionalmente na área jurídica, como analista judiciário.Tem Mestrado em Teoria Literária pelo Instituto de Letras da UFBA, com dissertação sobre a obra de Jorge Amado. Cursa atualmente o Doutorado em Letras no mesmo Instituto, com tese sobre a obra de Lêdo Ivo.Tem, inéditos, os livros “Pequenas Avarias” (contos), “Fardo Sutil” (poesia) e “Pesca e Pronúncia” (poesia).Participou das coletâneas “Poetas na surrealidade em Estremoz”, publicada pela Câmara Municipal de Estremoz (Portugal, 2007) e “DiVersos − Poesia e Tradução” (Águas Santas, Portugal, 2008). Outros poemas seus foram publicados na “Revista Iararana”, de Salvador (2000) e no jornal “A Tarde Cultural” (2000 e 2007). Tem contos na internet.

SILVÉRIO DUQUE


E o que adoro em ti é tua carne,
porque tudo o que é vivo se deseja;
assim, desejo em ti o meu tormento
que há-de crescer na proporção do tempo.

O que eu almejo em ti é tua sombra,
pois toda boca habita as mesas vozes
que hão-de tecer com gritos o teu nome
na tarde azul tragada pela noite.

Beijo o teu rosto como se existisse
algum lugar pr’além do Precipício,
e, junto ao gosto de teu lábio esquivo,

uma palavra, sobrescrita em sangue,
há-de adornar o verso em que eu me esqueço,
e há-de extirpar, do amor, a fúria imensa.

+++

Que sabes tu dos frutos, das sementes,
da dureza das flores contra o vento?
A aurora vem tragar a noite espessa
de onde brotou, sem dores, o teu grito.

Se a afirmação do amor nos aborrece,
Morrer é mera vocação dos vivos,
pois no morrer de tudo há um recomeço.
Não queiras mal ao tempo ou ao espanto;

não queiras mal ao grão, à terra escura...
Que sabes tu das trevas ou da carne?
Que sabes tu das noites, dos princípios?

Hoje, é chegado o tempo dos retornos
e toda forma espera o seu ofício
como o vaso existente todo o barro.

Silvério nasceu em Feira de Santana, Bahia, em 1978. Trabalhou como desenhista, restaurador e ajudante de mecânico, antes de descobrir sua vocação, o magistério. Diplomou-se em Letras Vernáculas na Universidade Estadual de Feira de Santana. Sua primeira paixão foi a música. Ainda menino, foi clarinetista de duas Bandas Filarmônicas, na cidade de Tanquinho. Em Feira de Santana, foi coordenador de uma escola de música. Seu primeiro livro foi “O crânio dos peixes” (Edições MAC/2002), seguindo-se “Baladas e outros aportes de viagem” (Edições Pirapuama/2006). Participou de concursos literários (ganhou alguns prêmios) e antologias, e vem colaborando com periódicos, bienais e em vários projetos musicais. “A pele de Esaú” (Ed. Via Literarum/ 2010), de onde foram tirados os poemas a seguir, é seu livro mais recente. Mas ele já tem outro no prelo, “Ciranda de sombras”.Sobre “A pele de Esaú,” escreve Ildásio Tavares: “Neste meridiano da perda e da rejeição, na figura de um Esaú destituído de seu destino, Silvério elabora uma intricada associação de sentimento e pensamento, buscando a verticalidade de personagens que se multiplicam porque se querem fundir em um só. Afinal, o drama de degredo e aparte que sofre Esaú é de todo ser humano, anjo caído que, um dia, se afastou da presença de Deus. E toda odisséia que Esaú tem que executar, na busca de si mesmo, pode-se configurar em seus aspectos trágicos e cada poema desse livro, pois, discorre sobre um jaez da personalidade humana com este suporte analógico, na verdade.”